O RIO PARDO FESTIVAL E O CANTOR WALDEIR.
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O RIO PARDO FESTIVAL E O CANTOR WALDEIR.

– Alô, é Luiz Carlos Figueiredo? – Sim. Sou eu mesmo… – respondi ao interlocutor no telefone do escritório da Cocebe onde eu trabalhava lá início dos anos 1988.  – Quem está falando? – Sou eu, moço! Não está reconhecendo a voz não? –  Claro que eu conheceria aquela voz em qualquer lugar. – Aqui é Waldeir, porra!  – Waldeir! Caramba! Há quanto tempo, cara? Por onde você tem andado, vozeirão? – Estou aqui no roçadão! – Falou a voz grave do outro lado da linha!

E Aí?… O que você manda aí, meu irmão? – Perguntei. – Eu soube que vocês vão fazer um festival de música aí, é verdade? – Sim. – Respondi. – Vai ser quando? – A gente está querendo fazer em março! – Estávamos mais ou menos no final de fevereiro daquele ano. – Já conseguiu o som? – Perguntou ele. – Não. Ainda não! – Respondi. – Bom. É por isto que eu estou ligando! Eu comprei um som aqui e quero levar pra aí. Você assistiu ao show da Tina Turner que aconteceu em janeiro no Maracanã? – como ele gostava de exagerar um pouquinho, no mínimo diria que o som dele era igual ao som do maracanã. Respondi cético: – Sim! Assisti. O que tem a ver uma coisa com a outra?

– O Meu som é tão bom que aquele usado pela Tina Turner é retorno do que eu vou levar aí. – Falou e deu uma gargalhada. Este era Waldeir Santos que eu apelidei de Waldeir Vozeirão. Não sei em que época ele chegara a Cândido Sales, só sei que eu o conheci trabalhando como pintor na beira da rodagem mais ou menos em 1978. Andava sempre com um macacão todo manchado de tinta e conduzia uma maletinha tão pequena que sumia na sua mão. Pintava para-choque, lameira, para-brisa… O motorista parava e já era xavecando. Assim que descia do carro, meio dedo de prosa depois e lá estava ele mostrando para Vozeirão a lameira que deveria ser pintada:

– Escreve aí: “SE DINHEIRO NÃO TRAZ FELICIDADES, ENTÃO ME DÊ O SEU E SEJA FELIZ”! – E assim ele ia ganhando a vida, que insistia em passar lentamente na velha e cômoda “Candin”. Eis que de uma hora para outra, olha Waldeir inaugurando uma Discoteque no coração da Avenida Rio Branco, bem no centro da cidade em um galpão pertencente ao então Prefeito Joviano Martins. Naquela época, devido ao estrondoso sucesso da novela Dancin’ Days na Rede Globo, Discoteque estava na moda. Apesar de não termos ainda a televisão em rede por aqui, as notícias chegavam… Através das ondas do rádio, revistas e velhos e desbotados jornais…

A “DISCOTEQUE FUNDE CUCA” era localizada onde existe hoje a loja Novo Brilho. Esta boate era o point da juventude “Nova-Conquistense”. À noite rolava o som das paradas de sucesso (John Travolta, Bee Gees, Oliva Newton-John, Abba, Donna Summers) com as bebidas do momento. A “Funde Cuca” foi à primeira Casa de Som de Cândido Sales a apresentar um globo com jogo de luz negra e estroboscópica. Este foi um tempo em que Waldeir ganhou uma graninha e até aposentou momentaneamente a maletinha de Pintura. Neste período, o finado Milton – o esposo de Judinália – havia chegado com toda a família do Rio de Janeiro e se envolveu em um imbróglio com um moço chamado Zezão que o devia e não conseguia pagá-lo. Após várias ameaças, Milton o pegou em plena praça do mercado e lhe deu uma surra de correia de ventilador. Este senhor, que era até pacato, deu uma bistunta e o matou com uma facada certeira. Ao fugir, ainda com a faca suja de sangue na mão pela Avenida Rio Branco, deu de cara com Waldeir que sabe Deus como, deu voz de prisão ao criminoso e o prendeu dentro da boate sem que ele esboçasse a mínima reação. Quando a polícia apareceu duas horas depois, foi surpreendida pelo gesto do pintor que entregou o assassino fugitivo sem mover uma palha!

