CANJEBRINAS TECNOLÓGICAS
Artigo

CANJEBRINAS TECNOLÓGICAS

Eu não sei você, mas, eu ando bastante apalermado com esse tanto de tecnologia que tem nos bombardeado ultimamente. Depois da invenção do smartphone em conluio com a internet todo mundo virou intelectual. Basta chegar em qualquer boteco e prestar assunto no que as pessoas andam conversando. Hoje se criou um tal de “trendsmap” que é nada mais nada menos que um mapa de tendências por região, basta um clique para se saber quais os assuntos mais comentados. Sou de uma época em que para se adquirir conhecimentos era necessário suar, estudar várias horas por dia. Não satisfeito com o que nos eram passado nas salas de aulas, buscávamos informações fora dela para que pudéssemos ficar minimante em condições de emitirmos uma ou outra opinião. A leitura hoje está fora de moda, as pessoas tem preguiça de ler e falam isso com um indisfarçável orgulho, como se o hábito da leitura fosse coisa de ultrapassados. Sou de um tempo em que comprávamos um LP – depois de esperá-lo por meses a fio (para cheirá-lo, admirá-lo, mostrar com ar de satisfação para os amigos), nos reuníamos para escutá-lo a exaustão e ficávamos horas discutindo o encarte, falando do produtor, dos músicos, dos compositores, dos arranjos, das letras e até da música. Ouvíamos por horas as rádios segmentadas tocarem um determinado tipo de música onde além da musicalidade podíamos ouvir uma ou outra entrevista do disck joquey com nosso artista predileto. Quando conseguíamos um jornal ou revista – geralmente com uma semana de atraso -, degustávamos com “requintes de crueldade”, parecíamos até canibais devorando um cérebro fresquinho. Sim, era assim que procurávamos nos informar naquela época.  

Nos dias de hoje o caboclinho ouve um ou outro podcast sobre um determinado assunto, após decorar, já sai discutindo cheio de marra, como se aquilo fosse uma verdade absoluta. Desconsidera completamente que a maioria dos podcast representa a opinião de alguém que, geralmente, tem algum interesse oculto em defender a tese.

Dia destes um caboclinho chegou no pé do balcão do boteco que frequento, pediu uma canjebrina, bebeu de uma golada, estalou a língua, butucou os “zóios” e bradou: – Vocês sabiam que Anita é a personalidade brasileira mais conhecida do mundo? – Eu particularmente falando – apesar de não curtir a música de Anita – tenho até uma admiração pela veia empreendedora da carioca que conseguiu alavancar uma carreira internacional por méritos próprios. Daí ser a personalidade brasileira mais conhecida no mundo já é forçar um pouquinho. Diante do silêncio que imperou no ambiente, lhe disse que naquele momento até poderia ser, só que, historicamente, existia uma renca de personalidades que era muito mais conhecido que ela. “Teima lá que eu teimo cá” e algum tempo depois pedi o auxílio luxuoso do Google que nos informou os 10 brasileiros mais conhecidos no exterior. Na lista elaborada através de um estudo feito pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts veio Oscar Niemayer, Ayrton Sena, Paulo Coelho, Gisele Bundchen, Ronaldo Nazário, Pelé, Anderson Silva, Villa-Lobos, Tom Jobim e até Santos Dumont – não necessariamente nesta ordem -. Ao olhar a relação, o caboclinho gritou:

– Esta lista foi feita pelos algoritmos viciados do seu smartphone, não acredito nisso não! –  Pois é. A coisa está mais ou menos assim.

O futuro da comunicação como a minha geração conheceu, na minha humilde opinião, está com os dias contados. Nem mesmo com a invenção da Smart TV, que é chamada de televisão inteligente unindo a televisão com a internet, conseguiu atrair esta nova geração, conhecida por “geração alpha” e que é completamente digital. Este povo faz – literalmente – tudo através de um celular, inclusive, chamadas. Assistem filmes, ouvem músicas, jogos de futebol, games, compra, paga, faz vídeos, faz cinema, fotografa, acompanha as Redes Sociais e ainda quebra o pau virtualmente com os seus desafetos. Pois, é. A coisa está “desjeitim”.  

