Autor: Luz Carlos Figueiredo
Na zona rural da Nova Conquista dos anos 1960, existia uma garota conhecida pela alcunha de “Maria Tomba-Homem”. Maria era danada! Era tão danada que já havia namorado metade dos homens do entorno do povoado onde morava. Morena, cabelos encaracolados tipo Black Power, meio gordinha, e na arte do namoro era extremamente escolada, até em São Paulo já tinha ido sozinha. Ali pelos meados dos anos 1962, “Tomba-Homem”, que já era pra lá de “falada” e já tinha, inclusive, perdido a virgindade e com ela a esperança de algum dia vir a se matrimoniar, assim que butucou os “zóios” em Joaquim Bacurau percebeu imediatamente que ali estava o seu futuro marido e o agarrou com unhas e dentes. Bacurau estava longe de ser bonito, porém, era jovem, honesto e muito trabalhador, tanto que já tinha adquirido a sua própria junta de bois – dois nelores que metiam inveja em toda região. Dona Luzia, mulher de Felismino Açougueiro, sabia que o seu marido perdera completamente a esperança de ver a filha de véu e grinalda, porém, ela seguia acreditando. Tanto que toda semana acendia com uma fé fervorosa uma renca de velas coloridas para Santo Antônio e, quando menos percebeu, lá estava a sua filha encomendando o vestido de noiva.
A notícia do casamento de Maria Tomba-Homem com o abestalhado do Joaquim Bacurau caiu feito uma bomba no pequeno povoado. Não faltou quem a acusasse de estar se aproveitando da santa inocência do pobre rapaz, só que o temor de ficar para “titia” impulsionou Maria a usar todas as “armas” que possuía para segurá-lo, assim, bastou uma semana para se marcar o matrimônio, escolher as roupas, preparar os festejos (incluindo os comes e bebes) e, inclusive, contratar o santo padre da paróquia da Vila da Conquista.
Dois bois, quatro porcos, um capão, dois perus e meia dúzia de cocás foram impiedosamente abatidos para a grande festa, com convidados de toda a redondeza. Neste dito dia logo cedinho, “Tomba-Homem”, a astuta, chamou o seu irmão Zé de Nena e deu-lhe uma missão que não poderia falhar de jeito nenhum:
– Irmão… – falou Maria, extremamente nervosa às seis da manhã. – Aqui estão vinte cruzeiros. “Ocê” vai pegar o caminhão de seu Abdias e vai até Nova Conquista. “Ocê” sabe “adonde” é o armarinho de seu Zequinha?
– “Inhô” sei, irmã! Seu Ze… Ze… Zequinha é aquele… Aquele… Moço magro de… Bigode… – Já deu para perceber que o jovem Zé de Nena era gago, falava com uma dificuldade incrível, porém, apesar da sua pouca idade, era de uma responsabilidade estonteante. Nesta época um caminhão era utilizando todo dia de feira, levando na sua carroceria uma renca de passageiros, fazendo o trajeto entre o povoado e Nova Conquista.
– Pois é, Zé, você sobe agora no caminhão de seu Abdias, quando ele parar no meio da feira você salta, vá até o armarinho de seu Zequinha e compre um “tintol” vermelho, olhe bem!… Tem que ser da cor vermelha, não pode ser de outra cor. Pode até ficar com o
troco, compre o que quiser com ele, mas não perca o veículo e não se esqueça da cor… Vermelho, hein? – Falou Maria preocupada.
– Pode “dexá”, Maria… Ver… Ver… Vermelho… Tintol ver… Vermelho!
– É isto aí! Agora vá e volte logo. Suba no caminhão e umas duas da tarde você vai estar de volta. – E assim foi feito. Extremamente responsável Zé de Nena calçou as suas butinas de couro cru, vestiu a calça curinga meio-coronha, abotoou a camisa de manga comprida até o pescoço e mal terminara de colocar o suado chapéu de couro na cabeça já estava em cima da carroceria do caminhão de seu Abdias tomando vento na cara. Para quem não sabe, tintol é uma espécie de pó tingidor, muito usado no século passado para mudar a cor dos tecidos. Geralmente se colocava uma peça de roupa de uma determinada cor em um caldeirão com água misturado a um tubo de tintol. Após algumas horas de cozimento a roupa ficava tingida.