Até então, pouca gente sabia que Waldeir fosse um cantor. Eis que Geraldo do Cinema ao contratar Diacísio da Rocha Viana para apresentar aos sábados à noite um programa chamado “Calouros e Valores da Terra” acabou dando a oportunidade que ele precisava. Diacísio já havia desenvolvido este trabalho nos anos 1970 lá no antigo Cine Bahia. Se na época ele contava com Dermeval, Jaimilton, Nozinho, Dezão, Renan e até com a dupla caipira Josivaldo e Esmeraldo, agora já havia novos calouros e grandes artistas, entre os quais, Rosemberg Oliveira, A excelente Cantora Ângela, o próprio Nozinho, Messias, Alcides e, naturalmente Waldeir Santos.

Nestes programas, o cantor Waldeir Santos deitava e rolava. Com a sua voz grave e bastante afinada, ele nadava de braçadas e ganhava quase todos os programas. Tirava onda cantando em italiano, francês, inglês e até alemão. Haja língua enrolada. Ouvia a música, escrevia da forma que ele achava ser a pronúncia, decorava e saía cantando. Certa feita, o duelo entre os artistas do programa estava acirradíssimo, eis que Waldeir entra cantando a música “Aline” que na época fazia um sucesso estupendo com o cantor francês Christophe.

O corpo de Jurados era formado por mim, pelo falecido Chicão e pelo cantador Rosemberg Oliveira. Como Waldeir abriu a boca cantando em língua estrangeira (ganhando quase sempre), o jeito foi à produção do programa aceitar a reclamação dos concorrentes e requerer os serviços de uma professora recém-contratada de Vitória da Conquista que lecionava língua inglesa no colégio Orlando Spínola, reforçando assim o corpo de jurados. Ao adentrar, a garota foi ovacionada pela plateia, já que os concorrentes acreditavam que o grande cantor seria, enfim, desmascarado com a presença da “expert em inglês”. Apesar de toda a pressão, Waldeir não ficou nem um pouco preocupado com a presença da moça e abriu a boca cantando a música francesa enrolando do jeito que dava. Não foi que Waldeir ganhou novamente? Pois foi. Diacísio com aquela classe que só o antigo apresentar J. Silvestre tinha, falou tirando sarro:

– E aí, Professora… O inglês de Waldeir está certo ou ele só está enrolando a voz? – A professora (que não discernia o francês do inglês) pegou o microfone e falou com a maior tranquilidade do mundo. – Sim. Cantou certinho! O inglês dele é tão bom que vou convidá-lo para dar umas aulas para os nossos alunos, viu? – O cinema veio abaixo!

Depois de desparecer por quase um ano, ei-lo me ligando na Cocebe. Uma semana depois eis a aparelhagem de som chegando, que na verdade era apenas meia dúzia de caixas com as bocas quase todas queimadas. Dois meses depois, acontecia a estreia do RIO PARDO FESTIVAL apresentando os grandes cantores da cidade… Sinca, Marquinhos de Mirão, Beto do Vale, Ilka Felix, Roger Ferraz, Jaivan Acioly, Adelino, Ferreira Batera, Fabiana Felix, Salvador do Baixo, Marilene, Ivanaldo Martins, Juarez Carvalho, Patula, Neto Pintor, Ivo, “Cavalo Alazão” – que era um Candido-Salense que morava lá nos confins de Belo Horizonte e vinha participar do festival – e, obviamente, ele… Waldeir Santos, a estrela da noite. Eu como produtor e criador do evento, em face dos poucos compositores nativos que existiam por aqui na época, escrevi uma letra que foi musicada por Roger Ferraz e entregue para Waldeir Santos defender. “Gritos Algozes” de cara chamou a atenção. Não pela letra em si, nem pela música composta por Roger, mas pela excelente interpretação de Waldeir Vozeirão que encaixou feito uma luva. Assim, toda eliminatória era uma festa, Patula cantando o tema de abertura: “Ripa-Ripa Festival, Ripa… Festival”, Ivanaldo entrando no palco munido de serra elétrica, motosserra, furadeira elétrica, os cambaus (Tom Zé usa isto nos shows dele hoje em dia como uma grande novidade, Ivanaldo já usava na época) Gersinho e Kinho Soares filmando e entrevistando todo mundo, o Cine Plaza saindo gente pelo ladrão com mais de 500 espectadores – quase todos em pé e urrando ensandecidamente – e os grandes nomes da cidade se apresentando. Logo, polarizou-se a disputa entre “Gritos Algozes” e “Sentimento de um Poeta” uma música de Juarez Carvalho lindamente interpretada por Sinca (Já falecido) e Marquinhos de Mirão. O diferencial foi um arranjo de guitarra feito por Beto do Vale que chamou a atenção de tão lindo que ficou.