“Candin” sempre foi famosa por ser localizada bem no “oco do mundo”. As coisas para chegarem aqui, antes chegavam em todos os outros lugares. Isso vale para as agências bancárias, luz elétrica e até a Televisão em Rede. Não é que a tal da tecnologia já deu as caras por aqui? Sim. Chegou em uma velocidade estonteante. Agora anda todo mundo antenado. Se chegar pra alguém e perguntar se prefere um televisor de última geração ou um celular, a resposta vem na hora. Nego prefere ganhar o celular. Basta sair às ruas para ver que hoje em nossa cidade tem mais celular que gente. Existe aplicativo pra tudo quanto há. Comer, beber, viajar, namorar, os cambaus… A única coisa que ainda pode se comparar com o número de celulares existentes por aqui é o número de botecos. Ô povinho danado para gostar de tomar uma. Em toda rua você encontra um ou dois botecos cheios até os beiços, independentemente de ser meio ou final de semana. Particularmente falando, um dos bairros onde mais existem botecos é o da Lagoinha, que é o segundo maior em número de habitantes. É um Bairro extremamente cordial onde todo mundo conhece todo mundo, Boteco do Fulano, Boteco do Sicrano, Boteco do Beltrano e por aí vai… devido à partida inesperada do dono, recentemente a nossa curriola viu-se obrigada a mudar de boteco. De uma hora para outra o caboclo deu uma bistunta e resolveu bater as botas, acabando literalmente com o ponto. Mudamos para um quarteirão abaixo, onde a vista é bem melhor e tem várias e frondosas árvores fornecendo sombras e oxigênio para os que se dispõe a tomar suas canjebrinas. 

Dia destes lá estava eu tomando uma Brahma e ouvindo uma musiquinha, eis que me chama a atenção um cara conduzindo um bêbado (mas, bêbado mesmo) em um carrinho de mão (galinhota). Ele empurrando, o bêbado querendo pular do carrinho e outros tantos bêbados correndo atrás, arreliando do infeliz. Eram tantos que parecia até uma procissão. Desceu rua abaixo e logo acabei me esquecendo do sucedido. Meia hora depois, lá vem a galinhota subindo, conduzida pelo mesmo condutor, levando um outro bêbado com outros tantos correndo atrás. Comecei a achar que aquilo não era uma coisa normal, embora, devo admitir que quando se trata da Lagoinha, mesmo as coisas mais absurdas parecem normais. Quando o cidadão passou conduzindo o terceiro bêbado na velha galinhota, aí já foi demais, fiquei pra lá de curioso e saí procurando saber o que vinha a ser aquilo! Que diabo estaria acontecendo? Ansioso, perguntei para a primeira pessoa que passou perto de mim: – Velho, que onda é aquela ali? O que está havendo? – Fiquei sabendo que um morador chamado Chorró acabara de criar na Lagoinha, através de um aplicativo, o serviço “Disque Bêbado”! Era uma coisa simples: Quando o cara ficava “medicado” e começava a encher o saco, metendo os cacetes e quebrando tudo, o dono do bar acionava Chorró que chegava com a sua indefectível “galinhotinha”, jogava o bêbado em cima e o levava à força pra casa. O custo ficava por conta do dono do Bar que na maioria das vezes pagava ao condutor em aguardente, duas, três, quatro lapadas (a depender do grau de infezação do conduzido). Quando o negócio estava bom, no final do dia, Chorró contabilizava de oito a dez entregas e não precisava gastar nada para tomar as suas “engasga-gatos”. Muitas vezes ele saía mais bêbado que os embriagados que ele levava pra casa.

