VOCÊ ESTÁ PENSANDO QUE CACHAÇA É ÁGUA?
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VOCÊ ESTÁ PENSANDO QUE CACHAÇA É ÁGUA?

– Me dá uma esmolinha pelo amor de Deus… – Estava eu e mais dois amigo em Vitória da Conquista em meados dos anos 1980, quando o cidadão se aproximou da gente. Baixinho, gordinho, barba por fazer, maltrapilho, calçando uma velha sandália de dedos, com um mal cheiro terrível e com uma cara de pinguço lascada. Meti a mão no bolso e o amigo que estava ao meu lado bradou: – Dá não, é pra beber cachaça. – Olhei pra ele e mesmo assim dei uma moeda que tinha no bolso. Fiquei imaginando como seria a vida daquele moço sem a cachacinha nossa de cada dia, pelo menos isso, talvez fosse o único prazer que ele pudesse desfrutar naquele momento. O álcool tem o poder de mascarar uma ou outra situação e aliviar a dor dos menos afortunados. Antes que você imagine que eu esteja fazendo apologia ao álcool vou logo dizendo que este preâmbulo é apenas porque me lembrei de Jovino que era um caboclinho que morava no interior do município e era um excelente marceneiro. Sócio do cunhado, ele fazia qualquer pedaço de madeira virar móveis. Bastou botar uma gota de pinga na boca para se transformar em um alcoólatra inveterado. Bebia tanto que precisava ser conduzido, morto de bêbado, até a marcenaria. A coisa ficou tão insustentável que o cunhado teve que ter uma conversa dura com ele: – Josino, assim não dá. Você é um excelente profissional só que o álcool está lhe destruindo, você não está nem conseguindo trabalhar mais, como vamos pagar as contas? – Deus proverá! – Respondia ele com a voz embargada se atirando na mesa que servia como suporte para a confecção dos móveis e dormia a noite todinha roncando feito um leitão. Como a coisa foi piorando, o jeito foi o cunhado pedir o adjutório dos proprietários dos três botecos existentes na localidade. – Gente, queria pedir o apoio de vocês, Josino é um excelente profissional, porém a canjebrina está comendo os neurônios dele e nem trabalhar consegue mais. Queria pedir para que vocês não vendessem mais pinga pra ele, pode ser? – Diante do drama, os proprietários aceitaram o pedido. No dia seguinte, com uma sede lascada o caboclo descia da cama e antes mesmo de escovar os dentes já corria para o primeiro buteco que encontrava pela frente. – Fenelon, bota aí uma dose caprichada daquela que matou o guarda? – Ô Josino, lamento, mas a cachaça está em falta. – Com a garganta coçando o caboclo corria para o buteco mais próximo: – Mestre Onório, bote aí uma dose caprichada daquela, bote! – Leva a mal, não, Josino. Não estamos vendendo cachaça mais não, me perdoa. – Quase em pânico, corria para a tenda de Ozorino que ficava no final da rua. – Ozorino, me salva aí, véi, bote uma talagada aí, bote! – Desculpe, Josino. Acabou. – Dizia com a cara mais linda do mundo. – Acabou como se eu vi Pedro Meia-Garrafa sair daqui agora com uma Meiota? – Pois é. Ele comprou a última que tinha. – Neste dia o desespero do pobre diabo foi tanto que o ele faltou endoidar. Teve até crise de abstinência. Passou o dia todo emburrado, trabalhou e no final da noite se lembrou que ali na tenda tinha álcool, assim, correu até a dispensa, pegou uma garrafa e virou no gargalo. Ô alivio! Bebeu que escorreu pelos cantos da boca. Estalou a língua e se sentiu outro. No dia seguinte, assim que o cunhado chegou se surpreendeu com Josino bêbado feito um gambá, babando em cima dos móveis. Imaginou que alguém havia quebrado o combinado. Ensandecido, constatou que ninguém tinha vendido nada pra ele, assim, depois de muito matutar foi até a dispensa e viu as garrafas de álcool vazias. Começou a achar que o caso de Josino não tinha jeito, a última cartada foi misturar o álcool ao verniz antes de levar para a tenda. Ao ver que o cunhado misturara o álcool, Josino teve uma crise de infezação de meter medo, porém, dilacerado pela sede que atormentava a sua alma, constatou que o gosto do verniz não era tão ruim assim e fundou dentro das garrafas de verniz e quando o cunhado chegou no dia seguinte o encontrou completamente embriagado, com um sorriso no rosto e a boca toda lambuzada. Era realmente um caso perdido, foi internado às pressas em uma instituição do sul da Bahia. Nunca mais se teve notícias do caboclo.

