Tradição atravessa gerações e mantém vivo o legado do 2 de julho
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Tradição atravessa gerações e mantém vivo o legado do 2 de julho

Levar os mais novos para ver a História, com inicial maiúscula, acontecendo ao vivo e a cores, foi o que motivou centenas de famílias a acordarem cedo no domingo (2). Enquanto as expressões das crianças estampavam encanto e curiosidade pelo Dois de Julho, pais, avós e bisavós aproveitavam a passagem dos caboclos para contar aos menores que o povo baiano lutou para tornar o Brasil independente, há exatos 200 anos. Do chão ou da sacada de casa, a catarse coletiva que enche as ruas da cidade no trajeto entre a Lapinha e o Campo Grande é fruto da tradição passada através das gerações.

O relógio ainda não tinha marcado 7 horas da manhã quando os pés do Caboclo e da Cabocla começaram a ganhar as primeiras homenagens dos baianos que aguardavam o início do cortejo, marcado para às 9 horas. Enquanto alguns se espremiam para fazer registros bem de perto, outros se mantinham na calçada, mas com olhares atentos a toda movimentação. Entre os menos afeitos a agonia, estava Ednalva Carneiro, de 55 anos, e os três netos, de 9, 5 e 2 anos. Os dois mais novos estreiavam a participação no cortejo.

No que depender da avó, saudar os heróis da independência fará parte do DNA da família por muitas gerações. Ela própria foi pela primeira vez ao desfile acompanhada de parentes, quando ainda era criança, fez questão de repetir a tradição com os filhos e, agora, com os netos. Quando algum dos pequenos pergunta quem são aqueles em cima das carruagens levando as bandeiras da Bahia e do Brasil, Ednalva tem a resposta na ponta da língua.

Milhares de pessoas acompanharam o desfile entre a Lapinha e o Campo Grande
Milhares de pessoas acompanharam o desfile entre a Lapinha e o Campo Grande. Crédito: Marina Silva/CORREIO

“Eu faço questão de trazer aqui para eles conhecerem a nossa História. O Dois de Julho é uma aula ao vivo, tento explicar quem são os caboclos e que eles lutaram pela liberdade que temos hoje”, afirma. Mais à frente no percurso, no Barbalho, Elenita, 70, aproveitava a localização privilegiada da casa onde mora para reunir os familiares e assistir ao desfile de camarote. Na varanda, sete crianças, entre netos e bisnetos da matriarca, observavam a passagem dos caboclos de pertinho. “Quando a gente sabe da História, o desfile ganha outra importância, é o que a gente tenta ensinar para eles desde cedo”, diz.

Milhares de pessoas fizeram, neste domingo (2), o percurso que rememora a entrada do exército libertador, após a expulsão definitiva dos portugueses, em julho de 1823. Quando o cerco feito à capital baiana foi suficiente para levar os invasores à exaustão, as tropas baianas entraram em Salvador como vencedoras da guerra. No ano seguinte, o cortejo começou a ser realizado, mas em percurso diferente: do Terreiro de Jesus até a Casa da Moeda.

Pessoas de todas as idades acompanharam o percurso
Pessoas de todas as idades acompanharam o percurso. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Nos quatro primeiros anos após a independência, o povo ainda não tinha abraçado a ideia do desfile. Isso só mudou em 1828, quando o carro do Caboclo saiu pela primeira vez, representando os populares que garantiram a expulsão definitiva dos portugueses. Sem a presença do povo simples, que lutou com armas improvisadas em batalhas sangrentas, os contornos da independência brasileira seriam outros.

Saber da importância dos guerreiros é o que mobiliza a cantora lírica Céliah Zain, 53, que há nove anos se veste de Maria Quitéria, sua conterrânea de Feira de Santana. Em uma época em que a participação de mulheres no exército era proibida, a heroína fingiu ser um homem e lutou em diversas batalhas no Recôncavo baiano e em Salvador.

Vestida de Maria Quitéria, Céliah estava na companhia de amigos que representavam outras figuras da independência, como Maria Felipa
Vestida de Maria Quitéria, Céliah estava na companhia de amigos que representavam outras figuras da independência, como Maria Felipa. Crédito: Maysa Polcri/CORREIO

Representar a figura histórica uma vez no ano tem um significado ainda mais especial para Céliah: é a lembrança de que a busca pela liberdade continua viva. “Nós temos que valorizar a liberdade. É por isso que eu me visto de Maria Quitéria, para que a gente possa celebrar a nossa independência”, afirma.

Viva os caboclos

Os sons das cantigas dos Guaranis dão o sinal de que é preciso abrir caminho para os caboclos passarem. O grupo, formado por cerca de 40 integrantes, mantém viva a tradição dos nativos da Ilha de Itaparica, que foram essenciais para a vitória baiana sobre os portugueses. Com cocar e indumentária que representa os caboclos, os homens estiveram à frente do cortejo abrindo passagem para quem vinha atrás.

