Autor: Luiz Carlos Figueiredo
No final dos anos 1950 Nova Conquista começava a tomar forma, duas ruas aqui, duas outras ali, mais algumas acolá e o pequeno povoado começava a prosperar. Apesar das inúmeras dificuldades, o crescimento era constante. Continuavam chegando mensalmente dezenas de famílias, a maioria oriunda do “norte”. Entre estes tantos, apeou por aqui vinda da Vila dos Montes Claros, lá dos confins dos Gerais, a família de seu Carlos, um senhor alto, magro, de andar desengonçado e de uma chamativa calvície. Esta família foi a primeira a montar uma loja de tecidos na cidade. Carlos Antônio de Almeida chegou trazendo – além da sua família – uma inenarrável diversidade de tecidos e derivados, fazendo que em pouco tempo surgissem clientes de toda região turbinando financeiramente os seus cofres.
Os “Almeida” eram de uma bondade surreal, seu Carlos, dona Maria e seus três filhos adolescentes (fizessem chuva ou sol) saíam todo santo dia pelas parcas ruas do povoado distribuindo mingau para os necessitados. Quanto mais os Almeida faziam caridades, mais movimentada ficava sua loja. Enquanto os concorrentes gritavam nas suas respectivas portas tentando atrair os fregueses, na loja dos Almeida, para se comprar era necessário entrar em uma fila (tantos eram os clientes). Como não poderia deixar de ser, logo a inveja e a usura passaram a flertar com o cotidiano da família. Este excesso de bondade e zelo fez que os concorrentes enviasse um investigador até à Vila dos Montes Claros na esperança de descobrir algum “podre” do patriarca ou de alguém da família. Depois de sessenta dias de investigação o máximo que descobriram foi que o seu Carlos era um maçom. Na época pouca gente tinha noção do que representava este “título”, de qualquer forma, melhor isso do que nada. Assim, o “detetive” amarrou a informação na bainha da calça e chispou de volta. Aquela descoberta deveria valer alguma coisa já que a maçonaria era rodeada de um intrigante mistério tratado a sete chaves.
Após muita pesquisa com livros antigos e “informantes graduados”, os desafetos dos Almeida chegaram à conclusão que ser adepto da maçonaria era pertencer a uma seita secreta que adorava o anticristo! Ah, finalmente, Carlos o comerciante, seria desmascarado – pensaram. Na prática, ser maçom era ser livre e possuir bons costumes, não fazendo distinção de raça, religião, ideário político ou posição social. A maçonaria exigia que cada um dos seus membros possuísse um espírito filantrópico, buscando sempre a perfeição. Como era uma ordem secreta e desconhecida (e o desconhecido atrai o medo), logo as pessoas da pequena cidade induzidas pelos seus desafetos começaram a falar mal de seu Carlos e família:
– Não é pra comprar nada lá não… – dizia um. – Eles têm parte “cum” cão! É Maçom e maçom adora o “Cramunhão”! – falava outro. – Eu “num” vi, mas me “falaro” que ele só anda de manga cumprida para esconder um ovo de um galo preto que ele choca “dibaxo do subaco”! – afirmava outro com relativa convicção! – Quem “comprá” naquela loja, no juízo final vai ser “quemado” junto cum eles num caldeirão de “inxofre” de todo tamanho! – garantia um dos vários pastores que por aqui existiam na época. E assim, a propaganda negativa boca a boca não demorou em surtir efeito e logo quem passava diante da loja dos Almeida fazia o sinal da cruz. Tinha gente que cortava até voltas para não passar em frente. Até um despacho com velas pretas apareceu na porta do comerciante.
A verdade é que logo os prósperos negócios do seu Carlos desabaram. A loja parou subitamente o movimento e os devedores passaram a calotear, quem vinha de fora deixou de vir e a família que ajudava os carentes passou a necessitar de ajuda. Nem os irmãos de maçonaria (vindos dos Montes Claros) conseguiram ajudar, a loja estagnou e logo uma leva de cupins passou a devorar literalmente os tecidos ali expostos tendo sempre a língua do povo a afirmar que no meio da noite era possível se vir através do vidro da porta a figura do “Romãozinho” montando em um cupim gigante, guiando às gargalhadas os comedores de tecidos. Diante da pressão, seu Carlos, outrora forte e alegre, foi ficando debilitado, cabisbaixo, depressivo, doente e por fim, acamado. Não teve médico que conseguisse (por melhor que pudesse ser) reabilitá-lo.
