“A MUCAMA QUE MATAVA IGUAL COBRA DE LAJEDO”
Artigo

“A MUCAMA QUE MATAVA IGUAL COBRA DE LAJEDO”

 

“A MUCAMA QUE MATAVA IGUAL COBRA DE LAJEDO”

 

O município de Nova Conquista faz parte do Sertão da Ressaca e foi desbravado e colonizado pelos bandeirantes. O povoamento da nossa região se deu através da criação de alguns vilarejos, ranchos, chácaras e fazendas. Além da autossuficiência da época – feita pela criação de animais e das plantações de grãos -, estas localidades também dependiam dos tropeiros e dos boiadeiros que passavam uma vez por mês, repondo os seus estoques de mantimentos. No ano de 1922 da era cristã, a Fazenda Bela Vista era uma das mais prósperas da nossa região, considerada por muitos historiadores como o embrião do Povoado do Porto da Santa Cruz. Além de alimentos fresquinhos os tropeiros também traziam notícias e informações diretamente do sul do país através de fotografias, livros, revistas, jornais e uma infinidade de produtos. Esta fazenda pertencia ao coronel Onofre Ribeiro da Silva, um homem extremamente grosseiro e bastante respeitado na região. Onofre tinha 72 anos de idade, uma barba espessa, cílios grossos e embranquecidos e uns óculos “fundo de garrafa” que lhe davam um ar de superioridade intelectual e uma cara emburrada o tempo todo. O velho coronel andava sempre vestido com um terno de linho branco impecavelmente engomado e com botas de couro de canos altos, “religiosamente” engraxadas. Na mão, sua inseparável bengala de jacarandá cujo cabo fora esculpido com um osso de onça, a qual, nos momento de fúria, era utilizada para bater no lombo de quem o contrariasse.
Estrategicamente localizada entre a passagem que ligava o sul ao norte do Brasil, a Bela Vista recebia diariamente dezenas de hóspedes. Quando não eram os tropeiros, eram os boiadeiros que sempre antes da partida contemplava o coronel com enormes mantas de carne de charque, tonéis de gordura de porco, barris de aguardente, conhaque importado da Europa, peças de fazendas coloridas, e uma ou outra cabeça de gado pronto para o abate, sem falar dos rolos de linhas pra costura, pólvora, espoletas, fifó’s, candeeiros, utensílios de cozinha como coador, gamelas, caldeirões, panelas, fruteiras e até escarradeiras.
Às vezes acontecia um ou outro probleminha que logo era sanado. Era muito comum, por exemplo, algum viajante se “engraçar” com alguma empregada do coronel. Se tinha uma coisa que fazia o homem sair completamente do prumo era quando alguém “bulia” com as pretas dele. O infeliz era punido ali mesmo no terreiro da fazenda à vista de todos para servir de exemplo. As chibatadas sempre eram dadas com gosto pelo capataz “Farofino”, um homem rude, de braços fortes e de um estranho dente de ouro em uma boca cheia de dentes cariados. Quando não estava batendo em algum desafeto do coronel, o esporte favorito do capataz era mascar fumo de rolo, ficando horas mastigando e cuspindo “capela” de fumo nos pés dos subordinados.
Entre as empregadas do Coronel havia uma mulatinha danadinha, linda que só se vendo, 17 anos de idade, quadris largos, dois pontinhos pontudos e estufados no lugar dos seios, olhos agateados e uma generosa e carnuda boca de dentes claríssimos. Os cabelos longos e anelados que escorriam delicadamente até a sua linha de cintura completavam a sua estonteante beleza. Seu olhar matreiro deixavam os machos completamente desnorteados. Zefa – como era conhecida – era um dos motivos pelo qual tantos homens pousavam na fazenda, ficando boquiabertos diante da “menina-mulher da pele preta” que tinha a fama de na cama, matar mais que “cobra de lajedo”!
Todos os empregados da Bela Vista sabiam que quando dona Deolinda, esposa do coronel, ia visitar algum parente distante na Vila dos Montes Claros – lá nas bandas dos Gerais -, o velho dava um jeitinho de colocar a menina debaixo dos lençóis de cambraia da sua confortável cama, passando a noite inteirinha uivando feito um filhote de lobo. Assim que o dia amanhecia, o velho coronel alegre e saltitante cobria a jovem mulata de colares coloridos, pulseiras brilhantes, anáguas finas e até anéis de pedras reluzentes.
