UM DOIDO CHAMADO GOIÁS
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UM DOIDO CHAMADO GOIÁS

Autor:Luiz Carlos Figueiredo

– Olha o Bode aí… Méééééééééé!!

Este era o grito que deixava Goiás (um “doido” que existiu por um bom tempo aqui em ‘Candin’) completamente desorientado. Ninguém sabe quando ele veio dar por estas bandas, chegou de mansinho e quando deram por fé, lá estava aquele cidadão gordo – calça caindo o tempo todo -, barbicha de bode, sujo feito um mendigo, com os pés cheios de feridas e armado de um estilingue se “apossando” do povoado.  Rezava a lenda que lá no estado que lhe originou o apelido, o então jovem Agenor (dizia ser este o nome que lhe deram no sacramento) se engraçou para os lados da linda filha de um poderoso fazendeiro, que não gostando nem um pouco das intenções maléficas do desconhecido, o capturou em tocaia, o deixando castrado pelo resto da vida. Desolado, Goiás saíra sem rumo pelo mundo vindo dar por estas bandas. Se esta história era ou não verdadeira, ninguém sabe. O que se sabe é que quando alguém tocava neste assunto, nosso doido saía completamente da sua zona de conforto e virava uma fera. Dava um trabalho danado para retomar a razão!

Dizem que cidade que se preza tem que ter seu doido de estimação. Ali pelos meados dos anos 1964 (em pleno Golpe Militar) Goiás já era considerado um cidadão Novo-Conquistense. Ele era um caboclinho meio aluado que, embora, parecesse louco, não demonstrava ser tão louco assim. Só saía do prumo quando provocado: – Méééééééééé! Olha aí o Bode! – Quando a meninada soltava este grito de guerra o cara virava o capeta, ficava tão descontrolado que quebrava tudo o que achava pelo caminho!

Claro que nesta época haviam vários aluados por aqui, porém, doidos de pedra mesmo, devidamente certificados, só “Bufa Fria”, Yá, Permino, Linguiça, Olavo Olho de Prata (que só ficava doido quando tomava suas meizinhas. Quando lúcido era o coveiro oficial do cemitério local) sempre acompanhado do seu indefectível cão Javali e vários outros que preenchiam oficialmente a quota de doidos de estimação da cidade. O asfalto da BR 116 dividia literalmente o povoado em duas partes e, em torno dele, um aglomerado de pessoas em busca do “pão nosso de cada dia”. Resumindo, a vida da pequena Nova Conquista girava em torno da recém-inaugurada rodagem, fazendo que diariamente centenas de pessoas flutuassem por aqui deixando alguns trocados. Se os moradores fervilhavam na BR-116 em busca da subsistência, “os doidos”, como satélites, orbitavam em torno destas pessoas, e, assim, conseguiam buscar os seus sustentos.  Os “malucos” mais queridos da época eram “Ceguinho da Viola” e o nosso indefectível e misterioso Goiás, que mesmo taxado de maluco, adorava uma boa prosa e quando ia com a cara do caboclo, passava logo a “tomar boca” através de uma sarcástica risada onde gritava com a boca murcha e banguela: – Esse daí é da minha “ganga”! Ele rouba mais eu! – o povo morria de rir.

Para a meninada que buscava ganhar algum trocado engraxando, lavando ou lubrificando, Goiás era um verdadeiro terror! Quando ele retesava o seu famoso estilingue – confeccionado a partir de tiras selecionadas de câmara de ar – corria todo mundo. Fisicamente era parecido com um índio Tupy-Guarany, baixo, meio gordo, feições “atarracadas”, com um andar todo característico e uma barbicha de “Bode” que (aqui para nós), bastava alguém insinuar a semelhança para ele virar o diabo! Mas, como todo ser humano, o pobre diabo também tinha a sua fraqueza.  Ela era uma jovem Dama da Noite, devidamente alcunhada de Leda. Quando esta moça ficava muito doida, mesmo com o fedor que o andarilho emanava, se agarrava com ele e o enchia beijos deixando o doido mais doido do que era, correndo e gritando pelas ruas: – Vou me casar com Leda! Estou arriado por ela!

Dormia em uma cama de papelão na porta do Posto Texaco e já acordava usando o seu bodoque. Tinha uma pontaria de meter medo. Com cem metros de distância conseguia acertar o pé de um caga-sebo com uma precisão cirúrgica.  Quando os moleques queriam zoá-lo, inventavam que quando ele entrava no rio os peixes pulavam todos fora da água para cuspir. Quando ele ouvia estas lorotas ficava puto, xingava até a quarta geração de quem estivesse contando, porém, só perdia mesmo a cabeça quando chamado pelo o apelido! Na beira da pista existia uma renca de moleques danados que se escondiam e quando viam Goiás bradavam:

– Olha aí o Bode, Méééééééééé!! – Escolados, atentavam e corriam deixando Goiás completamente desorientado pelas ruas! Quando isso acontecia o infeliz pegava o seu estilingue e pedras choviam sobre a cidade. Eram para-brisas quebrados, portas “muxiladas”, vidraças partidas, cabeças furadas e cacos para todo lado. Se alimentava muito bem às custas dos comerciantes (era tão gordo que as calças mal se ajustavam em sua cintura) e já tinha os lugares certos onde pedir. Adorava um refrigerante. Chegava perto da mesa onde as pessoas comiam e pedia baixinho com a sua indefectível boca murcha: – Paga uma coca aí, véi! – Geralmente as pessoas pagavam e ele bebia com um inenarrável prazer! Mas quando tudo parecia estar bem, lá vinha a frase proibida:

– Pega o bode aí, Béééééé!

