Anarquia, hierarquia e ‘inside information’
Artigo Opinião

Anarquia, hierarquia e ‘inside information’

Por:GILBERTO MENEZES CÔRTES

A semana que passou foi pródiga em demonstrações de como o Brasil virou de cabeça para baixo na gestão de Jair Bolsonaro. O ex-presidente general Ernesto Geisel, um homem cioso da hierarquia e da disciplina militar (que se balizava no princípio da hierarquia, pelo qual o coronel bate continência e recebe ordens do general e não o contrário), classificou o ex-capitão, expulso do

Exército em 1988 por indisciplina, como “um mau militar”. Eleito vereador, no mesmo ano, pelo Rio de Janeiro e deputado federal em 1990, Jair Bolsonaro revelou-se um deputado de maus modos. Defendia torturadores e milicianos e usava linguagem desabrida. Há alguns anos, em episódio, no Salão Verde da Câmara, enquanto a deputada Maria do Rosário (então no PCdoB-RS, hoje no PT), em entrevista coletiva, pedia pena severa para estupradores (o país estava sob o impacto do estupro seguido de morte de um jovem casal de namorados no litoral de São Paulo, após tortura e estupro da moça, menor de idade, por um grupo de cinco bandidos), o deputado Jair Bolsonaro, em outra rede de TV, criticava a Lei da Maioridade Penal (queria responsabilizar menores a partir de 16 anos). Acabaram em bate-boca. Ela acusando-o de incentivar violência e estupros como o ocorrido, por defender o uso de armas e comportamentos machistas. Bolsonaro revidou: “Jamais estupraria você porque você não merece!”. Ações no Conselho de Ética na Câmara não deram em praticamente nada. O episódio (entre muitos outros) pregou em Jair Bolsonaro a pecha de machista, misógino e de dono de linguajar desabrido. Cativou uma parte do eleitorado, sobretudo os machistas e de ultradireita. A onda contra o PT facilitou a eleição em 2018. Entretanto, agora, todas as pesquisas eleitorais mostram que a rejeição a Bolsonaro (na faixa de 60% ou mais, contra 40% ou mais de Lula) é bem mais intensa entre o eleitorado feminino, que é a maioria da população (52,4%) e também dos eleitores. Mas Bolsonaro não muda.

Vejam o seu comportamento no dia 5 de maio, quando haveria a divulgação do balanço da Petrobras no 1º trimestre (1º de janeiro a 31 de março), período em que a disparada dos preços do petróleo e dos combustíveis, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, de Vladimir Putin, ampliou extraordinariamente os ganhos da estatal, que concentra mais de 73% da extração de petróleo nas gigantescas jazidas do pré-sal, onde extrai óleo e gás natural a pouco mais de US$ 20 por barril. Como o barril do petróleo tipo Brent saltou para mais de US$ 100 e continuou a subir com o prolongamento da guerra (o contrato futuro para entrega em julho fechou a US$ 113,22, com alta superior a 2% na 6ª feira, 6 de maio), é provável que a Petrobras continue com fortes margens e que haverá mais pressões (já que o real segue desvalorizado frente ao dólar, após respiro em abril) para reajustes nos combustíveis. Diante dos estragos que a forte alta dos combustíveis pela Petrobras, em 11 de março, causou na inflação recorde de 1,62% no mês de março e na popularidade do presidente da República, em aberta campanha de reeleição, aguarda-se com expectativa a taxa do IPCA de abril, que o IBGE divulga nesta 3ª feira. As expectativas apontam ligeiro recuo na taxa mensal, com a redução antecipada da bandeira de energia elétrica, mas o índice em 12 meses deve bater em 12%. Se tivermos novos reajustes de combustíveis (o gás natural, para indústrias, veículos e residências já subiu 19% desde 1º de maio), a inflação vai completar em agosto cinco de 12 meses rodando acima de dois dígitos (o que é péssimo numa economia indexada como a nossa), os efeitos serão desastrosos na campanha de Bolsonaro. Por isso, de caso estudado, depois de ter mudado o segundo presidente da Petrobras em menos de um ano, aos quais atribuiu a escalada dos preços dos combustíveis (que veio de fora para dentro), em caso estudado, em sua “live” das 19 horas das quintas-feiras, tendo ao lado o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) ele reagiu de modo inusitado ao lucro de R$ 44,5 bilhões da Petrobras, tratando-o de abusivo e de criminoso, para tentar se eximir da responsabilidade. Tudo tem subido no país. De dólar a combustíveis, passando pelos alimentos no país “celeiro do mundo”. E o presidente da República procura se eximir de responsabilidade e aproveita para acusar a estatal de insensibilidade social e de que uma “nova alta pode quebrar o país”. Menos, presidente. Pode ferir de morte sua campanha, como ocorreu em setembro de 2020, quando o litro do óleo de soja subiu mais de 100% e o maior exportador do mundo, sem estoque regulador, teve de importar soja em grão para extrair óleo, numa prova de má gestão. Repetida na energia.

