ADEUS ANO VELHO…
Artigos

ADEUS ANO VELHO…

Lá se vai o tempo voando em uma velocidade estonteante – diria o bardo de Santo Amaro. A verdade é que estamos entrando em outro ciclo, o velho ano – com uma imensa dor nos quartos –  começa a abrir o caminho para a entrada do ano novo, enterrando os velhos problemas e renovando as nossas esperanças. Depois de todas as latomias dos anos anteriores, 2023 trouxe um refresco para a humanidade, agora jogamos todas as nossas fichas em 2024, o que esperar do novo ano? Fé minha gente, fé! Aproveito o ensejo para desejar um feliz e próspero ano para vocês que toda semana perdem alguns preciosos minutos para ler estas mal traçadas linhas. Seguiremos firme em 2024.

Minha preocupação agora é com a evolução dos tempos. À medida que os anos vão passando, a tecnologia vai fazendo que aquele calor humano que existia antigamente nas viradas de ano, vá se diluindo pelos caminhos. Sou de um tempo em que as pessoas se reuniam (parentes ou não) apenas para trocar um forte abraço e desejar de todo coração “um feliz ano novo”. Ainda menino, quando levantávamos (aqui em “Candin”) dávamos de cara com as pichações dos muros. “Feliz Ano Novo”! Seja bem-vindo 1977 (ou 1978 ou qualquer outro ano do século passado). O que importava era saudar a chegada do ano novinho em folha que era representado por um recém-nascido enquanto o ano velho partia desolado com as suas imensas barbas brancas. Hoje este “calor humano” está representado por um toque na tela do smartphone. Admito que a tecnologia ajuda a amenizar o sofrer, relativizar a saudade, saber as notícias em tempo real,  e principalmente encurtar as distâncias. O que falta realmente é aquele calor humano que só o contato pessoal consegue. “Candin” a exemplo de tantas outras cidades –  tem uma renca de “filhos ausentes” espalhados por este mundão de Deus. Imagino que este seja o período onde eles mais sentem saudades da nossa terrinha, até porque deixaram para trás, amigos, famílias, lazer, amores, uma infinidade de recordações. Há os que estão muito bem fora daqui, outros nem tanto, porém, a maioria dos lugares que acolhem os nossos “filhos ausentes” oferecem as condições ideais para suas sobrevivências. Eu poderia passar horas falando sobre os conterrâneos ausentes que construíram este torrão. Mailton, Ossiônio, Andreia Ferraz, Richard Barbosa, Valdeane, Valmir (o Nego Bom e o Ferraz) Johon Kenned (o nome dele é escrito “desjeitim”), Deza, Dermeval, Hildete, Napoleão, Tasso, Maria Márcia, Simoninha, Moisés, Patrícia, Veão, Solange, Wellington Leandro, Sidney, Leonel, Alzino, Kátia Rejane, Rielson, Henrique, Laudionor, Zilma, Ursulino Marinho, Nilson Santos, João Espinhara e mais uma renca de Novos-Conquistenses, porém, se cantássemos o dia inteiro não homenagearíamos todos – diria Elomar. Assim, melhor homenagear a todos na figura do grande amigo Almir (Mimi Gatão filho de seu Nenga e Dona), que fazendo chuva ou sol, calor ou frio, religiosamente lá vem ele (diretamente de Pirassununga) todo “santo ano” fazer a sua visita anual. Quando “Gato” chega – este é um apelido dado por Pio quando ainda éramos garotos – turbina emocionalmente a curriola. Quem não está bebendo, bebe, quem está doente sai da cama, faz churrasco, promove cantorias, visita pessoas, apara as arestas, harmoniza os egos e concilia as desavenças. E isto vem de muito tempo, quando íamos para a “Toca da Onça” (antiga boate que existia por aqui) tomar cuba paga por ele – era o único que tinha grana –  e nos divertíamos com a polícia daqui batendo continência pra ele. Na época ele era um conceituado Cabo da FAB que se lixava para o sistema, inclusive, permitindo que Pio desfilasse pela cidade vestindo a sua farda, com ele morrendo de rir, atrás. Em meados dos anos 1980 a turma de amigos – Gato entre eles – bêbados e ressaqueado, após amanhecer o dia comemorando a chegada do ano novo, iam pedalando até o Porto de Santa Cruz nas velhas bicicletas alugadas na tenda de Caxilé (Sim. Antigamente existia aqui agência de bicicletas). Na época era uma “jornada”. Além de “Gato”, Badim, eu, João da Caçamba, Miltinho irmão de Oríston, Zé Preto, Tonhão, Baé, Gaguinho, Pio, Milzinho (de Maria do Leite) e mais uma renca, participavam desta “apoteose”. Neste tempo ninguém gostava muito de cerveja, assim, o grupo comprava na base da “vaquinha” alguns litros de conhaque Presidente (que era consumido misturado ao mel), fazia caipirinha com gelo e limão, os mais sensíveis tomavam cinzano e os cachaceiros, “canjebrina”.  A ida era de boa, após uma “dois-pelos” assada em um braseiro improvisado nos lajedos, tudo terminava em samba. Na boca da noite  voltávamos “moqueados”. Para piorar, na descida do Porto existe – ainda nos dias de hoje – uma ladeira íngreme de meter medo. É onde se faz a curva para adentrar a estrada real. Não foi que uma renca de bêbados passou lotado pela cerca de arame farpado com bicicleta e tudo indo parar no meio de uma lagoa? Pois foi. Zé Preto e Badim que vinham atrás reliando da miséria dos outros  bateram nas bicicletas que estavam tombadas na estrada e acabaram se estatelando. João da Caçamba foi o pior, do jeito que desceu, fez uma curva tão fechada que acabou entrando com bicicleta e tudo em uma moita de quiabento! Gente, só quem conhece o que é quiabento para entender. A planta tem cada espinho deste tamanho! E de repente, olha João lá, entrelaçado entre rodas, pedais, espinhos e guidão se contorcendo mais que peixe fora d’água… Os que ainda podiam ajudar (que ficaram montados pós-acidente) apearam e correram para a moita querendo ajudar o pobre do João. – João, João, João… Você está bem? – Em resposta ouviram apenas um leve gemido: – Oi, oi, oi… Me tira daqui! Vou morrer! Oi… Me tire deste diabo de quiabento! – João só conseguiu ser retirado graças a providencial interferência de um roceiro que morava perto, utilizando todo o conhecimento que possuía para cortar de facão os garranchos espinhentos que rasgaram completamente o coitado do João. A solução foi baforar cachaça nos ferimentos e fazer ele beber o que ainda restava de cana. Nesta altura mais da metade dos ciclistas vinham empurrando suas bikes (evitando assim uma tragédia maior). Claro que ainda aconteceriam mais alguns acidentes, mas, nada que não pudesse ser sanados.