Espoleta – como também era chamada – usava a sua “intimidade” com o patrão para trabalhar pouco, ganhar muito e sair dando ordens a torto e a direito para as outras mucamas! Só que velho e cansado, o coronel Onofre por mais que se esforçasse (e olha que o homem tomava caldo de mocotó, chá de catuaba, ovo de codorna e garrafadas de amendoim cozido) nunca era páreo para a juventude, a energia, o ímpeto e o fogo emanado das tenras carnes da linda morena.
Zefa Espoleta cansou de deixar – após uma noite de amor – o velho Coronel completamente esquartejado por três ou quatro dias. Dona Deolinda até que desconfiava, já que a mulata andava mais luxuosa que as mocinhas da cidade. Mas, fazendo a política da boa vizinhança, preferia fingir que não sabia de nada, era melhor para todos.
Ocorre que mulher jovem, bonita e fogosa não nasce para ser de um homem só, mesmo que este homem seja coronel e poderoso. Do alto dos seus 17 anos, Zefa com os hormônios à flor da pele e o coronel negando fogo, arranjou um jeito de amenizar um pouquinho a sua libido, passando a “cozinhar um pouquinho pra fora”, traçando literalmente tudo que encontrava pela frente.
Assim, uma vez por semana, “Espoleta” rolava deliciosamente nos lençóis da cama do coronel. Mas, no restante da semana, qualquer lugar, por pior que fosse se transformava em alcova para a troca de prazer com um ou outro amante embriagado no êxtase. Beira de rio, cachoeira, correnteza, lajedo, tudo se transformava em “cama” onde os prazeres incontidos da mulata eram oferecidos aos forasteiros (leiam-se: vaqueiros, tropeiros, caixeiros-viajantes, etc…). O estábulo ficava reservado apenas para que a moça no clímax da excitação “desdonzelasse” impiedosamente os caboclinhos que residiam na fazenda. Flagrados quase sempre por Farofino, os meninos eram denunciados e posteriormente chicoteados por ordens do Coronel.
O amor entre Zefa e o Coronel ficara tão evidente que ela nem mais escondia, passando, inclusive, a beijar o velho à vista de todo mundo. Resignada, após uma bistunta, dona Deolinda viu-se obrigada a gentilmente “convidar” a jovem mucama a deixar definitivamente a fazenda. Claro, que a mulata esperneou, deu chilique, chorou, desmaiou, mas o coronel, acuado e sem alternativas se viu obrigado a acatar as ordens da patroa. Antes, pediu gentilmente ao Capataz Farofino (homem da sua inteira confiança) para entregar uma boa quantia em dinheiro à moça, e construir à surdina e em tempo recorde um lindo sobrado para a sua mucama no outro lado do rio, distante uma légua e meia das terras da fazenda. Após uma semana a garota mudou-se, contratando um enorme carro de boi para levar as suas coisas (que não eram poucas), e foi morar na bela residência recém-construída. Assim, Zefa Espoleta passava a ser a “amante oficial” do coronel Onofre Ribeiro da Silva. A partir desta data, quando não estava “agradando” ao coronel Onofre, que uma vez por semana vestia-se com uma capa negra de tropeiro e descia boiando pelas águas do rio, a menina “atendia” praticamente todos os homens do Povoado e de todo o seu entorno. O adjutório, antes dado de forma espontânea, virou cachê devidamente tabelado, contado em horas. Em pouco tempo a mucama se transformou em uma das mulheres mais ricas do Sertão da Ressaca.
De birra, dona Deolinda – para se vingar do marido – pagava para as outras mucamas saírem espalhando pela fazenda a atividade desenvolvida pela amante. Quando essas conversas chegavam ao ouvido do velho, ele saía completamente do prumo em um descomunal rompante de raiva, porém, depois de algum tempo vestia a sua indefectível capa preta, munia-se da sua inseparável bengala e entrava sorrateiramente na correnteza do rio que o deixava na porta da casa da linda mulata sem fazer o mínimo esforço. Toda semana o bravo coronel Onofre era visto boiando, tal qual uma cobra sucuri nas pardas águas do rio.