De fato, na mensagem aos acionistas em que comunicava o lucro recorde de R$ 44,5 bilhões e a distribuição de R$ 48,5 bilhões em dividendos aos acionistas, o novo presidente, José Mauro Coelho, empossado em abril (portanto, nenhuma responsabilidade tinha sobre o desempenho do 1º trimestre) endossou uma declaração no mínimo insensível, para não dizer infeliz, ao creditar o excepcional resultado ao “bom desempenho operacional da companhia”. Realmente, com a escalada do preço do barril e dos combustíveis, qual companhia, diante de ganho tão imponderável (sobretudo no caso da Petrobras que tem custo de produção dos mais baixos do mundo no pré-sal) não teria desempenho espetacular. O barão do petróleo John D, Rockfeller cunhou uma frase lapidar, no século passado: “O melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada. E o segundo melhor é uma empresa de petróleo mal administrada”. Isso foi antes do grande salto da tecnologia de informática criar novas oportunidades de lucros, mas se aplica perfeitamente ao que aconteceu este ano no mundo do petróleo. O lucro do 1º trimestre deste ano da Petrobras foi 38 vezes maior que o dos primeiros três meses de 2021 (alta de 3.718,4%!). No balanço, a estatal assinala que o preço do Brent subiu 66,5% no período e que o faturamento interno dos derivados de petróleo vendidos para o consumidor brasileiro (volume X preços) aumentou, em média, 55,5%. O diesel, que é o principal produto vendido pela empresa, faturou mais 54,5% em relação ao 1º trimestre de 2021; a gasolina, aumentou 75,3%; o querosene de aviação disparou 122,3% (o que explica o salto nas passagens aéreas); o GLP, 23%; a nafta, usada na miríade de produtos da indústria petroquímica, ficou 75,6% mais cara e o petróleo exportado rendeu mais 62%. O faturamento da Petrobras no mercado interno avançou 65,7%. No externo (computando exportações de óleo combustível – “bunker”) cresceu 60,8%. O faturamento total foi 64,4% maior frente ao 1º trimestre de 2021.

Mas, na pressa de querer saber do lucro para criticá-lo antecipadamente, o presidente da República, que deveria ser o primeiro cidadão do país a cumprir as leis e as normas, infringiu regulamentos do mercado de capitais. Ele saiu falando mal do lucro antes de a empresa fazer a divulgação ao mercado, certamente tendo recebido uma “inside information”, informação privilegiada no jargão do mercado, que acabou tornando pública. Tanto a Comissão de Valores Mobiliários, quanto a sua fonte inspiradora, a Securities and Exchange Commission, o “xerife” do mercado de capitais dos Estados Unidos, exigem que as empresas divulguem “fatos relevantes”, como mudanças de diretores, negociações com outras empresas, negócios novos que podem afetar os resultados e os resultados trimestrais, com datas previamente estabelecidas, antes ou depois do fechamento dos mercados, para que todos tenham uso equânime das informações. Um “bizu”, uma “informação de cocheira”, como se diz no turfe, pode ser um trunfo que se transforma em lucros extras para quem usa a dica para fazer negócios. O nome desse delito é “inside trading”, punível com pesadas multas, banimento de futuras operações no mercado, e até prisão, como foi o caso do megainvestidor americano Mike Milken. Até o momento, a CVM nada fez. Com o horário de verão nos Estados Unidos (a Bolsa de Nova Iorque fecha às 17 horas, horário do Brasil, e o “after market” da NYSE se estende até às 19 horas). Por isso, a divulgação dos resultados no Brasil só foi feita após as 20 horas. Teria Bolsonaro se antecipado porque não reconhece o horário de verão, que mandou suspender aqui?