E a história se repetia. Goiás saía correndo feito um aluado e logo se via a “chuva de pedras” cair sobre a cidade deixando carros avariados, vidros quebrados, pessoas feridas e uma correria lascada, onde o saldo da peleja era o de sempre… Tudo arrebentado! Caco para todo lado!  Apesar da raiva repentina que o desnorteava, Goiás tinha uma particularidade. Mesmo quando “atentado” se alguém o chamasse de “amigo”, imediatamente o seu ódio cessava. Os moleques mais espertos, percebendo isso, passaram a tirar proveito da situação.

– Olha o bode aí, Béééééé! – Lá vinha Goiás jogando tudo que era pedra e os que o atentavam falavam com as caras mais limpas do mundo: – Está ali amigo! Correram por ali! – E Goiás, abobalhado, seguia pelo lugar onde os meninos indicavam. Depois de procurar incansavelmente sem achar, era abraçado por todos e nem sequer desconfiava que os mesmos que o “atentavam” eram os que o consolavam.

Nesta época trabalhava na rua um menino chamado João de Maria Mosquita. Extremamente acanhado, João lavava os seus carros, engraxava os seus tapetes e parecia ser invisível para o resto da turma. Quando a molecada “atentava” Goiás, João era o primeiro a se esconder, embora, fosse incapaz de zoar o doido que ele tinha até alguma consideração. Mas, de tanto conviver com Goiás e a molecada, João astuciou que se algum dia ficasse em alguma situação como aquela, bastava chamá-lo de “amigo” e tudo se resolveria. E assim foi…

A beira da pista era um lugar horrível. Existia uma certa hierarquia onde a “trinca” de “barras-pesadas” formada por Coutinho, Pingo e Natal mandavam e quem tinha juízo, obedecia. Metiam medo até na guarda municipal que fingia que eles, sequer, existissem. Quando não achavam em quem bater, sobrava pra Goiás que virava o saco de pancada de Coutinho. Quando o malandro estava em um dia ruim, tomava à força o bodoque de Goiás e lhe moía na pancada. Muitas vezes o pobre do doido chegava a sangrar, mas, nem os dois outros “dominantes” se atreviam a pedir para que Coutinho parasse de bater no coitado. Goiás chorava igual uma criança. Nem parecia ser aquele doido “tocador” de terror em garotos acanhados como João de Maria Mosquita.

Mas, eis que um belo dia lá estava à molecada reunida contando piadas e no meio, o solitário e “invisível” João, embevecido com as traquinagens dos mais espertos. Piada vai e piada vem, eis que surge Goiás com a sua calça caindo, conduzindo um bornal cheio até os beiços de pedras apanhadas no rio. Ao ver o homem, a molecada resolveu irritar o pobre coitado:  – Pega o bode, Béééééé! –  Ao ouvir o grito da molecada Goiás entrou naquele “transe” característico e assim que puxou o estilingue a molecada caiu na lapa do mundo. João chegou até a correr em um primeiro momento, mas, com a consciência tranquila resolveu voltar calmamente à “cena do crime”, afinal de contas era só abraçar Goiás, chamá-lo de “amigo” e tudo estaria bem…  O tempo pareceu congelar… Escondido na esquina João esperou, esperou, esperou e nada de Goiás surgir… Ele até já sabia o que iria dizer, mas, por um destes caprichos da vida, o doido demorou um pouquinho para aparecer e por curiosidade o pobre do garoto resolveu dar uma olhada. Quando esticou o pescoço e o viu vir em sua direção com aquela ferocidade bovina, com a calça caindo, tropeçando nas próprias pernas, catando as pedras que caíram pelo caminho e chorando de raiva… O agora não tão controlado assim João de Maria Mosquita entrou em pânico e ainda tentou correr… Pra quê? Na sua frente tinha uma casa com as portas abertas e diante de todo o pavor a que fora acometido, o garoto “passou sebo nas canelas” e atravessou a rua no pinote. Quando faltavam alguns metros para atingir o seu objetivo, o menino encarnou João do Pulo e saltou com todas as suas forças tentando chegar à porta que se encontrava aberta… Neste momento, Goiás retesou tranquilamente o seu bodoque e com a mesma precisão que atingia os pés dos “Caga-Sebinhos” acertou uma das pedrinhas polidas bem no naquele ossinho do tornozelo do menino João. Gente, só quem já jogou bola sabe a dor quando alguém recebia uma bicuda naquele ossinho. Agora imagine aí uma pedrada, dada com carinho pela precisão de um bodoque de estimação como o de Goiás?!! Rá… Quando João pulou achando que estaria salvo caiu dentro na casa de Dona “Vicença” berrando que nem um bode (perdão pelo trocadilho), rolando de dor e segurando o pé todo ensanguentado! A pobre dona da casa que na hora   estava remendando um pijama listrado, apalermada, largou tudo e passou a se descabelar… –  O que é menino? o que foi? O que foi? Ai, meu Deus! Isso é sangue? – Duro era estancar o sangue e conter os gritos de dor de João que se contorcia pelo chão da casa enquanto Goiás observava calmamente na porta como se não tivesse nada a ver com aquilo.

Daquele dia em diante, toda vez que João de Maria Mosquita via Goiás, fazia questão de passar bem longe. Quando a molecada começava a atentar o infeliz, ele pegava a sua caixa de engraxar sapato e caía fora, nunca mais quis andar no meio dos relentos que atentavam o pobre doido.

No final da vida, Goiás – que morreu alguns anos atrás – encontrou uma “alma piedosa” que conseguiu aposentá-lo e o alimentava, o vestia e o higienizava com o dinheiro. Morreu dignamente, embora, de quando em vez, ainda ouvisse ressonando nos seus ouvidos:

– Méééééééééé! Olha aí o Bode!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e Escritor

CSales, Ba. Quadras de Maio de 2022. Minguante de Outono Frio.