A PAIXÃO DE CRISTO E A MALHAÇÃO DO JUDAS…
TRADIÇÕES QUE SE PERDERAM PELO CAMINHO.
Pois é. Taí mais uma Semana Santa. Muito diferente das antigas quando as famílias
pobres podiam comprar o seu próprio peixe e não havia este abismo entre pessoas ricas e
pessoas pobres como nos dias de hoje. Nos meados dos anos 1950 as pessoas mal saíam de
suas casas. Jejuavam, falavam pouco e rezavam muito (ficava uma semana inteira abstêmios
da carne). À medida que o tempo foi passando estas tradições foram se perdendo pelos
caminhos. Hoje, principalmente nos grandes centros a páscoa – que é uma extensão da
Semana Santa -, tem uma importância bem maior.
Na prática a Semana Santa é marcada por muitos rituais que fazem referência aos
últimos momentos da vida de Cristo. No interior do nordeste estas comemorações são
apoteóticas, fazendo que desafetos históricos façam uma trégua nas rusgas e caminhem
lado a lado na mesma procissão.
Até meados dos anos 1980 ainda funcionava por aqui o Cine Hermano – Cujo
prédio continua do “mesjeitim” lá na Praça Moisés Felix dos Santos (outrora conhecida
como Praça do Cinema). Hoje o antigo prédio – pra variar – virou uma igreja evangélica.
Geraldo Gomes (antigo dono deste cinema), para quem não sabe, está extremamente
debilitado, prostrado na casa da sua filha Cássia aqui em Cândido Sales e tem o mal de
Alzheimer. O homem que revolucionou culturalmente nossa cidade com o seu cinema e o
seu sistema radiofônico, infelizmente, padece deste terrível mal.
As Sextas da Paixão nova-conquistenses entrou definitivamente para os anais
históricos da cidade graças às projeções de Geraldo Gomes. O espaço ficava tão lotado
que o caboclo que comparecia ao cinema ficava impossibilitado de se mexer durante as
seções. Geraldo exibia neste dia o filme italiano “NASCIMENTO, VIDA, PAIXÃO E
MORTE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO”, uma película muda e em preto e branco,
produzida pelo diretor Giulio Antamoro no ano de 1916. Eram quatro seções com gente
saindo pelo ladrão. Começava às três da tarde e ia até nove da noite. Algumas famílias só
compareciam ao cinema uma vez por ano – exatamente neste dia, para se emocionar com a
crucificação de Jesus Cristo. Era o caso, por exemplo, de Mestre Alfredo, um velho
nordestino, dono da principal oficina mecânica da época. Mestre Alfredo, já com os seus
setenta e mais alguns, começava a assistir o filme e assim que os centuriões romanos
chicoteavam Jesus Cristo, ele abria o berreiro dentro do cinema, chorando igual uma
criança diante de todo mundo:
– Bate nele não, “rebãim” de cornos safados! Covardes da moléstia! Para de bater
no “pobrezim”, não “tais veno” que o coitado está ferido? Se eu estivesse aí eu ia encher
vossas bocas de chumbo, macacos mufinos dos “zinfernos”! – Mestre Alfredo fazia que a
plateia rachasse de tanto rir.
Outra figura que não perdia uma seção era Faísca. Pelo nome já se pode deduzir
que Faísca era um palhaço que chegou à nova Conquista em um circo itinerante e acabou
ficando por estas paragens. Ao beber a água de Nova Conquista, mudou completamente de
profissão e até os dias de hoje vive por aqui. Este era outro que ficava furioso quando via
Cristo ser chicoteado. Pagava para alguém (não sabia ler) narrar o filme pra ele. – E
agora, ele disse o que? Fala aí pra mim? – Ficava ouvindo o “tradutor” durante toda a
exibição da película. Era um espectador assíduo do cinema de Geraldo indo a todas os
filmes. O que marcou definitivamente as exibições da Paixão de Cristo foi quando na última
seção, quase no final do filme, ali quando Cristo carregava nas costas a pesada cruz, uma
renca de beatas soluçando dentro do cinema, “João Delicado” pulando enlouquecido em
cima da cadeira, xingando de tudo que era nome os agressores de Cristo, eis que o diabo
da fita (com perdão da palavra) não deu de quebrar? Quebrou e ainda pegou fogo, já que
um fumacê impressionante cobriu a sala de projeção que ficava na parte alta do prédio. –
Um pequeno defeito técnico. Voltaremos após um pequeno intervalo. – Bradou a voz
inconfundível de Geraldo Gomes. Alguns minutinhos de música sacra e as luzes se apagaram
novamente. Continua o filme e lá ia Jesus sendo chicoteado, subindo lentamente o Monte
Gólgota com a pesada cruz às costas quando de repente a tela foi tomada por um bando
de bandidos mexicanos, com os seus imensos bigodões e chapelões, correndo disparados
em seus cavalos e metendo tiros para tudo que era lado! Diante da cena inusitada a plateia
ficou sem entender absolutamente nada. E o pior e que na pressa a emenda ficou ao
contrário e os cavalos dos bandidos ficaram de cabeça pra baixo e tome gritos, apupos,
assovios e muitas risadas. Duro, foi explicar depois para as beatas chorosas o que fazia
em plena crucificação de Jesus Cristo aquele monte de bandidos bigodudos atirando a
esmo!