Bem, enquanto Zé de Nena cumpria a sua sina, Maria “Tomba-Homem”, astuciava ao lado da sua mãe (que sabia que a filha não era mais donzela) um plano para que durante a lua de mel Joaquim “Bacurau” não percebesse que o mel da sua “lua” já havia se perdido há tempos. Duas horas de viagem depois, eis que um sôfrego Zé de Nena adentra o colossal “Armarinho de seu Zequinha”. O espaço físico não era luxuoso, porém, enorme. Localizado onde ainda nos dias de hoje existe o Supermercado Cocebe de Oriston. Zequinha Lemos vendia desde emulsão de Scott (o remédio que fazia as crianças tremerem de medo de tão ruim que era) até miudezas como agulhas, linhas, anzóis, tecidos, fogos, pregos, parafusos, chuliadeiras, chupetas, espelhos, peças pra bicicleta, óculos, panelas, penicos, babador e até parafusos para cabo de serrote. Dia de feira, para se entrar no armarinho de seu Zequinha era um inferno! Impossível saber de onde saía tanta gente para comprar ali. A fila ia de uma esquina à outra. Zé de Nena, gago e tímido, entrou na fila e ficou ali, mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta esperando ser atendido. Na parte de dentro do balcão, Zequinha Ferraz e mais uma meia dúzia de funcionários suava as camisas para atender todos em tempo hábil. Quanto mais rápido, melhor. De repente chega à vez de Zé ser atendido e o dono pergunta com uma paciência de monge:
– E “ocê” menino, o que “ocê qué”?
– Um Tin… Tin… Tin… Tol, seu Zequinha! – Que cor, meu filho? – voltou a perguntar o paciente senhor! – Ver… Ver… Ver… Uma coisa que um gago não pode passar é aperto… Diante do empurra-empurra da fila, Zé de Nena já estava pra lá de agoniado e vermelho feito um peru. Nervoso ele tentava falar à palavra certa e nada dela sair… – Ver… Ver… Ver…
– Que diabo é isso, seu Zequinha? A merda dessa fila anda ou não nada? – gritou logo atrás um pernambucano pra lá de aperreado e no desespero, seu Zequinha falou: –
Verde! – Pegou o tintol verde, embrulhou em um pedaço de jornal, entregou para Zé, voltou o troco e foi atender o impaciente. No nervosismo Zé de Nena não percebeu o engano. Colocou delicadamente o tubo de tintol na algibeira e, feliz da vida, comprou um picolé de groselha com o troco. Logo estava de volta na boleia do caminhão de seu Abdias, sentindo aquele ventinho no rosto. Mal adentrou o povoado e Maria Tomba-Homem, aliviada, ficou toda feliz ao vê-lo descer do velho caminhão Ford entupido até a tampa de passageiros. – Obrigada, meu irmão, muito obrigada… Passo a lhe dever um grande favor! – Agradecida, pegou o tintol e encheu o irmão de beijos, correndo logo em seguida ao encontro da mãe. No escuro de um quartinho as duas dissolveram o tubo de pó em meio copo de água quente para em seguida transferir para um recipiente de desodorante destes de apertar. Após testarem para ver se tudo estava de acordo, não perceberam no escuro que o vermelho não era tão vermelho assim e que no referido frasco ainda existia uma boa quantidade de álcool.
