QUANTO VALE UM QUILO DE USURA?
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QUANTO VALE UM QUILO DE USURA?

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Quem acompanha estas mal traçadas linhas, escritas semanalmente aqui neste espaço, já entendeu como era a Nova Conquista pré-emancipação. O povoado cresceu às margens da BR-116 disputando à ferro e fogo cada centavo deixado pelos “araras” que se alimentavam, bebiam e pernoitavam por aqui, desfrutando da oferta dos quiosques de madeira que “decoravam” a Rio-Bahia. Para os menos antenados, “Arara” era a alcunha dos “nortistas” que saíam dos seus torrões para desaguar em “Sonpalo ou Triângulo Mineiro”. Viajavam a bordo de caminhões de transportes ilegais de passageiros, literalmente “trepados” (como a ave de mesmo nome) em tortuosas viagens que duravam meses.

Muitos comerciantes se enriqueceram vendendo guloseimas para estes retirantes. Os mais astutos se sobressaíam, triplicando rapidamente os seus lucros (Aidon pai de Tata e Lola e cunhado de Zé Carlos da Coelba era desses). O caboclo usava astúcia e criatividade para turbinar o seu comércio. A inteligência gerava o movimento, que despertava a ira alheia, e consequentemente, o olho gordo. Alguém aí sabe quanto vale um quilo de usura? Era o que mais existia por aqui naquele tempo. O caboclo faziam de “um tudo” para passar a perna na concorrência. Joca Amuado e João Muquirana (dois bodegueiros extremamente unhas-de-fome), por exemplo, eram desses… Faziam até mandigas para conquistar seus objetivos.

Neste tempo existia por estas bandas vários terreiros de macumba, entre eles o da famosa curandeira Mãe Clara de Oxum, cujos trabalhos – segundo os entendidos – eram tiro e queda. Após uma longa consulta com uma renca de orixás, os “sovinas” se propuseram a colocar um despacho – após o terceiro canto do bacurau – em uma das inúmeras encruzilhadas existentes por aqui. Mesmo após o combinado, o despacho quase foi por água-abaixo devido à conhecida “murrinhagem” de Joca Amuado.  Encarregado de levar uma galinha, ao invés de comprar uma preta como pedira os orixás, o murrinha acabou foi afanando uma pedrês do poleiro de Maria Xibunga que era a dona do único restaurante decente do povoado, que não por acaso, descobriu o afano ao constatar uma marca de nascença que a referida, mesmo morta (e depenada), tinha no olho esquerdo. A mandinga por pouco não foi cancelada, tamanho foi à confusão armada por Maria Xibunga que quis porque quis dar na cara de Joca Amuado, exigindo a imediata intervenção de Mãe Clara que teve que utilizar todo o seu prestígio para conter os ânimos e fazer que o lazarento ressarcisse o valor cobrado pela cozinheira. O valor desembolsado equivalia três vezes ou mais o valor real da galinha.

Na sexta-feira subsequente, após o canto do bacurau, lá estava a dupla bem no meio da encruzilhada. Apesar de assustados, os infelizes não tinham muitas alternativas, já que segundo Mãe Clara, o feitiço só faria efeito se fosse ofertado diretamente pelos interessados. Joca Amuado – pão duro como era -, diante do temor de ficar cara a cara com o “Pé-Redondo” ou com algum dos seus “Secretários” mais diretos, até tentou oferecer uma boa gratificação para quem se prontificasse a substituí-lo, ideia desfeita imediatamente pela Mãe de Santo, que para confirmar que o negócio não era brinquedo, encarnou a Pomba-Gira e gerou um quebra-quebra violento dentro da camarinha. Entre o imediatismo do medo e a tensão das más intenções comprovadas, os homens resolveram fazer eles mesmos as suas devoções…

– “Espaia” as velas, junta os charutos, a farofa fica do lado e as pipocas junto com a cachaça! – Orientava João Muquirana, enquanto Joca Amuado olhava desolado para a galinha que custara uma fortuna e ele, sequer, comera um pedacinho.

