Uma escuta telefônica feita pela Polícia Civil do Rio de Janeiro há dois anos mostra uma irmã do ex-policial militar Adriano Magalhães da Nóbrega acusando o Palácio do Planalto de oferecer cargos comissionados em troca da morte do ex-capitão.
Na gravação, Daniela Magalhães da Nóbrega afirma a uma tia, dois dias após a morte do irmão numa operação policial na Bahia, que ele soube de uma reunião envolvendo seu nome no palácio e do desejo de que se tornasse um “arquivo morto”.
“Ele já sabia da ordem que saiu para que ele fosse um arquivo morto. Ele já era um arquivo morto. Já tinham dado cargos comissionados no Planalto pela vida dele, já. Fizeram uma reunião com o nome do Adriano no Planalto. Entendeu, tia? Ele já sabia disso, já. Foi um complô mesmo”, disse ela na gravação autorizada pela Justiça.
Procurados, o Palácio do Planalto e a defesa de Daniela não se posicionaram sobre o conteúdo das escutas.
Adriano foi morto em 9 de fevereiro de 2020 após mais de um ano foragido sob acusação de comandar a maior milícia do Rio de Janeiro. Ele também era suspeito de envolvimento no esquema da “rachadinha” no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) na Assembleia Legislativa fluminense.
A gravação faz parte das escutas realizadas pela polícia no âmbito da Operação Gárgula, às quais a Folha teve acesso, que miraram o esquema de lavagem de dinheiro e a estrutura de fuga de Adriano.
Por mais de um ano a polícia ouviu conversas de familiares, amigos e comparsas do ex-PM. Daniela não é acusada de envolvimento nos crimes do irmão.
A fala sobre o Planalto foi feita em conversa com uma tia dois dias depois da morte de Adriano, num suposto confronto com policiais militares no interior da Bahia. Desde aquele dia a família suspeita de uma execução para “queima de arquivo”, o que até o momento não foi comprovado.
“Ele falou para mim que não ia se entregar porque iam matar ele lá dentro. Iam matar ele lá dentro. Ele já estava pensando em se entregar. Quando pegaram ele, tia, ele desistiu da vida”, disse Daniela.
Minutos depois, a mesma tia, cujo nome não foi identificado, comenta com outra irmã do ex-PM, Tatiana: “Daniela sabe de muita coisa, hein?”
As suspeitas sobre as circunstâncias da morte de Adriano foram levantadas pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, dias após a ocorrência na Bahia. Ele e Flávio defenderam uma perícia independente para analisar o caso.
A atuação do presidente na ocasião foi alvo de elogio de Tatiana em outra conversa.
“Ele foi nos jornais e colocou a cara. Ele falou: ‘Eu estou tomando as devidas providências para que seja feita uma nova perícia no corpo do Adriano’. Porque ele só se dirige a ele como Adriano, capitão Adriano.”
Ela, por sua vez, sugere na fala que a ordem para matar o irmão foi do ex-governador Wilson Witzel. “Foi esse safado do Witzel, que disse que se pegasse era para matar. Foi ele.”
As escutas apontam que, na avaliação da família, Adriano era acusado de integrar uma milícia apenas para vincular o presidente aos grupos paramilitares.
Tatiana é enfática em negar a acusação feita ao irmão, a quem classifica como bicheiro.
“Pessoal cisma que ele era miliciano. Ele não era miliciano não. Era bicheiro. […] Querem pintar o cara numa coisa que ele não era por causa de coisa política. Porque querem ligar ele ao Bolsonaro. Querem ligar ele a todo custo ao Bolsonaro.”
“Aí querem botar ele como uma pessoa muito ruim para poderem ligar ao Bolsonaro. Aí já disseram que foi o Bolsonaro quem assassinou. Quando a gente queria cremar diziam que e a família queria cremar rápido porque não era o Adriano. Uma confusão.”
Bolsonaro tem vínculos com Adriano ao menos desde 2005, quando num discurso na Câmara dos Deputados criticou a condenação do então tenente da PM em razão da morte de um flanelinha numa operação policial.
Dois anos depois, em 2007, a então mulher do ex-PM, Daniella Mendonça, foi empregada no gabinete de Flávio na Assembleia do Rio. Em 2016, foi a vez da mãe de Adriano assumir um cargo no mesmo lugar. As duas também são acusadas de envolvimento no caso da “rachadinha”.
O vínculo entre a morte do ex-PM e a proximidade com o presidente também foi tema de conversa entre Luiz Carlos Felipe Martins, sargento da PM acusado de ser braço-direito de Adriano, e um homem não identificado.
“Ele falava para mim: ‘Orelha, nunca vi isso. Estamos se fudendo por ser amigo do presidente da República. Porra, todo mundo queria uma porra dessa. Sou amigo do presidente da República e to me fudendo’. Morreu por causa disso” , disse o sargento.
Orelha, como era conhecido o sargento PM, foi morto numa emboscada no dia 20 de março de 2020, dois dias antes do cumprimento de mandados de prisão e busca da Operação Gárgula. O homicídio ainda não foi esclarecido.
Um dia antes do assassinato, o site The Intercept Brasil revelou informações do relatório da Polícia Civil que descrevia a disputa pelos bens deixados por Adriano após sua morte. Dez dias antes, o site também havia revelado os resumos dos diálogos em que Orelha e Tatiana mencionavam o presidente.
O site também afirmou, em outra reportagem, que promotores do Ministério Público avaliavam que o relatório da polícia sugeria um contato direto entre comparsas de Adriano e o presidente após a morte na Bahia.
A indicação viria da referência a “Jair” em duas escutas, a classificação de “HNI (PRESIDENTE)” a uma das vozes masculinas não identificadas nos resumos das escutas, e ao termo “cara da casa de vidro”, que seria uma referência aos palácios do Planalto e da Alvorada.
As vozes das conversas que envolvem “Jair” e “HNI (PRESIDENTE)” não se assemelham à de Bolsonaro. No segundo caso, “presidente” é a forma com que um dos investigados se refere ao interlocutor, que responde com o tratamento “diretor”.
Não foi possível identificar a quem se referia a expressão “cara da casa de vidro” a partir das escutas.
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Fonte: Folha de São Paulo | Foto: Divulgação/Policia Civil