O tempo passava e nada do comerciante melhorar. Sem muitas alternativas, dona Maria, esposa de moribundo, resolveu por conta própria procurar o padre Anfilóphio que residia em Vitória da Conquista, porém, vinha à Nova Conquista duas vezes por semana rezar a missa da igreja matriz. No desespero dona Maria se humilhou para que o padre fizesse de corpo presente algumas orações no leito de morte do seu debilitado marido. Assim que começou a visitar o comerciante, o padre simpatizou-se tanto com o infeliz que passou a visita-lo periodicamente. Enquanto seu Carlos agonizava entre a vida e a morte, o povo – que adora uma boa fofoca – saía espalhando aos quatro ventos que durante a noite era possível ver na cumeeira da casa da família os grossos berros de um enorme, chifrudo, desengonçado e rouco… Bode preto.
O padre foi ouvindo tanto estas livusias que logo ele mesmo passou a acreditar, e pressionado, começou a exigir que o comerciante confessasse os pecados que a comunidade achava que ele possuía, revelando de vez o grande segredo da maçonaria. Com esta ideia fixa, o pároco entrava no quarto do pobre infeliz, sentava-se em uma cadeira estrategicamente colocada perto da cama e dizia baixinho no ouvido do coitado:
– O Senhor esteja convosco, meu filho! Melhorou? – perguntava ansioso.
– Não, padre. Estou piorando! – dizia o moribundo com um fio de voz.
– Meu filho… – falava o padre quase engasgando – Fale aí a verdade, você tem ou não um bode preto no seu quintal? O povo tem visto algumas mungangas na sua loja, não minta pra Deus que ele ver e sabe tudo. Você tem ou não parte com o “demo”? Tem gente que já viu o Romãozinho dançando em cima do balcão da sua loja conduzindo um rebanho de cupins! Confesse para que eu possa lhe dar a extrema-unção! Estão espalhando por aí que você chocou um ovo de um galo preto debaixo do suvaco, é verdade? Qual é o segredo de vocês maçons? Fale-me, em nome de Deus, revele-me este segredo! Só se confessando e se arrependendo dos seus pecados, meu filho, que você poderá alcançar o reino dos céus! Você quer ser queimado no fogo do enxofre? Pois é… Se não falar a verdade este será o seu destino!
Mesmo debilitado e entre a vida e a morte, seu Carlos achava ridículo um conceituado pároco como Anfilóphio acreditar em tantas baboseiras. Assim, reunia o que lhe restava de forças pra dar risadas da cara do padre e dos que o acompanhavam.
O pároco foi inúmeras vezes à casa de Carlos, que, mesmo morrendo de dor, se negava a aceitar a “surrealidade” que dominara a racionalidade de Anfilóphio. Assim, à medida que os dias foram passando o comerciante foi ficando cada vez mais debilitado. Uma noite, após uma crise de tosse seca onde, por pouco, o coitado não botou as entranhas pela boca, à matriarca despachou às pressas alguns emissários para Conquista levando a informação que o seu marido estava nas “tábuas de Moisés”. A hora havia chegado. O interesse em descobrir o segredo da maçonaria fez que este padre ao ouvir a notícia, entrasse alucinado – com a batina completamente amarrotada – em uma rural e viesse “no passo do Lui” do seminário até o povoado de Nova Conquista.
O que o padre queria era ser o primeiro representante da igreja católica, a ter em mãos uma confissão de um maçom (devidamente documentada) revelando entre a vida e a morte, tudo o que a igreja buscava saber. Isso – pensava ele – o promoveria a Bispo. Assim, sapecou o pé na velha rural e veio “voando” para dar a extrema-unção ao moribundo.
