O DOM JUAN DO SERTÃO
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O DOM JUAN DO SERTÃO

No início dos anos 1950 as entranhas da terra onde viria ser construída a BR-116 começou a ser rasgada. A Empresa responsável pela construção da famosa rodagem, contratou todos os homens em condições de trabalho que existiam aqui na região e trouxe uma renca de forasteiros para compor o quadro de funcionários. Acampamentos foram construídos ao longo da futura Rio-Bahia e com estes acampamentos, centenas de aventureiros buscando a sobrevivência.

Além das famosas “mulheres-da-vida” que “trabalhavam” intensamente nas suas alcovas improvisadas, deram por aqui também, dezenas de malandros – expert’s em jogos de azar – que buscavam tomar na base da esperteza (leia-se: roleta, dados e baralho) parte do suor dos pobres catingueiros, devidamente transformados em moeda corrente. Além de ter que escapar das cobras, onças suçuaranas e de uma renca de outros animais selvagens – que tinha mais do que mato por aqui neste tempo – os coitados ainda tinha que fugir destes marreteiros que assim que ficava sabendo dos pagamentos (semanais) dos pobres trabalhadores, tentavam ludibria-los de todas as formas.

Nesta época um dos trabalhadores mais famosos da “empreita” era o Senhor Jaconias Manoel Pereira. Este moço era oriundo das bandas do Maranhão e era feio pra peste. Baixinho, cabeçudo, zoiudo, cabelo duro penteado pra cima, bigodinho mais ralo que papa de recém-nascido e conversador feito o diabo. Jaconias era tão feio que logo ganhou a alcunha de “Amigo da Onça”.  Adquirira o apelido por ser cagado e cuspido a cara do personagem criado pelo falecido cartunista Péricles de Andrade Maranhão, publicado com sucesso na década de 1960/1970 pela extinta Revista O Cruzeiro. O que o caboclo tinha de feio, tinha de sorte para os lados de mulher!  Nos dias de folga, a diversão do baixinho era desfilar com um “mulherão” que metia até medo. E olha que estamos falando de um tempo em que mulher (pelo menos por estas bandas) era mais rara que nota de duzentos nos dias de hoje!  Os solteiros da obra morriam de inveja do papudo, porém, o que podiam fazer? Quando se tratava de fêmea o cabra tinha uma lábia desconcertante e além de matar a cobra fazia questão de mostrar o pau – (sem trocadilhos).

– Quem foi que disse aí que eu sou feio? Eu só muito é do “bunito”!  Quando eu nasci mamãe passou açúcar em mim! Rsrsrsrsrsrs! – Insistia ele para os colegas. Quase todo final de semana, lá estava “Amigo da Onça” aos beijos com algum rabo-de-saia. – É chato ser gostoso! – Gritava ele logo no dia seguinte enquanto derrubava impiedosamente as árvores, após dormir “encoxado” com alguma linda mucama.  Nossa região era composta de alguns sítios, pequenas fazendas e um ou outro povoado. Em uma destas comunidades existia um caboclo alcunhado de Joca Rosca-Grossa, um fazendeiro valentão que ficara famoso por ter sangrado uma meia dúzia de “caba-rim” como gostava de alardear. Rosca-Grossa além de brabo era conversadorzinho feito o diabo e adorava uma boa encrenca. Se caracterizava por usar sempre um chapelão de vaqueiro e por levar sempre na sela da sua mula “Catarina” uma cartucheira polida cheia até as tampas de cartuchos.

Casado com Dona Frutuosa – uma bondosa senhora sergipana – o casal tinha uma filha única de uns quinze, dezesseis anos. Leidinha era uma galega meio sonsa, feinha de fazer dó, que gastava o seu precioso tempo se confessando o tempo inteiro com o Padre Pedro. Apesar de bem arrumada, percebia-se nitidamente que a sua “beleza” não tinha nenhum atrativo para “pescar” a atenção de algum bom partido.

Mas, nada é perfeito. Um belo dia, assim meio que na “bistunta”, “Amigo da Onça” não “meteu os ferros” na filha de Joca Rosca-Grossa emprenhando a coitadinha? Pois é! Foi um fuzuê! Quando Joca ficou sabendo, a barriguinha de Leidinha já estava com três, quatro meses de gravidez. Dona Frutuosa já tinha gastado todinho o estoque de desculpas (e de garrafadas encomendadas nas redondezas). Aliás, somente Joca acreditava que aquilo era “barriga d’água”, porque toda a região sabia de cor e salteado que aquilo era “minino”.

Quando esse homem ficou sabendo que a barriga d’água da filha não estava cheia de água, mas de uma coisa bem diferente… Hum!… Rosca Grossa enlouqueceu! Endoidou! Saiu do prumo! Primeiro deu uma dúzia de tabefes em Leidinha que se viu obrigada a confessar entre um soluço ou outro que fora desencaminhada pelo maranhense. Diante da pressão do pai furioso, a garota confessou tintim por tintim.  A confissão obrigatória da galega – tendo dona Frutuosa e o Padre Pedro como testemunhas – Fez Joca ficar fulo da vida,  armando-se de um cravinote (velho, é bem verdade), duas facas reluzentes, um punhal bem afiado, duas soqueiras de aço, uma palmatória rachada, um “embornal” de sal grosso e um trançado de couro cru e soltou  literalmente os cachorros pra cima de “Amigo da Onça”, capturando o baixote na base do  laço bem no meio do alojamento da obra, diante dos estupefatos olhares dos companheiros de trabalho.