– Agora “vamo” acender as “vela” e “capá” o gato! – cochichava Joca Amuado. Foi João riscar o fósforo e um trovão ensurdecedor fazer-se ouvir acompanhado de um assobio e uma rajada de vento que passou a balançar violentamente as árvores. Logo, o lugar foi tomado por uma renca de mungangas encobertas pela escuridão da noite!  Enquanto o vento assoviava, as rasgas-mortalhas entoavam uma chula, fazendo que um bando de saguis saltitasse efusivamente em volta do despacho! O que parecia inicialmente ser um bando de macacos, de uma hora para outra virou um rebanho de leitõezinhos, grunhindo e dançando estonteantemente em duas patas, criando uma coreografia infernal em torno da dupla… Joca, descontrolado, se cagou todinho, soltando um lastro de fezes “melequentas” que desceram impiedosamente pelas suas pernas ensopando seus sapatos e meias…  Mesmo diante daquele fedor infernal, João só pensava em chispar dali, porém, correr para onde? Depois de alguns minutos (que pareceu uma eternidade), a ventania se dissipou revelando uma brilhante lua cheia no céu.  No alto da estrada, a dupla contemplou um ciclista negro, esquelético e de uma altura medonha, vestindo um terno de linho branco e na cabeça um chapéu coco, pedalando tranquilamente uma contra-pedal! Neste tempo as poucas bicicletas que existiam não tinham freios manuais como hoje. Para brecar, era necessário o condutor girar o pedal ao contrário. Bom, mas lá no alto da estrada, surgia aquele bitelo negro, pedalando a bicicleta e gargalhando histericamente. A calça de linho branco que o negro usava era meio-coronha e dava-lhe no meio da canela, cujo sapatão bico-fino, refletia magnificamente o clarão do luar.

Sim. Era apenas um negro graúdo gargalhando, pedalando em direção aos “usurentos”, porém, por mais que o bitelo pedalasse (e isso ele fazia com um ímpeto invejável) parecia não sair do lugar… Um olhar mais atento mostrava que ele continuava lá, no topo da ladeira. João quase tendo um infarto, Joca todo borrado e aquele negro enorme e sorridente pedalando insistentemente a sua contra-pedal… De repente, eis o negro dando uma violenta contrapedalada, brecando bruscamente a “contra-pedal” bem pertinho da dupla para em seguida dar um pipoco ensurdecedor e se transformar em uma bola de fogo, espalhando labaredas para tudo que era lado! Depois de uns dois minutos de silêncio absoluto, eis que desce rolando ladeira abaixo, quase em câmara lenta, a roda dianteira da bicicleta do negão completamente incandescente, tirando um fino da cabeça de Joca que se viu obrigado a jogar-se no chão.  Depois de algum tempo tremendo, os homens, abriram os olhos e contemplaram o estrago deixado pela explosão. Enquanto Joca cagava ainda mais, João tampava os olhos com as mãos se recusando a acreditar no que via.

– João, de Deus, “vamo simbora home”, “nóis tamo” labutando com o Tinhoso, “vamo caí” fora daqui “home”! – Falou Joca todo cagado, puxando o companheiro pelo braço e quando tentaram correr, adivinha quem estava ali ao lado deles? De cócoras, a boca completamente murcha… O sorridente negão, bebendo gulosamente a canjebrina pelo gargalo e se lambuzando todinho de farofa de dendê.

– Eita farofinha boa, sô! – Falou rasgando um pedaço da coxa da galinha preta! – “Ancês” aceita um tiquim? – Perguntou o negão com a sua voz de trovão, zoando os usurentos medrosos.

– “Adisculpa nóis”, moço… “Num aceitamo” não! – Gaguejou Joca, todo borrado! – “Nóis taqui à mando” de Mãe Clara!

– Aquela quenga?!… E “vancêis” acha que eu “num” sei? – Bradou o negão com a sua voz de bluseiro! – Quiá, quiá, quiá… E “ocêis caíru” nessa, né? Aquela vaca é uma “mintirosa”! “Ocêis vão vortá” lá e “dizê” pra “quela” quenga que ela tá me “deveno” é muito! E “inconto” ela “num” mim “pagá”, eu “vô atanazá” a vida dela! Quiá, quiá, quiá…  – Riu com a boca banguela! Repentinamente ficou sério, olhou para a dupla com as brasas que tinha nos olhos e bradou com sua voz estereofônica:  – E agora, “suncêis” pique a mula daqui “iantes q’ueu cabe mim borreceno”!

– Nóis pode ir “simborá mermo”, moço? – Gaguejou um incrédulo Joca! – O negão olhou com uma cara de poucos amigos e gritou:

– Se eu “triminá” isso aqui… – Falou o negão lambuzado de farofa, com fiapos de pedaços de galinha escorregando pelos cantos da boca, todo molhado de canjibrina -… E “ancêis” inda tiver aí parado me “oiando”, eu “vô infiá” estes charutos “tudin” no “fiofó dóceis”! – Precisou repetir?… A dupla passou sebo nas canelas e desembestou ladeira acima. Quase chegando no topo, João Muquirana juntou o restinho de coragem que lhe restava e deu uma olhadela pra trás, foi quando testemunhou o negão dar uma gaitada estridente e estourar feito uma bola de fogo!

A partir deste dia, Joca Amuado se mudou de mala e cuia pra Divisa Alegre e João Muquirana entrou foi para a lei dos crentes, pregando a bíblia diariamente para uma renca de interessados.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Quadra de Julho de 2022. Minguante de Inverno.