Certa feita, logo depois de participar de uma intensa comilança no casarão da fazenda, onde se comemorava o “sacramento” da sua filha mais nova, o coronel Onofre conseguiu se desvencilhar dos seus convidados e logo depois de vestir a sua capa preta e apanhar a sua bengala, entrou apressado no rio e boiou literalmente em direção aos braços da sua doce amada.
Neste dia (a mucama confessaria depois) o velho coronel parecia estar com o diabo no corpo, já que nunca demostrara de uma só vez tanta virilidade. Ficou “encruado” por mais de duas horas em cima da linda mulata e depois de soltar um pavoroso grito, caiu se debatendo no chão do quarto, babando tal qual um epiléptico, morrendo de um enfarte fulminante em pouco mais de dois minutos e meio. Como tudo na vida do velho coronel era apoteótico, o infeliz, apesar do mal súbito, morreu de morte morrida, de prazer, permanecendo com a sua genitália enrijecida mesmo depois de morto.
Gritando a plenos pulmões, Zefa foi socorrida pelos vizinhos, entre os quais dois jovens da sua confiança que conduziram o corpo do coronel (naturalmente, vestido às pressas com a sua capa) até a margem contrária do rio onde foi achado por moradores, ainda com a genitália enrijecida apontando para o céu azul na mesma posição em que foi fulminado pelo enfarte. Após a comprovação do fato os moradores do lugarejo foram tomados por uma dor intensa! Apesar de justo e duro (sem trocadilhos) o coronel Onofre era uma pessoa querida por todos. Levado às pressas para o casarão da fazenda, o corpo foi banhado, e na presença do padre que veio às pressas da Vila da Conquista, criou-se um impasse. O que fazer com “aquilo” que teimava em se manter “empinado” em um corpo inerte?
Dona Deolinda que aceitou com naturalidade a morte do marido se viu constrangida perante o órgão enrijecido do corpo do defunto (coisa que ela não via há tempos), porém, o padre conquistense sugeriu a proeza de cortá-lo sutilmente e escondê-lo dentro do próprio corpo do defunto, alegando que o “instrumento” poderia atrapalhar o fechamento do caixão. O que chamou bastante a atenção – quem viu fala até hoje – foi dona Deolinda ostentar um estranho e enigmático sorriso nos lábios quando munida de uma peixeira amolada, retirou cirurgicamente o “instrumento” do defunto.
O sepultamento do coronel foi uma comoção. Veio gente de toda região para esta última homenagem. Vários coronéis se reuniram, houve até salva de tiros, enquanto políticos da Vila da Conquista e um monte de criados choravam copiosamente. Todos queriam participar do adeus ao mais famoso filho da região. Em um canto, meio que escondida, atrás de um pé de gameleira, “Zefa Espoleta” testemunhou tudo calada, não chorou uma lágrima sequer. Esperou o corpo ser baixado a terra, e sem se fazer notar, saiu discretamente por entre as copas das árvores que circundavam a fazenda do coronel. A partir desta data, ninguém soube informar o destino da moça. Vendeu todos os seus bens – “à preços módicos” – e da noite para o dia desapareceu misteriosamente da região. Nunca mais voltou a dar por estas bandas.
Quanto à Dona Deolinda, mal esperou o corpo baixar à sepultura e já foi se matrimoniando com o capataz Farofino, que se tornou o novo coronel. Antes, porém, exigiu que o moço extraísse todos os seus dentes cariados, inclusive, o horripilante dente de ouro. Foi prontamente atendida, sem nenhum questionamento. Viveram felizes por anos a fio, tendo inclusive, mais uma renca de filhos!

FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Quadras de Março de 2022. Minguante de Outono.
Adaptado do Livro AS EXTRAORDINÁRIAS HISTÓRIAS DO PORTO DA SANTA CRUZ, originalmente publicado em 2012.