A INCONTROLÁVEL FÚRIA DO MAJOR ADAMASTOR PEREIRA.
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A INCONTROLÁVEL FÚRIA DO MAJOR ADAMASTOR PEREIRA.

Em meados dos anos 1952 da era cristã, o povoado do Porto de Santa Cruz foi sacudido por uma enorme onda de violência. Quadrilhas do norte de Minas passaram a saquear as fazendas da região roubando dezenas de cabeças de gado. Revoltados, os coronéis se reuniram e foram até São Salvador requisitar do governador o adjutório da gloriosa polícia militar, em menos de 30 dias desaguaram no povoado dois jipões entupidos até os beiços de soldados, comandados pelo famoso Major Adamastor Pereira. Ao chegarem os militares foram recebidos com festa pelos coronéis que os hospedaram na fazenda e fizeram uma passeata pelas ruas do vilarejo, soltando dezenas de fogos de artifícios, culminando com um churrasco com dois bois no rolete. O Major Adamastor Pereira era um militar de muita fama e do alto dos seus 70 anos fora acometido por um AVC e ficara com a boca torta e andava todo troncho, embora, paramentado igual aos famosos cangaceiros. Na primeira manhã pós chegada, os militares já tocaram terror nas estradas vicinais, prendendo dezenas de suspeitos e fazendo que muitos bandidos fugissem na calada na noite. Em menos de um mês o vilarejo se tornou o lugar mais pacato do mundo. Adamastor gostou tanto do povoado que não queria mais voltar para São Salvador. Após receber uma comunicação do comando geral exigindo o seu retorno imediato, o Major se preparava para partir quando o destino fez que ele batesse os olhos na mais linda moça do Porto, Laura, a professora.

Esta donzela era uma morena alta, 29 anos de idade, curvilínea, de fina educação e uma líder nata. Trabalhava lecionando pela manhã e tarde e gozava de um admirável respeito no vilarejo. Ao ver a moça, o debilitado Major se apaixonou na hora. – Tarde, linda… você é casada? – Quis saber o Major constrangendo completamente a professora. – Não, Major. Não sou e não quero, já sou casada com a minha profissão. – A partir deste dia, um Major completamente descontrolado passou a assediar a moça. Quando ia dormir, percebia que o Major a observava com uma luneta, bastava se levantar para ver o militar de pé na sua porta a olhando com os seus olhos esbugalhados e com a sua boca torta. Diante de tanta insistência, Laura resolveu dar um basta. – Major, com todo o respeito, o senhor está me constrangendo. O senhor tem idade de ser o meu pai, o que pretende com esta insistência? –  Diante da resposta ríspida, Laura ficou paralisada:

–  Eu me apaixonei completamente por você, Laura. Quero que seja a minha esposa! – Perplexa e boquiaberta, a moça gaguejou.

– … O senhor é um homem casado, Major, tem esposa e tem filhos. – Quem lhe falou que eu sou casado? – O senhor usa alianças. Pense na sua mulher que provavelmente está lá na capital a lhe esperar. Pense nos filhos, que imagino que o senhor tenha e que à exemplo da sua esposa também esperam pelo senhor! Por favor, deixe-me em paz! – Nervoso, o Major gritou para todo mundo ouvir:

– Ou você me aceita espontaneamente ou eu lhe tomarei à força! Nada neste mundo vai me impedir de tê-la! – Desolada, Laura se reuniu com a família pediu o adjutório do líder político da região, o Coronel Miguelão. Ao saber da reunião o militar ficou furioso e saíu distribuindo pontapés pelas portas das casas do povoado. Extremamente enfezado e espumando pelos cantos da boca ele deu um ultimato à moça. Ela teria duas semanas para aceitar o casamento, se não aceitasse ele a tomaria à força. A notícia caiu como uma bomba no povoado. Diante da determinação do Major, o Coronel Miguelão se reuniu com outros líderes e marcou uma audiência com o comandante militar.

– Major, o senhor veio aqui para nos trazer paz, conter os roubos de gado. Agradecemos o seu trabalho, porém, você não veio aqui para confiscar mulheres, quer que o seu comandante fique sabendo desta sua atitude irresponsável? –  Furioso o Major agarrou a garganta do Coronel. – Está me ameaçando seu coronel de meia-tigela? – Já falou jogando o coronel no meio da rua. – Para, Major. O senhor está agredindo o líder político do povo. – Gritou um dos coronéis. – Saíam daqui ou vou meter todos no xilindró e quebrá-los no pau. Sumam daqui rebanho de parasitas.

O desacato ao líder político chocou completamente o vilarejo, que o viu ser enxotado aos gritos, desolado, Miguelão chorou por mais de três horas encarreadas. Assim, a polícia que chegou para prender os ladrões de gado, acabou virando um problema. A partir deste dia, a vida de Laura virou um inferno. Quando se levantava para trabalhar lá estava o Major diante da sua casa! À noite, lá estava ele no seu quintal, a olhando com a luneta. A família já não tinha para quem se queixar. À medida que o tempo ia passando, o prazo ia se esgotando e a população se revoltando. Alguns moradores chegaram a protestar na porta da delegacia improvisada. Adamastor, cheio de autoridade, mandou descer a pêa em todo mundo. A manifestação foi desfeita debaixo de um “samba de cacete”. Assim, Laura teve que conviver com a presença do milico maluco lhe assediando o tempo inteiro.  Os Coronéis, apavorados, se reuniram na calada da noite em um casarão fora do povoado e depois de uma acalorada discussão enviaram João Camarão, filho do Coronel Saraiva Guimarães à São Salvador, relatando ao alto comando militar os últimos acontecimentos. Camarão, além de letrado era um dos poucos que sabia ir sozinho à capital. Assim, procurando não levantar suspeita, montou em uma velha rural Willis e na calada da noite “deitou o cabelo”. Enquanto alguns moradores atraíram o major e seus homens com um alarme falso, uma força tarefa liderada pelo Coronel Miguelão levava Laura para um esconderijo seguro.