 

Sem hierarquia vira anarquia

Tudo na vida social tem regras pré-estabelecidas. De preferência, negociadas por consenso. Isso começa na família, se estende à escola, às empresas e à vida das sociedades. Do contrário, sem mínimo de respeito às leis e normas, vira um caos, uma anarquia. A hierarquia é um princípio básico da disciplina militar. Do soldado raso, ao cabo, sobe-se uma escala que ia até a patente de marechal (extinta, por ter sido limitada a oficiais que exerceram comendo em guerras). Como as tropas brasileiras desde a 2ª Guerra Mundial só se envolvem em missões de paz da ONU, a patente máxima é de general de Exército (três estrelas). Abaixo vem o general de divisão (duas estrelas) e o general de brigada (uma estrela). Para dois militares da mesma patente a hierarquia é determinada pela antiguidade da formatura na Escola Militar das Agulhas Negras (na Marinha e na Aeronáutica os critérios são semelhantes). Assim, quando Bolsonaro resolveu, em fins de março do ano passado, trocar o ministro da Defesa, general (de Exército) Fernando de Azevedo e Silva, pelo então ministro da Casa Civil, general (de Exército) Walter Braga Neto. Cumprindo os trâmites da Constituição, Azevedo e Silva se opôs ao envolvimento das Forças Armadas em quedas de braços com o Congresso (poder Legislativo) e o Supremo Tribunal Federal (órgão máximo do Poder Judiciário). Tinha como aliado, o comandante do Exército, a força de maior contingente do país, general (de Exército) Edson Pujol. Como Pujol era mais antigo, na formação da Aman, Bolsonaro aproveitou para tirá-lo do comando e o substituiu pelo general (de Exército) Paulo Sérgio Nogueira. Na última mexida ministerial de Bolsonaro, em março, Nogueira tornou-se o ministro da Defesa e o presidente Bolsonaro, que já tinha os comandantes da Marinha e da Aeronáutica bem afinados com suas ideias de confrontação com o STF e da pregação contra as urnas eletrônicas (que o elegeram presidente e a deputado federal desde 1998), tratou de promover um comandante do Exército, afinado, o general Marco Antônio Freire Gomes, que promoveu uma mudança geral dos comandos da força. Pela hierarquia, o comandante do Exército (e o da Marinha e da Aeronáutica) se reporta ao ministro da Defesa.

 

Na escala dos poderes, o presidente do Supremo Tribunal Federal (atualmente o ministro Luiz Fux) responde pelo Poder Judiciário, que inclui a Justiça Eleitoral (cujo órgão máximo é o Superior Tribunal Eleitoral, integrada, em sistema de rodízio, por três ministros do STF, um dos quais preside o TSE , e ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Poder Legislativo, que inclui a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, é comandado pelo presidente do Congresso, cargo que cabe ao presidente do Senado. O Poder Executivo é exercido pelo presidente eleito (Jair Bolsonaro), que comanda sua equipe de ministros. Um ministro do STJ não se dirige a um ministro do poder Executivo (sua alçada está mais ligada a governadores). Um ministro do STF só se dirige ou cobra posições de um ministro do Executivo ou a um deputado ou senador quando provocado por uma ação. Na maioria dos casos é o presidente de cada poder que se dirige ao responsável por um dos outros dois poderes.

Em caso de ausência, do presidente, a chefia do Executivo é exercida, em linha sucessória, pelo vice-presidente eleito (Hamilton Mourão). O 2º na linha de sucessão é o presidente da Câmara (deputado Arthur Lira). O presidente do Senado é o 3ª na linha de sucessão. Mas estamos em ano eleitoral e assim como vários ministros tiveram que deixar o governo em março porque vão se candidatar a cargo político (governador, senador ou deputado federal), salvo quem está se candidatando à reeleição, precisa se afastar da função para preitear um cargo eletivo. E quem exerce caso no Executivo pode ficar inelegível se não respeitar os prazos da Justiça Eleitoral. Assim, pela regra do jogo, como o vice-presidente Hamilton Mourão é candidato (em princípio, a senador pelo Rio Grande do Sul), se assumisse a presidência (com a viagem do presidente Bolsonaro à Guiana, na 6ª feira), seria barrado pela legislação eleitoral. Para fugir do encargo, o general Hamilton Mourão encontrou uma agenda no vizinho Uruguai. O presidente da Câmara quer se reeleger em Alagoas, seu estado natal e escapou para Nova Iorque, onde participaria de seminário. Restou ao presidente do Senado. Rodrigo Pacheco, que eleito em 2018, tem mais quatro anos de mandato a partir de 2023, ter o gostinho de assumir a presidência da República por algumas horas. No governo Sarney, que era vice de Tancredo Neves e morreu após ser operado e não tomar posse, o então presidente da Câmara, deputado Paes de Andrade, usava o avião presidencial para fazer uma caravana à sua terra natal, Mombaça, no Ceará. Desta vez, Pacheco foi mais sóbrio e defendeu o poder Legislativo e as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral das novas investidas feitas pelo presidente Jair Bolsonaro em sua “live” de 5ª feira.