Outro que tomava uma canjebrina lascada era Juquinha de Madalena, que trabalhava vigiando os barracos da feirinha no Bairro Brasil, em Conquista. Loquaz, comunicativo e de confiança, o moço andava ostentando uma velha farda rasgada, um coturno furado e um cassetete de todo tamanho atrelado à cintura. Quando recebia seus proventos comprava logo meia dúzia de litros de 51 e enchia um corote de madeira. Bebia até se fartar e saía as ruas gritando: –   Hoje estou sem razão! – Todo mundo já sabia que o moço estava moqueado, quando sóbrio o grito era outro: – Hoje estou com razão! – todo mundo sabia que ele estava sóbrio. Outra característica de Juquinha era intimidar os alunos que moravam no entorno da feirinha e que voltavam à noite do Centro Integrado. – Vão pra suas casas que depois das 11 eu não conheço ninguém, meto a pêa em todo mundo. – Os mais ajuizados iam logo embora, os mais danados depois das 11 davam uma canseira danada correndo do vigia. Uma bela noite, ao voltar do colégio a molecada pegou Juquinha “sem razão”, dormindo embriagado debaixo de um dos barracos. Criativo os moleques tiraram a calça do vigia, misturou a clara de um ovo com pimenta e jogou na parte de trás da cueca do infeliz. Imagine a situação de Juquinha ao acordar no dia seguinte, morto de ressaca, sem calça, com o fiofó ardendo e todo lambuzado de clara de ovos? A molecada chegou a inventar que viu um mendigo de todo tamanho “desdonzelando” o infeliz. Juquinha virou piada, tendo que conviver com a dúvida se tinha ou não sido “desdonzelado”?