Os Guaranis mantém a tradição dos itaparicanos viva há mais de 60 anos
Os Guaranis mantém a tradição dos itaparicanos viva há mais de 60 anos. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Quando as duas carruagens que conduzem as imagens do Caboclo e da Cabocla avançam nas ruas, o que reina é a democracia das emoções. Cada baiano e baiana reage conforme o coração manda e o resultado é uma mistura de sentimentos que arrepia a todos. Há quem chore, reze, grite saudações e até aproveite a festa para fazer um Carnaval fora de época. O importante é que as ruas comportam a todos.

Até a dificuldade física é deixada de lado por alguns momentos, em nome da continuidade da tradição. Oceane Silva, 50, venceu a luta contra o câncer quatro vezes e acompanhou o cortejo até o Pelourinho, bem ao lado da Cabocla, com o auxílio de duas muletas. Para ela e o marido, José Silva, 62, o Dois de Julho é um momento de devoção. “Os caboclos têm uma ligação muito forte com a nossa religiosidade e o candomblé. Viemos aqui pedir paz, saúde e proteção”, afirmou Oceane.

Por volta das 10h30, mais de uma hora após o início do desfile, as carruagens subiram a Ladeira do Boqueirão e quebraram à esquerda, chegando à rua principal do Santo Antônio Além do Carmo. Ao som das queimas de fogos, gritos de “viva os caboclos” e fanfarras, o que se viu foi uma multidão eufórica e emocionada. O bairro também abriga os moradores mais engajados na decoração das fachadas.

Muitos aproveitam a localização privilegiada para acompanhar o desfile de dentro de casa
Muitos aproveitam a localização privilegiada para acompanhar o desfile de dentro de casa. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Dedicação

A casa de Maria São Pedro, que completou 83 anos no dia da independência, chama a atenção de quem acompanha o cortejo cívico. Há 38 anos, a costureira decora a frente da casa com plantas e peças de fuxico e crochê – com cores das bandeiras. A residência, inclusive, venceu por cinco anos consecutivos o Concurso de Fachadas Decoradas, realizado pela Fundação Gregório de Mattos (FMG).

“Eu comecei a fazer a decoração porque quando me mudei para o bairro ninguém fazia e eu não aceitava. Hoje, fico mais animada para montar a minha fachada do que pelo meu aniversário”, contou Maria São Pedro, da janela de casa, enquanto assistia as fanfarras atravessarem o Santo Antônio em direção ao Pelourinho.

Pela manhã, alunos de 13 escolas da rede estadual desfilaram nas fanfarras no percurso entre o Barbalho e o Centro Histórico. Estudantes de outras 12 instituições de ensino se apresentaram no turno da tarde. Ao todo, mais de 1,5 mil alunos fizeram parte do cortejo. Os músicos e o público que acompanhava as fanfarras sofreram com a chuva forte por volta do meio-dia, mas, felizmente, a tempestade foi passageira e pouco tempo depois o sol já brilhava – mais brasileiro do que nunca.

Fanfarras tocaram sob a chuva
Fanfarras tocaram sob a chuva . Crédito: Marina Silva/CORREIO

Na Praça Thomé de Souza, as carruagens foram recolhidas às 11h30 e o desfile foi retomado às 14h, desta vez tendo como destino final o Campo Grande. As imagens dos caboclos ficarão ao lado do Monumento ao Dois de Julho, no Largo do Campo Grande, até quarta-feira (5), quando retornam à Lapinha, a partir das 18 horas.

Diversidade

A lembrança de que os povos originários, que estavam no Brasil antes da chegada dos colonizadores, fizeram parte da luta pela independência, foi reforçada por muitos grupos durante o cortejo. Helena Pataxó, 20, e outros indígenas da aldeia Juerana, localizada em Porto Seguro, participaram da comemoração do Dois de Julho pela primeira vez. Para a jovem, a presença reforça que os caboclos não são mera ilustração.

Indígenas da aldeia Jurema, de Porto Seguro, participaram pela primeira vez do desfile
Indígenas da aldeia Juerana, de Porto Seguro, participaram pela primeira vez do desfile. Crédito: Marina Silva/CORREIO

“Nossa presença aqui é de suma importância porque mostra que nós, indígenas, também fazemos parte dessa luta. Nosso povo ajudou a tornar o Brasil independente e isso deve ser lembrado”, afirma a jovem. Emanuel Pitta, presidente do grupo Os Guaranis, participa do cortejo há três décadas e reafirma a importância dos itaparicanos cruzarem a Baía de Todos-os-Santos para fazer parte da celebração. “Participar do Dois de Julho é representar os heróis nativos da Ilha de Itaparica que deram suas vidas pelo ideal de liberdade e para a consolidação da independência do Brasil”, defende.

O cortejo cívico não fica restrito apenas às homenagens. O Dois de Julho é, tradicionalmente, momento de reivindicações de diferentes categorias, que aproveitam a presença dos políticos no evento. Entre os manifestantes estavam professores, enfermeiros, integrantes do movimento negro e associações que representam pessoas que fazem parte do espectro autista.

Entidades aproveitam a data para fazer manifestações
Entidades aproveitam a data para fazer manifestações. Crédito: Marina Silva/CORREIO

O projeto Bahia livre: 200 anos de independência é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.

Fonte: Correio24hrs | Foto: Marina Silva/CORREIO