“EU PENSEI QUE TODO MUNDO FOSSE FILHO DE PAPAI NOEL”.
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“EU PENSEI QUE TODO MUNDO FOSSE FILHO DE PAPAI NOEL”.

A vida do Doutor Vicente nunca foi fácil. Para chegar à especialidade de ortopedista, o caboclo comeu o pão que o diabo amassou. Foi adotado, estudou na Bolívia, passou necessidade, trabalhou fazendo bicos e enfim, conseguiu o seu sonhado diploma. Assim que foi reconhecido como doutor em medicina, o moço resolveu abrir um consultório em Vitória da Conquista e logo as coisas melhoraram consideravelmente fazendo que ele se esquecesse de tudo o que passara na vida.

Diante do natal de 1982, um já conceituado doutor – ainda solteiro – resolveu fazer uma viagem e levar os sobrinhos a um famoso Shopping de Salvador quando deu de cara com Papai Noel sentado em uma bela poltrona, com um sorriso bonachão no rosto, apertando a bochecha de uma ou outra criancinha. Assim que “butucaram os zóios” no Papanicolau, os sobrinhos de Vicente correrem em sua direção e após abraços, beijos e músicas natalinas, o bom velhinho resolveu colocar um dos sobrinhos no colo. Pra que? Ninguém entendeu absolutamente nada. O doutor Vicente, conceituado, elegante e educado, subitamente se virou em um “mói” de coentro e quebrou o Papai Noel na porrada. Chutes, pontapés, tapas, pernadas, pescoção e uma infinidade de sopapos… só parou com a intervenção imediata da gloriosa polícia militar que separou a briga. Mas, para melhor entendemos o sucedido, vamos voltar um pouco no tempo…

O Natal – como é do conhecimento de todos – é uma festa cristã que celebra o nascimento de Jesus Cristo, entretanto, segundo a enciclopédia britannica, a origem da celebração junta mais elementos do que apenas o aniversário do profeta maior. Esta festa é celebrado em todo o mundo, de acordo com o calendário gregoriano, no dia 25 de dezembro. a tradição reúne desde enfeites e velas até a troca de presentes, além de comidas E bebidas fartas. Mas a cultura romana seria a verdadeira responsável por definir a data de 25 de dezembro por coincidir com o solstício de inverno no Hemisfério Norte, que, segundo a geografia, é conhecido como a “noite mais longa do ano”. Naquela época, o calendário seguido era o juliano. A data simbolizaria justamente que Cristo é a luz do mundo.

A Festa desenvolvida no hemisfério norte migrou com louvor para o hemisfério sul. Assim, quando chega o natal, esquecemos tudo o que fomos (de bom ou ruim) ao longo do ano e nos transformamos nos seres humanos mais sensíveis existentes na face da terra. Ficamos gentis, trocamos presentes, abraços, beijos, desejos e choramos até com beijo de novelas. Seria o natal a festa ideal para um país com a distribuição de renda que temos?

Um dos compositores mais importantes da MPB é um ilustre desconhecido – para a maioria absoluta da população. Poucos sabem quem foi o baiano de Santo Amaro (Não. Não é Caetano Veloso) e principal compositor de Carmem Miranda, que depois de uma bistunta se suicidou em 1958. Estamos falando de Assis Valente que sobreviveu no Rio de Janeiro dos anos 1950 vendendo as músicas que compunham. Assis fazia uma música por dia, este era o seu ganha-pão. O autor de “Camisa Listrada”, “Alegria”, “O Mundo Não Se Acabou” e “Brasil Pandeiro” – entre outras – também foi o autor de “Boas Festas” a música que desconstruiu completamente a história do natal feliz, cantada em prosas e versos aqui na antiga Terra de Vera Cruz. Enquanto todo mundo falava da “Noite Feliz e do Sino pequenino que tocava em Belém”, o compositor baiano nos dava um choque de realidade. Sim, cortava literalmente à própria carne para mostrar que mesmo na noite de natal, continuávamos sendo o Brasil da fome, da peste, das pandemias, da miséria, do preconceito e da má distribuição de renda onde poucos tem muito e muitos nada tem. Um Brasil ignorante, miserável e hipócrita!

“Anoiteceu, o sino gemeu e a gente ficou feliz a rezar… Papai Noel, vê se você tem a felicidade pra você me dar… Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel, bem assim felicidade, eu pensei que fosse uma brincadeira de papel. Já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem, com certeza já morreu, ou então felicidade é brinquedo que não tem (…)”