Dula era um goleiro que existiu por aqui no final dos anos 1970. O cara era um paredão. Baixinho para ser goleiro, porém, tinha uma envergadura de meter medo. Debaixo dos três paus pegava até pensamento. Voava, saltava, dava canga, caía aos pés dos atacantes quando estes apareciam cara a cara e deixava a torcida eletrizada. O problema do excelente arqueiro era que cortava uma água lascada! Só jogava bem quando estava bêbado. Quando a nossa seleção enfrentava algum time de Conquista, Pedra Azul ou Medina, Dula era trancado pelos amigos 24 horas antes para não beber. Quando entrava em campo contrariado levava frangos apoteóticos. Assim que descobriram que ele só jogava bem, “medicado”, o deixaram à vontade e ele fechava o gol. Certa feita enfrentamos o time do “Super Alfa”, um dos melhores da liga amadora de Vitória da Conquista. Dula virou o bicho, pegou tudo. O famoso centroavante do clube tinha um petardo na perna esquerda. Saiu cara a cara com Dula e encheu o pé, a bola foi tão forte que ao encachar – sem dar rebote – o impacto fez que Dula desse uma cambalhota ao contrário. Caiu e apagou sem soltar a bola. Neste dia o valoroso escrete Nova-Conquistense conseguiu um excelente empate com o melhor time amador de Vitória da Conquista. Certa feita, Dula foi convocado às pressas pela nossa Seleção para disputar um quadrangular em uma rica fazenda de Sossiveno, nos Gerais. A fazenda era enorme, com campo gramado e tudo (coisa raríssima na época), com dois times da região e um combinado de Belo Horizonte onde os filhos do dono jogavam. A turma da Seleção, sabendo da vontade incontrolável de Dula pros lados da canjebrina, iludiram o rapaz e o prenderam até a hora do jogo. Contrariado o arqueiro levou dois frangos escandalosos, primeiro tempo, dois a zero para o adversário. Desolado, o zagueiro Zé Dedão que sabia que o caboclo precisava de um “incentivo”, encheu uma meiota de pinga disfarçada de água e deu a Dula.  Assim que o moço tomou uma talagada e deixou a garrafa encostada no pé da trave virou o capeta e pegou tudo. Voava de um canto ao outro da trave. Defendeu várias bolas à queima roupa e sustentou a virada do nosso time por três a dois. O detalhe era que assim que fazia a defesa, antes de botar a bola em jogo ele ia até o pé da trave e virava a meiota na boca. Neste dia a nossa Seleção foi campeã nos pênaltis decidindo com os mineiros de BH. Dula pegou três penais, frustrando a farra do lote de vagabundos. Ninguém entendeu o porquê de ele fazer as defesas e correr para abraçar Zé Dedão. Este caboclo jogou de goleiro até os quarenta e alguns, quando largou o futebol e continuou com a cana. Aposentado dos campos, ganhava o seu sustento carregando no mato os caminhões de madeiras. Nesta época o Cândido-Salense ainda não tinha noção do que representava o desmatamento e dezenas de carradas saíam diretamente das nossas matas para o sudeste. Dula dava um duro danado trabalhando de segunda a sexta e no final de semana vinha para a cidade encher o pé de cana. Certa feita, lá estava Dula empilhando braúna quando uma desavisada patrona lhe deu uma bela mordida na ponta do dedo indicador da mão direita. Na época se trabalhava sem nenhuma proteção. Ao sentir a mordida, o goleiro ergueu a mão e viu a serpente pendurada, ao perceber a bicha imóvel, constatou que ela morrera atrelada ao seu dedo. Após o susto inicial chegou-se à conclusão que a cobra foi vitimada pelo altíssimo grau de álcool existente no seu sangue. Aliviado, comemorou botando a cobra morta dentro de um litro de cachaça, que ele tomou até a bicha perder o gosto.  Dula morreria de cirrose anos depois.

Agora, o que aconteceu com Zé Miúdo supera todas estas histórias. Como sugere o nome, Miúdo era um baixote, namorador feito o diabo. De boa família e cheio de pretendentes, porém, arrotava aos quatro ventos que só se matrimoniaria com a donzela que resistisse ao desejo de ir pra cama com ele antes do casamento. Dizia que quem fosse com ele, poderia ir com um outro qualquer. Alas que um belo dia ele arriou os pneus prus lados de Regininha, uma linda gatinha, melosa e sensual. Após três anos de um intenso namoro, a moça não resistiu e se deixou desdonzelar pelo moço. Assim que obteve o que queria, Zé Miúdo se separou incondicionalmente da moça com um discurso constrangedor. Após semanas de choros e humilhações, Regininha resolveu seguir com a sua vida e na primeira grande festa que teve na cidade se atrelou ao pescoço de Zelão, um jovem alto e forte que tinha o dobro do tamanho de Zé Miúdo. Ao chegar na festa e ver a sua ex-noiva pendurada nos beiços do jovem fortão, o baixinho se desesperou e mesmo sem nunca ter posto uma gota de pinga na boca, deu uma bistunta e bebeu quase um litro de batida de limão. Desacostumado com o álcool, Zé Miúdo correu até a porta da casa e vomitou até a dentadura. Após um tempão procurando no escuro sem sucesso a sua prótese (não havia ainda luz elétrica por este torrão), compareceu todo trôpego ao salão de festa e com a boca murcha e solicitou um adjutório dos amigos. – Amigos, pelo amor de Deus. Perdi minha chapa. Me ajuda a achar!… – Como ainda não existia luz elétrica por aqui, o moço teve que recorrer aos faróis dos carros dos amigos que estavam na festa. Após muito procurar alguém achou a chapa em cima de um formigueiro, aliviado o baixote babatou esta chapa e colocou na boca do jeito que estava, cheia de formiga… botou e saíu cuspindo formigas para tudo que foi lado. Realmente, pinga não é para amadores.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales – Bahia. Quadras de Abril 2024

Outono, Lua cheia.