Cai à noite, o velho casarão fica completamente lotado de convidados dançando forró enquanto muitos se deliciam com a farta distribuição de comidas e bebidas, o noivo recebendo os cumprimentos, todo “empetecado”, utilizando, inclusive, um cravo na lapela do paletó e em um canto da sala, feliz igual pinto no lixo, Felismino Açougueiro, bêbado feito um gambá! Afinal de contas ele já tinha perdido as esperanças de um dia ver Maria “Tomba-Homem” casada, e não foi que este dia chegou? Assim, pra lá de radiante o velho açougueiro entornava o caldo tomando uma “conena” atrás da outra. Elogios, muitos presentes, o sanfoneiro “castigando” a concertina e diante de toda aquela alegria dona Luzia pediu a palavra:
– Meu povo… – Falou radiante. – Nós, pais de Maria das Camélias e de Joaquim da Silva, agradecemos de coração a presença de todos “mecêis” que saíram das suas casas e vieram prestigiar com as suas presenças este grande “casório”! Pois bem! Todo mundo já comeu e bebeu, agora “ancêis” vão para as suas casas que os noivos precisam de tranquilidade para fazer o “calamengau”! Muito obrigado à todos! – Apupos, aplausos, o bêbado Isaurino enchendo os bolsos do paletó de pasteis e logo sobraram apenas os pais dos noivos na festa. Astuta, Dona Luzia acomodou os pais do noivo em um quarto particular e, após botar o marido embriagado para dormir, correu para a porta do quarto dos noivos para ouvir a encenação protagonizada por sua filha Maria, tendo ela própria como grande diretora. Dentro do quarto, “Tomba-Homem” usando toda a sua experiência começou a falar com uma voz dengosa como se fosse uma garotinha:
– Ah, bem… Não quero! Hoje eu não quero! “Vamo” deixá pra fazer amanhã! Eu estou com medo! Espera pra amanhã, vai… diz que sim…
– Que amanhã que nada, amor. Eu quero é hoje! Esperei tanto por isso… – gritava um pra lá de agoniado Joaquim Bacurau já em ponto de riscar paredes. – Não. Hoje não! -Fingia a garota! – Quero hoje sim. Não aguento esperar mais não. – Dizia tirando sofregamente a roupa enquanto “Tomba-Homem” cobria os olhos, fingindo! – Eu nunca vi um homem pelado não, apague a candeia! – Que nada, no claro é que é bom, meu bem! – Do lado de fora do quarto, dona Luzia vibrava com a interpretação da filha! – Vem aqui meu amor, vem! – Pedia desesperadamente Bacurau puxando Maria para perto de si. – Ou ocê apaga essa candeia ou num vamo fazê nada hoje! – Tá bom, meu bem! Vem cá, vem! – Falou Joaquim apagando o candeeiro. No escuro, Maria se agarrou ao amado e, entre beijos e línguas, mãos, uivos e gemidos, eis que, para desespero de uma nervosa Dona Luzia, chega o grande momento: – Ah amor! Eu não sou acostumada com essas coisas não. Devagar, amor… Devagar… – balbuciava “Tomba-Homem”, segurando o ímpeto do amado com toda a sua experiência! Por seu lado, Bacurau se contorcia de todas as maneiras, se ralando todo, procurando um meio de chegar ao “paraíso”.
Neste “lengalenga”, vai não vai, até dona Luzia (que estava do lado de fora) já estava suada, imagine então “Tomba-Homem”, que não tinha o apelido por acaso, ali, contemplando aquelas “batidas insistentes na sua porta”? Descontrolada, louca para a concretização da consubstanciação, pegou de supetão no escurinho da alcova, bem debaixo do travesseiro a sua “arma-secreta” e, quando, enfim, Bacurau encontrou “o caminho das índias” ela espirrou o conteúdo da embalagem bem na porta fazendo o marido dar um grito ensurdecedor e cair da cama segurando desesperadamente o “torniquete”:
– Ai, ai, meu Deus, tá ardendo, o que foi isto? Está queimando! – O que é amor, o que houve? – perguntou Maria “Tomba-Homem” extremamente preocupada. – Acende a candeia, acende! Ai meu Deus me acode! – Ali em meio ao desespero, procuraram um fósforo, não acharam e logo dona Luzia adentrou o quarto com um fifó aceso na mão. – O que foi filha, o que foi? – Não sei mãe, não sei… Joaquim está gritando, não sei… – Assim que dona Luzia levantou o fifó deu de cara com o “instrumento enrijecido” do noivo todo lambuzado de um líquido verde e gosmento! Com a cara mais limpa do mundo, gritou:
– Safado, sem vergonha! Cretino! Tá querendo matar a minha filha é? Em vez de tirar a virgindade da bichinha, oia só o que você fez? Furou o fel da coitadinha! – Claro que Joaquim acreditou!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta.
Quadra de Abril de 2022. Lua cheia de Outono.
Foto: Reprodução