MÃE, PRIVILÉGIO OU SACRIFÍCIO?
Artigos

MÃE, PRIVILÉGIO OU SACRIFÍCIO?

Autor: Danilo Sili Borges

Conta a história do cristianismo que para trazer seu filho ao mundo Deus resolveu concebê-lo no ventre de uma mulher. Com seu poder supremo e absoluto, poderia tê-lo feito de tantas outras maneiras que as limitações da mente humana são incapazes de perceber.
À essa virgem jovem, primeiro a incompreensão do prometido esposo, o desconforto da gravidez e as dores do parto. Seguiram-se à mulher e mãe, as angústias da vida aventurosa do predestinado filho homem, flecha por ela lançada ao mundo, no dizer do poeta Kalil Gibran Kalil, e a dor infinita de vê-lo preso, torturado e morto.
Para sempre, a Natureza por milênios preparou a mulher para a tarefa de ser a guardiã da vida humana, garantindo-a e protegendo-a com o ninho do seu próprio corpo. E assim tem sido.
A complexidade e as exigências da vida social neste planeta, ou em partes dele, opõe-se muitas vezes ao que dispõe o Universo para o todo e surgem conflitos dolorosos, localizados, mas nem por isso menos perturbadores, para os que neles se veem envolvidos. Este é o contexto, como entendemos, das discussões em torno do direito à mãe da interrupção da gravidez.
Às vésperas da comemoração, entre nós, do Dia das Mães, a mídia internacional repercute forte crise na maior democracia do mundo a respeito da liberdade das mulheres decidirem por fazerem aborto sem restrições legais nos Estados Unidos. Assunto que parecia pacificado desde 1973 por decisão do Suprema Corte ao interpretar a Constituição (de 1787) sem que o assunto nunca tivesse sido levado às instâncias legislativas federais. Até então o assunto era resolvido em cada estado da federação.
Conservadores são, em geral, contrários à liberdade ampla do direito ao aborto, o que contrasta com a posição dos liberais. A Suprema Corte, cujos 9 membros são indicados pelo Presidente da República com mandatos vitalícios, acaba por compor maiorias, ora liberais, ora conservadoras, ao longo desses quase 50 anos. Obviamente, não é possível para cada mudança de configuração da corte reinterpretar, “in totum”, a Lei Maior e assim tem sido.
Atualmente, há maioria conservadora de 5×4. Versão preliminar de voto do Ministro Samuel Alito em caso concreto, vazado à imprensa, permite antever que o entendimento da gravidez até a 23ª semana deverá ser revisto, com base em nova interpretação da constituição, diga-se, documento paradigmático para a elaboração dos preceitos garantidores das liberdades individuais por todo o mundo, característica da América e sua melhor contribuição ao mundo nos séculos XIX e XX.
O conhecimento público da possível reinterpretação da legalidade do aborto, alertou os movimentos feministas que foram imediatamente às ruas na defesa da autonomia da mulher decidir pela não continuidade da gravidez, sob o forte argumento da liberdade individual de tomar decisões sobre o seu próprio corpo.
Em muitos países essa propriedade é constante dos códigos legais, em quase todos os demais a discussão vem sendo travada nas câmaras legislativas, na imprensa, nas ruas e praças, a fazer parte importante da pauta internacional das mulheres pela igualdade de direitos. A inegável influência cultural norte-americana é paradigma para reivindicações libertárias, uma mudança no entendimento da sua legislação quanto ao direito ao aborto, significaria o enfraquecimento da luta que vem sendo travada.
Surpreende-me como brasileiro, leigo nas leis e na estrutura jurídica do nosso país e mais ainda na americana, saber que assunto de tal importância e repercussão, por lá, se decide com base na Constituição de 1787, seus sete artigos e 27 emendas, sendo a última de 1992 e que poderá agora ser alterado, com entendimento na mesma Constituição original, por releituras.
No Brasil, após a Independência em 1822, já tivemos 7 textos constitucionais. A atual, a famosa Constituição Cidadã, como a denominou Ulisses Guimarães, tem 245 artigos, sofre constantes emendas, (pelo que apurei, 117 até abril de 2022) dizem que para aperfeiçoá-la. Do meu posto de observação, parece-me que sempre para acomodar interesses, nem sempre tão republicanos quanto deveríamos esperar.
Especificamente sobre a interrupção da gravidez, por aqui a legislação só a permite em circunstâncias bastante estreitas e bem determinadas. Feministas pretendem ampliar direitos de autonomia de decisão por parte das mulheres, ao que movimentos religiosos vigorosamente se opõem.
Fatos esdrúxulos, quase cômicos, ocorrem devido a essa polêmica. Há poucos dias, um candidato à presidência da República, em entrevista, manifestou-se a favor, tentando agradar às feministas, logo gerando reação dos evangélicos, o que lhe obrigou a um contorcionismo de opinião, afirmando que politicamente ele era a favor do aborto, mas pessoalmente contra. Ninguém entendeu sobre o que ele realmente pensa! Uma no prego, outra na ferradura.
Para dar guarida a gente assim é que precisamos de uma constituição tão grande.
Crônicas da Madrugada. Danilo Sili Borges. Brasília – Mai. 2022
[email protected]
O autor é membro da Academia Rotária de Letras do Distrito Federal. ABROL BRASÍLIA