As más línguas diziam que o velho “Amigo da Onça” nos últimos dias andava mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta. Tanto que já tinha combinado como o velho Onofre – encarregado da sua turma – que iria tirar uns dias de descanso naquele dito final de semana. Mas, lá estava o baixote derrubando as árvores com a ferocidade de sempre quando viu surgir gritando no alto da serra, parecendo até um cangaceiro e mais furioso que um marimbondo, empinando a arisca mula Catarina e descendo desembestado em sua direção rodopiando um grosso laço no ar, o avô do seu futuro filho.  Estupefato, o baixinho ainda tentou dar no pé… Pra que? Foi laçado com maestria pelas pernas, puxado à força pela cacunda e pendurado de cabeça para baixo na primeira gameleira que encontraram pelo caminho. “Amigo da Onça” só não foi morto ali mesmo devido a providencial intervenção dos colegas de turma que só de sacanagem ainda permitiu que Rosca-Grossa desse uma meia dúzia de “pescoção” no elegante conquistador. – Me acode, me acode, ele vai me matar, eu num fiz nada… – Gritava “Amigo da Onça” pra lá de desesperado. Com um afiado punhal roçando a sua garganta o conquistador entrou para a história promovendo um dos maiores vexames da nossa terra.  Eu não vi, é bem verdade, mas, as más línguas disseram que diante da pressão imposta pelo seu futuro sogro, o medo foi tanto que a flatulência (com perdão da palavra) que “Amigo da Onça” soltou pareceu até ser um daqueles “rojões” que se solta na noite da fogueira! Chorando e todo cagado, o maranhense viu serem chamados à sua presença a galeguinha sonsinha, devidamente acompanhada do Padre Pedro, que mesmo acanhado, se viu obrigado a participar do evento.

– Fala aí, Leidinha, o que este cretino fez à você? – Perguntou Rosca-Grossa espumando os cantos da boca. – Ele…  Ele fez ousadia, comigo… – Respondeu constrangida e com um fio de voz a filha do fazendeiro valentão. – Ele lhe pegou a força? – Perguntou o padre.

– Não senhor. Eu estava me lavando no riacho quando ele apareceu e depois de me ver pelada me pediu pra colocar só o dedinho e acabou enfiando uma coisa completamente diferente.

– Deixa de ser mentirosa! Foi você que pediu! – Gritou “Amigo da Onça” (mesmo pendurado de cabeça pra baixo) antes de ser interrompido por um tapão na boca, dado com violência por Rosca- Grossa!  – Cala essa boca “caba-rim” safado! Quer que eu corte a sua garganta aqui na frente de todo mundo, quer?

– Não senhor! – Falou o baixote engolindo o choro.

– Repita aí que Leidinha está mentindo pra eu lhe arrancar o saco com os dois grãos dentro? Se repetir eu lhe arranco fora este saco! Vou repetir a pergunta… Ela mentiu?

– Não senhor, ela tá falando a verdade sim. O culpado fui eu! Me perdoa, Leidinha, abusei da sua santa inocência! – Se desculpou o baixote chorando e espirrando sangue para tudo que ela lado.

– Você vai escolher… Ou eu lhe o mato ou lhe capo, o que prefere? – Perguntou Rosca Grossa enquanto abria com a peixeira de cima a baixo a calça do infeliz deixando os seus “documentos” à mostra!  – Não. – Gritou desesperada a galega. – Ele vai ser o pai do meu filho. Estou prenha! – Revelou à garota na presença de todos. Diante do choro da filha e do fedor emanado pelo Don Juan cagão, Rosca Grossa resolveu perguntar.

– E então, seu safado! Quer casar ou quer morrer?

– Cê tá doido coronel?  Eu me caso, eu me caso imediatamente, pelo amor de Deus me deixa vivo! – Chorou “Amigo da Onça” desesperado.  – Quer se casar com ele, minha filha! Este cagão não tem topete para ser pai de família! Tem certeza que quer se casar mesmo com ele?  –  Olhando para o quase desfalecido pai do seu futuro filho, Leidinha confirmou imediatamente o seu desejo de se “matrimoniar”, afinal, não queria que o menino já nascesse órfão de pai. Diante da pressão “Amigo da Onça” gritou “o sim” antes mesmo de ser perguntado e em um piscar de olhos, ali mesmo no alojamento, se matrimoniaram se tornando marido e mulher diante da presença do padre e dos olhos de Deus devidamente representado pelo matador Rosca-Grossa!

Sabe Deus como, naquela mesma noite a casa já tinha sido levantada e Rosca-Grossa promoveu um festão com muita comidas e bebidas para todo mundo, contando com quase todos os amigos de “Amigo da Onça” que dançaram a noite “inteirinhazinha” “encarcando” o chão da sala. Viveram felizes até a morte de Rosca-Grossa!

FIM

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, Bahia. Quadras de Junho de 2022. Nova de Outono.