Óbvio que este não era um serviço, assim… original. Me lembrei que alguns anos atrás no Bairro Celio Alves, um tarado chamado Abrão saía pela noite conduzindo uma galinhota similar e quando encontrava um ou outro bêbado caído, o jogava no carrinho de mão e ao invés de levar o infeliz para casa, levava era para um quartinho bem apertadinho que ele tinha nos fundos da casa em que morava e lá, se aproveitando da vexatória situação dos bebuns, “desdonzelava” impiedosamente os infelizes! Foram tantos casos que Abrão acabou ficando pra lá de famoso. Chegou ao ponto de uma renca de bêbados – por temor -, abdicarem da cachaça e entrarem às pressas para a lei dos crentes. O queda das vendas de bebidas alcóolicas neste período foi tão vertiginosa que os comerciantes fizeram até uma subscrição reclamando publicamente. Abrão – ainda hoje é vivo, porém, quando se encosta em algum cachaceiro somente para trocar um dedinho de prosa, o bêbado se cura na hora e dá no pé (o que não faz o medo, né?)!

Voltando ao “Disque Bêbado”, ali quase no final da tarde, vinha Chorró trazendo mais um bêbado (este era extremamente popular) conhecido pela alcunha de “Dão de Maria Pelanca”. Como tinha fama de brabo foi amarrado à galinhota por uma corda de nylon e enquanto se esgoelava gritando impropérios para o condutor, era transportado à trancos e barrancos já que Chorró havia recebido todo o seu pagamento em “doses homeopáticas” e já mostrava um grau de embriaguez tão intenso que se fosse acometido a algum teste de bafômetro, com certeza não passaria. A galinhotinha já fazia as curvas fechadas demonstrando que àquela altura dos acontecimentos as ruas estavam começando a ficarem estreitas e as pernas bambas de Chorró só confirmavam as minhas suspeitas. O cortejo já havia dobrado de tamanho e, se tem uma coisa que bêbado adora – além de falar cuspindo e aos berros – é fazer chacota dos seus pares. E assim, seguiam eles, correndo e gritando atrás do carrinho-de-mão conduzido em estado crítico pelo transportador!

– Êêêêêê… Leva ele! Leva esse “Póca-ôi”! – Era uma festa! O condutor tentava falar, mas, o seu estado de embriaguez – igual ou pior ao conduzido – atrapalhava. Como já havia recebido antecipadamente para desenvolver aquele ofício, o jeito era levar. Desce rua, sobe rua, entra em beco, sai ladeira, “a procissão” cada vez maior e lá ia o condutor cambaleando para um lado e a galinhotinha derrapando pro outro, Dão de Maria Pelanca todo amarrado (parecendo até um casulo) em cima, completamente enfezado e se contorcendo mais que lagarta andando em asfalto quente e o lote de vagabundos ali, reliento, atrás, fazendo um barulhão dos infernos!

Ao passar na porta de um dos bares, Chorró se lembrou de que tinha um recebimento pendente. Estacionou (mal estacionado) no meio fio o seu “ganha-pão” com o bêbado amarrado em cima e diante da incredulidade dos presentes virou goela abaixo meio copo de canjebrina (daquelas que matou o guarda) tendo ainda a petulância de estalar a língua. Depois de quase não ter forças para devolver o copo, Chorró diante do sol escaldante da tarde de verão, deu partida na galinhotinha e na primeira ladeira que encontrou pela frente, tombou por cima de Dão de Maria Pelanca, provocando um “estraique disgramado”, derrubando meia dúzia de bêbados que se encontravam por perto, se transformando em um emaranhado de pés, mãos, queixos, cabos e roda. Foi um estrupício! Os poucos bêbados que escaparam da queda, após meia hora de zoação, conseguiram consertar a galinhota e jogaram uns quatro ou cinco embriagados em cima, entre os quais, Dão de Maria Pelanca e o próprio Chorró, o (agora) ex-condutor, já na pele de um ilustre passageiro.

Desceram rua abaixo em uma algazarra “disgramada”. Ao longe, admirando a fidelidade e solidariedade da classe, eu ainda conseguia ouvir os gritos excitados dos cachaceiros. O que eu não tinha certeza era como ficaria a partir dali o exclusivo serviço desenvolvido no Bairro da Lagoinha. Será que depois desta o “Disque Bêbado” continuaria existindo?

 

FIM


Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Janeiro de 2023. Crescente de Verão.