Aqui na nossa “aldeia”, nosso primeiro “contato imediato” com o Bom velhinho se deu em meados da década de 1970. O prefeito Moisés Felix deu uma bistunta e resolveu distribuir uma renca de brinquedos para as criancinhas carentes – não confundir com a história já contada do prefeito Jaimilton que se invocou de “encarnar” Papai Noel e por pouco não foi linchado. Os brinquedos distribuídos foram insuficientes e a molecada perseguiu Papai Noel pelas ruas da cidade. Já com Moisés, após encher um velho galpão de brinquedos e fazer que a molecada comparecesse ao evento de banho tomado e de roupas limpas, exigiu que os infelizes entrasse em uma interminável fila. Contratou alguns babões para distribuir os brinquedos, quem necessitava ficou sem receber. Foi aí que o povo deste torrão foi apresentado à famosa discriminação social. Os “baba-ovo” escolhiam criteriosamente quem receberia ou não os presentes enviados por São Nicolau. Geralmente, só quem não precisava era contemplado. Uma boneca pra Rosinha, um carrinho pra João, um patinete para Felipe e uma bola pra Adão. Pra Joaquim que era filho da raizeira Luzia e pobre de marrédeci e sonhava com um brinquedinho mais taludinho, apenas meia dúzia de bolas de gudes. A primeira distribuição de brinquedos de “Candin” deixou muita gente traumatizada. Como veem, esta pratica é mais antiga que a posição de dormir.

Mas, voltemos à questão do Doutor Vicente. Filho adotivo de uma família remediada, o caboclo, do alto dos seus 10 anos de idade (ainda no seio da sua família que era bastante humilde) não conseguia entender o porquê de o Papai Noel só presentear os coleguinhas ricos. Todo mundo ganhava presente, menos ele. Quando chegava a noite de natal, ele ia do êxtase à depressão em minutos. Espalhava os seus calçados pela casa todinha, tocaiava da chaminé, passava a noite em claro e nada do velhinho aparecer, aliás (pensava ele), este senhor devia ter o poder de se invultar, já que aparecia em praticamente todas as casas vizinhas, menos a dele. Bastava o dia raiar para se ver Mariazinha com a sua boneca vistosa, João com a sua bola novinha, Antônio com o seu carrinho de pilha e Joaninha com sua sandália colorida, tudo presente de Papai Noel. Porque ele não recebia? O que fizera ele ao bom velhinho para ser excluído assim tão cruelmente? E à medida que passavam os anos, a sua esperança ia se esvaindo, se transformando em decepção que dava lugar ao ódio, ao rancor, ao desprezo. Houve um momento que ele chegou a pensar em matar Papai Noel, porém, não era assassino, deixaria isso pra lá, até porque, o Papanicolau o desprezava tanto que jamais aparecera pra ele – nem mesmo em sonhos.

Com doze anos, após a morte da sua querida genitora, teve a felicidade de ser adotado por uma bondosa família que o levou para São Paulo. Teve carinho, respeito, amor e estudou com todas as forças que possuía. Logo, lá estava ele cursando medicina na Bolívia, voltou médico formado, fez residência e passou a consultar em uma das maiores cidades da Bahia. Com a cabeça no trabalho se esquecera completamente do Papai Noel. Seus natais passaram a ser dias normais. Quando montou o consultório e passou a progredir na vida, levou os sobrinhos para uma fantástica viagem à nossa capital.

Excelente hotel, praia, bons restaurantes e os sobrinhos insistiram para irem ao Shopping. Véspera de natal ele nem imaginou que pudesse topar com o seu maior desafeto. Bastou entrarem para darem de frente com o velhinho de roupa e gorro vermelhos, com um saco de brinquedos nas costas, em um cenário extremamente colorido, sorrido descontraído para ele:

– Hô, hô, hô… Feliz natal criançada. Vocês foram bons alunos? Foram bons para os seus pais? Só os que foram bons ganharão presentes… senta aqui miudinho… hô, hô, hô…

Em um primeiro momento o Doutor Vicente ficou paralisado. Não acreditava que depois de tanto tempo, tanta decepção, tanta dor ele fosse se encontrar com aquele velho safado, puxa-saco dos ricos, discriminador dos pobres… Seu corpo tremeu, sua vista escureceu, foi tomado por uma raiva indescritível, um rancor inesquecível e completamente descontrolado partiu pra cima de Papai Noel.

– Seu fila da puta, vagabundo, finalmente lhe achei seu corno velho! Toma, toma, toma… – Já chegou descendo a ripa. O pobre do ator que interpretava Papai Noel não entendeu absolutamente nada. Recebeu a primeira bordoada, caiu estatelado, tentou se levantar foi seguro pela barba (no caso dele, barba real) e só viu o cacete comer. – Para, deixa de lambança, para… tira este louco daqui… – De nada adiantava gritar… Apanhou feito um desvalido. Foi necessária a intervenção dos policiais para segurarem o maluco. No chão, o Papanicolau tentava respirar todo ofegante, com o olho roxo, a cara inchada, o dente quebrando, o nariz mochilado e banhado em sangue. Preso em flagrante o Doutor Vicente pagou a fiança e respondeu em liberdade, quanto ao pobre do Papai Noel, após passar uma semana no hospital, não sabe até hoje porque levou aquela surra. Só sabe que a partir daquele dia, nunca mais quis ver uma roupa vermelha pela frente e durante o natal fica bem longe dos shoppings.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadra de Dezembro de 2022.

Minguante de Verão