No dia seguinte, como em todas as manhãs, lá estava ele diante da casa de Laura com a sua farda engomada, o seu bigode aparado e mais perfumado que filho de barbeiro. Adamastor se locomovia caxingando e quando ansioso se babava todo com a sua boca torta.  Assim que chegou, postou-se a porta e ficou só esperando a professora sair para ministrar as suas aulas. As horas foram passando lentamente, e o major, munido da sua inseparável luneta começou a desconfiar que havia alguma coisa errada. Primeiro, deu uma geral no entorno, tudo estava parado demais. Rodeou pelo oitão da casa, tudo trancado. Constatou, a contragosto, que apesar de normal o silêncio era constrangedor. Assim que foi passando o tempo, Adamastor começou a se estressar. Esperou agoniado mais algumas horas e tomado de pavor arrombou a porta da casa com um pontapé. Ao constatar que a casa estava vazia, desesperou-se. Laura tinha fugido do povoado com toda a sua família. Quem testemunhou o fato falou que jamais se viu um homem tão enlouquecido, tão transtornado e tão desequilibrado. Alucinado o Major Adamastor Pereira subiu a principal rua do povoado gritando ensandecido, quebrando o que encontrava pela frente:

– Lauraaaaaaaa! Pra onde você foi, Laura? Vou lhe retalhar todinha, sua puta fujona! – Corria caxingando feito um aluado com uma pistola em cada mão. – Não adianta se esconder! Eu vou lhe achar nem que tenha que “escarafunchar os cafundós dos zinfernos”! – Irritado, colocou os soldados em estado de alerta e passou a tropa em revista. Alguns tinham passado a noite “gandaiando” no cabaré de Ana Calanga, porém, diante da fúria do Major, em poucos minutos estavam perfilados, impecavelmente fardados – alguns com metade da barba por fazer -, aguardando ordens do comandante-chefe da região do Porto. – Prestem bem atenção!… – Berrava o enfezado Major.  – Não vou repetir e ái de quem não cumprir as minhas ordens… Laura fugiu e se escondeu…  – Passou a tropa em revista olhando bem dentro do olho de cada um. Os soldados tremiam de medo. O Major parecia possuído, revirava os olhos vermelhos e babava compulsivamente. Sua boca troncha impelia a baba misturando ao suor que molhava a sua farda impecavelmente engomada. As mãos do militar tremiam desordenadamente… – Não foram longe, estão por perto! Quero cada casa, cada cômodo, cada cama, cada cadeira, cada mesa, cada banheiro, cada pedra deste lugar revirados… Se eu não achar a minha amada vou matar cada um dos moradores! – Louco de “pedra”, o militar começou a atirar em tudo que se movia. Gatos, cães, bodes, porcos, galinhas, papagaios de estimação, passarinho presos em gaiolas, patos, gansos e até urubus…  Atirava e arrombava as portas na base do chute. Camas, cadeiras e mesas eram jogadas no meio da rua, famílias inteiras eram agredidas, casas eram queimadas e o terror imperava no vilarejo. Depois de muito procurar, Adamastor e os seus homens chegaram à porta da igreja e deram com um enorme ninho de marimbondos-cavalos arranchados. Possivelmente os bichos iam passando e resolveram pernoitar por ali, furioso Adamastor mandou bala nos marimbondos. A partir daí o caldo entornou, furiosos, os marimbondos que eram de tamanho descomunal saíram picando o que achavam pela frente. As primeiras vítimas foram os homens do Major, impotentes diante de tantas ferroadas, vindas de todos os lados, gritaram desesperados.

– Ái, sai pra lá bichos nojentos, acode aqui, acode… – De nada adiantavam os gritos, os furiosos marimbondos flecharam em cima da tropa fazendo que corressem cada uma para um lado diferente, largando as armas pelo caminho, tirando as fardas e sendo perseguidos por uma nuvem preta com ferrões de todo tamanho. Os que conseguiram chegar ao rio, mergulharam e ficaram submersos por um bom tempo, outros caíram pelo caminho enquanto os bichos distribuíam ferroadas em cães, gatos, galinhas e porcos… deixando um rastro de morte. O Major ao ver os bichos zunindo em sua direção, ignorante que era, abriu fogo com a sua automática, em pouco tempo ficou completamente coberto pelo enxame. Atônito diante das ferroadas, tentou correr, tropicou nas próprias pernas e desabou de cara no chão e os marimbondos montaram em cima e o picaram tanto que o fez perder os sentidos. Nenhum soldado teve coragem de socorrê-lo. Depois de meia hora de destruição os bichos voaram tranquilamente em direção ao rio, deixando para trás um rastro de destruição. Após a partida dos marimbondos, a população saiu lentamente de suas casas e testemunharam in loco o Major com o corpo todo inchado, repleto de ferrões, balbuciando baixinho: – Laura… meu amor… eu quero você, Laura…

Levado às pressas para a Vila da Conquista foi internado em um hospital, assim que teve alta a cúpula da polícia militar soteropolitana já o esperava. Foi detido e levado para um presidio da capital onde foi julgado e preso. Nunca mais se ouviu falar no Major Adamastor Pereira.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e Escritor

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Maio de 2024. Minguante de Outono.