Um dia antes deste sucedido, a turma se reuniu na boate o Casarão para o réveillon. Foi aí que demos de cara com um carinha recém-chegado dos Gerais. Era um jovem afro-americano todo retraído, parecendo um pigmeu. Cabeçudo, “zoiudo”, magrelo, estranho pra peste e feinho de fazer dó. O caboclo foi trazido quase que a força por Oriston para ajudá-lo na Cocebe. O cabra chegava no boteco, pedia uma cerveja e bebia todinha no gargalo, comprava uma lata de salsicha bebia o caldo e jogava fora as salsichas. Besta, é? Em pouco tempo lá estava ele enfileirando a mulherada. Rezava a lenda que quando chegou aqui nunca tinha beijado de língua. Em pouco tempo se virou o capeta.

Alas que chega o fatídico dia 31 – véspera da virada do ano – o mineiro querendo pegar umas “donzelas” ,deu uma bistunta e foi procurar o poeta Zelão que tinha a fama de apertar e acender na hora. Depois de tocaiar o poeta por mais de duas horas o flagrou descendo calmamente para o Casarão onde curtiria a virada de ano. Só convenceu o poeta quando falou dos três litros de uísque que tinha em casa, em troca queria apenas uma “bituquinha” usada de “Maria Joana”. Afinal de contas não tinha muita intimidade com a coisa e não queria ficar chapado, apenas ficar mais “ativo” para dominar a situação. Depois de muito relutar, Zelão resolveu curtir com a cara do “minerin”. Tomou umas três talagadas do uísque importado, sacou da algibeira uma mistura de bosta de gado, folha de louro e sementes de eucalipto enrolado em uma “seda” importada dos Gerais (que ele levava no bolso para estas ocasiões) e, após fazer o maior drama, acendeu para o mineiro que apertou atabalhoadamente fazendo um fumacê desgraçado no ambiente.

– Você vai dar um “pau” também? – Perguntou o mineiro querendo mostrar que tinha intimidade com a coisa, puxando no fôlego tudo o que podia para em seguida ter uma crise violenta de tosse. – Não, meu irmão! Já fui. Se você permitir vou continuar só no uisquinho! – Enquanto solvia o destilado, Zelão se divertia com as mungangas do mineiro, que após fumar a mistura de estrume começou a dar saltos ornamentais pela sala, fazer caretas no espelho, plantar bananeira na cama e andar de cócoras na porta da casa, se contorcendo todo, gritando e cantando em uma língua desconhecida. Após detonar sozinho o uísque, lá foi Zelão curtir o seu réveillon deixando o mineiro pendurado no batente da janela igual um morcego, de pernas pra cima e cabeça pra baixo, babando mais que epilético. No Casarão chegava à famosa meia-noite e com ela o ano novo, enquanto os abraços afetuosos e os sinceros desejos eram efusivamente trocados tendo ao fundo marchinhas como “Jardineira e Olha a Cabeleira do Zezé”, quem adentra o recinto trajando apenas uma velha toalha felpuda amarrada na cintura e saltando mais que João do Pulo? Ele. O mineirinho! O cara ficou doidão com o estrume:

– Feliz Ano Novo moçada. Estou com três fumaças na cabeça! – Gritava balançando os badalos pra cima e pra baixo. Claro que o fato de trabalhar para Oriston pesou na hora e ele se livrou de levar uns belos cascudos. Ao ver o mineiro naquele estado sofrível, os colegas arrumaram um enorme cobertor e o conduziram à força para fora da boate. Só não entenderam o porquê dele, enquanto era arrastado à força para o carro, gritasse tão desesperado em direção à Zelão (que malandramente fingia que nem o conhecia).

– Mais um, mais um, eu quero mais um…  – Ele está falando com você, Zelão! Mais um o que? – Perguntou um amigo desconfiado, vendo o minerin ser carregado à força, todo enrolado como lagarta no casulo!

– Sei lá! – Respondeu Zelão pra lá de indiferente. – Acho que ele deve estar querendo cantar o hino do Bahia! “mais um, mais um Bahia”!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Dezembro

Lua cheia de Verão, 2023 – quase 2024.