Ao chegar Anfilóphio topou com um Carlos irreconhecível, debilitado, feio feito a peste, esquálido igual um faquir, respirando com dificuldade, só o couro e o osso e mal conseguindo balbuciar algumas palavras. O comerciante estava prestes a morrer. Após fazer as suas orações, o padre encostou a cabeça no corpo do moribundo e falou:
– Carlos, meu filho, você está morrendo, fale agora filho, esta é a sua última chance… Reveleo seu segredo. Alivie a suador… Confesse a Deus os seus pecados, qual a importância que o bode barbicha tem para a sua vida? O que aconteceu com o ovo do galo preto que estava no seu suvaco, chocou? O que foi que saiu de dentro? Não esconda nada de Deus… Qualé o segredo da maçonaria? – Foi neste exato momentoque Carlos desabafou:
– Oh, padre, oh, pobrezinho, como você é ingênuo, tão bobo e inocente… Você acha que eu revelaria algum segredo pra você? O segredo da maçonaria é manter o segredo… Rá, rá, rá… – Diante da resposta o padre perdeu completamente a compostura – Que porra é essa? Você me fez sair de Conquista pra ouvir isso? Confesse seu canalha, fale! Conte-me tudinho! Seu bosta de uma figa!
– Você quer que eu revele os segredos da maçonaria? O segredo, padre… O segredo na vida ou na morte é manter o segredo. Você perdeu o seu tempo! Não tenho nada pra lhe contar! Não preciso mais de você! Pode ir embora seu inútil!
– O quê? – gritava o padre garguelando o infeliz – Você vai falar tudo o que eu quero ouvir! – Não… Não tenho nada pra lhe falar, padre… Você é muito mais pecador que eu, Passar bem seu Anfilóphio… Adeus! – Balbuciou, virou-se na cama e… Morreu!… “Desjeitim”!
– Não morra não seu cafajeste de uma figa, fale comigo, revele-me o seu segredo… Fale diabo, confesse cacete! – Gritava o padre sacudindo violentamente o cadáver enquanto os fieis olhavam estupefatos! – Ele me enganou! Este fila da puta me enganou! Fala miserável véi, careca dos infernos! – De nada adiantou. Carlos partira com um sorriso sarcástico no rosto, tirando onda com a cara do padre Anfilóphio. Nervoso, o padre teve uma crise de “infezação” e após empurrar os fieis que queriam contê-lo à força quebrou tudo o que existia dentro do quarto… Espelhos, moringas, cadeiras, travesseiros, canecas e até o penico cheio de fezes que foi furiosamente atirado contra a parede!
– Ele me enganou, esse fila da puta me enganou! Este safado me passou a perna! Não revelou o segredo que eu queria. Levou com ele para o túmulo! Canalha, safado desgraçado! – Gritava ao tempo em que – mesmo contido pelos presentes – tentava esganar violentamente o cadáver. Foi um escândalo! Só parou quando foi dominado e amarrado pelos presentes. Para abafar o sucedido a paróquia transferiu o pároco para o estado de Sergipe. Quanto ao seu Carlos, teve um enterro digno com a presença da família e dos maçons que vieram de outras paragens. O povo ficou olhando de longe!
A partir daí, sempre nas noites da quaresma, há uma reunião espontânea na praça da casa dos Almeida. Uma renca de curiosos parava diante da residência do finado ficando horas olhando fixamente para a cumeeira da casa… – Viu ele, João? – Perguntava um. – Não, vi não! – Olha lá na cumeeira, tá vendo? Tá parecendo um bode preto! Se for ele daqui a pouco vai começar a soltar o berro rouco… Olá gente, olá ele! – Ninguém conseguia ver absolutamente nada! Mas que existia, existia!
Até alguns anos atrás alguns curiosos compareciam às “Sextas da Paixão” ao túmulo do comerciante na esperança de vê-lo se levantar da sepultura e revelar o tão temido segredo… Esperam até hoje!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
CSales, Quadras de Abril. Lua Minguante. Outono de 2022.
Foto: Divulgação