A exemplo de Donald Trump que, ao perceber que suas chances de reeleição diminuíam com a forte mobilização popular, começou a investir contra o processo eleitoral, afirmando que qualquer resultado que não fosse sua vitória “seria fraude”, cumpriu as ameaças, após derrota por mais de 3 milhões de votos e no Colégio Eleitoral, instigando a “infame invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, quando Joe Biden e Kamala Harris seriam homologados pelo vice-presidente Mike Pence, Bolsonaro instiga seus eleitores e as forças armadas contra o processo eleitoral das urnas eletrônicas, elogiado em todos os países democráticos como um paradigma de eficiência e lisura.

A última investida quebrou o princípio da hierarquia e respeito entre os três Poderes e é preciso historiar os fatos. Para tentar calar as denúncias de fraudes (jamais provadas, quando cobradas de Bolsonaro), o então presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, criou no ano passado um Comitê de Transparência das Eleições no Tribunal, convidando representantes de diversos setores da sociedade, incluindo OAB, acadêmicos, técnicos em informática, em legislação eleitoral e um representante indicado pelas forças armadas para acompanhar o processo. Bolsonaro logo vislumbrou um trampolim ou uma plataforma para levantar suspeitas contra o voto eletrônico e indicou o general de divisão (duas estrelas) Heber Garcia Portella para atuar em nome dos militares. Uma extensa lista de observações, a maioria questões prosaicas, foi levantada e o presidente Jair Bolsonaro cansou de alardear que seriam mais de 70 fragilidades do processo eleitoral. Em fevereiro, o TSE tornou públicas a maior parte das perguntas e seus respectivos esclarecimentos. Mas, quem sabe já no modo Trump de contestar as eleições antes de seis meses do voto, o presidente da República instou o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, a enviar ofício na 5ª feira, 5 de maio (pelo jeito. Bolsonaro acordou com o pé esquerdo neste dia) ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro (do STF) Edson Fachin, solicitando que sejam divulgadas as “propostas de aperfeiçoamento e segurança do processo eleitoral”. Essas propostas adicionais foram feitas após a divulgação das respostas do TSE, em fevereiro. O ministro da Defesa alega que agiu em reação à solicitação de um requerimento na Câmara dos Deputados. O autor do pedido de publicidade é o deputado bolsonarista Filipe Barros (PL-PR), o mesmo que virou alvo de investigação da Polícia Federal por divulgação de conteúdo sigiloso do inquérito de investigação do ataque de “hackers” ao TSE. Tudo o mais do mesmo. Acontece que ao explicar a situação, o ministro presidente do TSE, Edson Fachin frisou não se opor à divulgação para dar ampla transparência ao processo eleitoral, que não tem nenhum segredo de polichinelo. Mas entre os próprios “documentos enviados” estava um ofício “classificado, pelo próprio Ministério da Defesa, como de caráter reservado”.

Durma-se com um barulho desse. Onde está a falta de transparência? Mas isso não bastou para Bolsonaro. Durante sua profusa “live” de 5ª feira anunciou que o partido a que se filiou para concorrer à reeleição, o PL, do notório Valdemar Costa Neto, que cumpriu pena de prisão por corrupção no mensalão, quando atuava aliado do governo Lula, irá contratar empresa para fazer a auditoria nas eleições. Bolsonaro frisou que a auditoria não seria feita depois, mas antes das eleições. Fonte: JB. Foto: Foto: Reuters / Adriano Machado