Depois da Sexta-Feira da Paixão vinha o sábado de páscoa que era chamado na
época de “Sábado de Aleluia”! – Vamos fazer a aleluia gente! – Gritava logo cedo alguns
moradores saindo pelas ruas de “Candin” passando de casa em casa comendo e tirando o
atraso de uma semana sem comer carne. Quase em todo lugar existia um assado para os
visitantes “tirarem a barriga de miséria”. O sábado de Aleluia também era o dia de
malhar o Judas.
Logo cedo, Ninão (vivo e saudável nos dias de hoje) fazia um boneco todo
incrementado vestido de paletó, gravata, sapato social e chapéu de palhinha que era
conduzido pelas ruas da cidade em uma galinhotinha de madeira seguido por uma renca de
meninos em uma barulheira medonha. Era uma festa!
À noite na “Rua de Valdim” se ateava fogo no Judas devidamente amarrado a um
poste de madeira. A queima do traidor de Jesus concentrava tanta gente que nego montava
até barraquinhas para vender cachaça e espetinho de carne. A queima durava mais ou
menos uma hora explodindo os fogos – devidamente escondidos dentro do corpo do Judas
– pipocando para tudo que era lado. Assim que o fato se concretizava, os presentes
batiam palmas por mais de quinze minutos comemorando a morte do apóstolo traidor.
Logo depois, começava o baile no reservado do Bar de Valdim que era decorado com
bandeirolas coloridas para o caboclo se fartar de tanto dançar.
Nos dias de hoje não é mais possível ver esta tradição aqui na nossa região. À
última vez que tive a oportunidade de assistir a uma Malhação do Judas, meus dois amigos
João da Caçamba e Junior Gordo ainda eram vivos e foi no povoado do Vistoso no ano de
1999. O dono do boteco fez uma propaganda tão lascada que levou gente da região inteira
para assistir.
Eu, Junior, João da Caçamba, Odenir Ferraz, José Carlos Lima, Jerim, Ubaldino da
Emater, Luiz Teixeira e mais alguns amigos fomos prestigiar esta grande tradição. Ao
chegarmos demos de cara com uma novidade, ao invés da malhação do referido traidor, os
caras botaram a família inteira do Judas para ser malhada. Ele, a esposa e uma filhinha.
Todos ali pendurados pelos pescoços debaixo de uma imensa mangueira. Chegamos no
finalzinho da tarde, acampamos no único boteco existente e passamos a molhar a palavra
enquanto testemunhávamos a chegada de uma renca de cavaleiros montados em cavalos,
mulas, éguas, burros, jumentos e até carroças… Ali perto das oito da noite, com todo
mundo mais ou menos medicado, eis que o dono do boteco depois de um discurso pra lá de
inflamado resolveu tocar fogo nos bonecos, permitindo que a meninada descesse o porrete
nos traidores de Cristo. Depois de muita pancada e gritaria apareceu um mascarado
(devia ser da ku Klux Klan) munido de uma tocha e tacou fogo no Judas, na sua senhora e
quando foi incendiar a “Judinha” Junior Gordo bêbado feito um gambá pulou na frente e
gritou: – Na Judinha não! Ninguém toca na menininha! Queima qualquer um, mas a
criancinha eu não vou deixar não! – Falava chorando tentando impedir a queima. Foi uma
peleja segurar Junior pra lá de enfezado tentando tomar o tição da mão do “carrasco”.
Passou o resto da noite chorando enquanto os bonecos pipocavam fazendo a
alegria dos presentes. – Ahhhhh… Botaram fogo na Judinha! Ahhhhh!FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor
Quadras de Abril, Semana Santa de 2022.