A grande final chegou com estas duas músicas contando com a torcida de quase a totalidade do público presente. À medida que estas músicas seguiam, iam ficando melhores. Roger dedilhava o violão com uma classe fabulosa enquanto Waldeir soltava a voz com uma doçura encantadora:

– “Ouço Gritos Algozes chegarem a mim/Será que são almas penadas sofrendo um martírio/será que são gozos extasiados em delírios/ou será a mente doente dos aflitos? As nuvens, formas humanos completam o cenário/Um quadro de gente doente e de favelados/meus dedos ferem as cordas da divina viola que oculta o sofrer dos povos que bateram panelas sem ter o que comer (…)”.

Em contrapartida, Sinca e Marquinhos entravam de cabeça na poesia de Juarez ao tempo em que a guitarra de Beto do Vale enlouquecia a plateia. “Conterrâneo a noite é linda, me inspira esta canção (…)” dizia a letra e as torcidas digladiavam dentro do antigo cinema.

E aí começavam as picuinhas: – Que nada, rapaz! A música de Juarez é melhor. Gritos Algozes vai ganhar porque é letra do organizador! – Diziam alguns. – Eles vão roubar o resultado. Não estão vendo que os jurados estão todos comprados? – Dizia outro. – Se eu fosse Juarez eu nem disputava mais, já se sabe quem vai ganhar! Este é um festival de cartas marcadas. – A pressão foi tamanha que eu comecei a torcer para a música de Juarez ganhar. Apesar de eu achar que a interpretação de Waldeir fosse inimitável, se ele ganhasse, adeus festival. Assim, fiquei só esperando o resultado morrendo de medo de Waldeir ganhar. Lá para as tantas o resultado saiu e foi passado para o locutor que anunciou quem eram a terceira, quarta e quinta colocadas e ficou fazendo suspense para revelar quem seria a grande campeã. À medida que o tempo passava, o suspense faltava matar de curiosidade a torcida.

– E a grande vencedora é… Calma! Quem vocês acham que venceu o Primeiro Rio Pardo Festival? – Gritos e mais gritos e ele fala o resultado…

– A grande vencedora é… “Sentimentos de um Poeta” de Juarez Carvalho na voz de Sinca e Marquinhos… – Enquanto Marquinhos passava mal (vide a foto que ilustra esta história) só se ouviu um barulho: Pou! Uma das irmãs do cantor vencedor caiu durinha no chão. Uma correria lascada, um barulhão danando gente tentando levá-la nos braços para o lado de fora, e a plateia ensandecida, gritando histericamente, se abraçando, torcendo e até chorando… impossível abrir passagem… A solução veio quando alguém correu lá fora e embebedou um chumaço de algodão em álcool e empurrou nas ventas da garota fazendo que ela acordasse na hora… – Ele ganhou! Meu irmão ganhou?

– Ganhou sim! – Foi ouvir a confimação e… Pou! Voltou a desmaiar!

Waldeir ficou em segundo lugar e nem ligou. Eu e Roger ficamos felizes por sabermos que o festival continuaria existindo (foram 11 anos ininterruptos). Waldeir, depois desse festival se consolidou como o grande cantor de Cândido Sales passando a namorar um monte de garotas nos shows que faziam nas cidades que circundavam a nossa Cândido Sales. Algum tempo depois morreu duro, do mesmo “jeitim” que chegou aqui, porém, com um sorriso feliz nos lábios!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, Bahia. Quadra de Novembro de 2022. Primavera chuvosa. Lua nova!