HISTÓRIAS DE BOTEQUINS.
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HISTÓRIAS DE BOTEQUINS.

Dizem que de poeta e louco, todo mundo tem um pouco. Quando se chega a uma certa idade a coisa certa a se fazer é procurar viver em harmonia, deixar as picuinhas de lado e aproveitar o que ainda nos resta de vida. Se sentar nos finais de semana, por exemplo, na porta de um botequim, de preferência debaixo de uma árvore, ouvindo uma boa música, trocando dois dedos de prosa com alguns amigos e interagindo em tempo real com o vento na sua mais perfeita tradução, pode se dizer que é uma delas. Enquanto o vento segue o seu caminho previamente traçado, nós, reles mortais, seguimos o nosso, mesmo sabendo que temos data de validade, embora – cantava o bardo – neguemos veementemente o que sabemos ser imutável, ou seja, o direito de nos sentarmos “no trono de nossas residências, com a boca escancarada, cheia de dentes esperando a morte chegar”.

À medida que os ponteiros dos relógios avançam, gradativamente vamos ocultando as nossas ansiedades, temores, dificuldades, desesperanças e dúvidas. Para isso usamos a arte, a prosa e a música, devidamente acompanhada por uma Brahma gelada… Sim. Ninguém é de ferro! Nascemos neste mundo para “trafegarmos tropegamente através desta matéria fétida que chamamos de corpo. Temos ciência que a passagem por aqui é rápida e indolor e que a única e definitiva certeza que temos é o encontro com ela, a “Véa da Foice”.  Pois é, a tal da “Véa” não é pra amadores não, está sempre aí, à espreita, escondida no breu do seu manto, coberta com o seu sinistro capuz, conduzindo a sua foice amolada, atormentando diariamente a humanidade… Assim, o melhor é ir se acostumando com esta onisciente presença e… relaxar. É exatamente isso que eu, acompanhado de meia dúzia de amigos, buscamos fazer de quando em vez – nos reunimos em volta de uma távola apenas para celebrar a vida. Vida que à medida que vivemos vai ficando menor a cada dia! Vocês que chegaram aos 60 sabem mais ou menos do que estou falando. Os amigos que restaram são poucos… (alguns são poetas, outros são loucos e as vezes as duas coisas juntas) a música entra como trilha sonora apenas para trocarmos um ou dois dedos de prosa. Ali no entorno da távola, não existe regras… falamos de tudo quanto há. Todo mundo se considera um especialista… Política, música, literatura, comportamento, futebol e principalmente, gente… afinal de contas, gente também é notícia…

Tudo em torno da mesa soa trágico… desde o amigo que se casou até o que vai se descasar… Cada tragédia é comemorada com risos, não que sejamos sádicos, mas, indubitavelmente, no botequim, a mais terrível tragédia tem ares de comédia. Assim, gargalhar é preciso! Vivamos a vida enquanto a “Véa da Foice” não aparece… Toda semana surge automaticamente um tema novo. “Isturdia” falamos sobre a orientação sexual do brasileiro, já que atualmente se transformou em um dos debates mais acalorados da ciência. Claro que nas mesas dos botequins, este tipo de tema é fundamental. Nos últimos anos, pesquisadores começaram a apontar os novos (e surpreendentes) caminhos da sexualidade. As maiores novidades vêm dos estudos biológicos. Eles indicam que a formação da sexualidade acontece antes do nascimento – em parte pelos genes, mas também por fatores que atuam no desenvolvimento do feto. Não há nada comprovado e ainda falta muito a ser desvendado, especialmente sobre a influência do ambiente onde a criança é criada.  Os “especialistas” da távola chegaram à conclusão que nestes tempos modernos, houve uma considerável redução dos suicídios dos que se negavam a assumir a sua condição sexual. Até os anos 1980 (pelo menos aqui no nosso torrão), de quando em vez, muitos “não assumidos” apareciam pendurados, balançando em uma corda, geralmente deixando um bilhetinho manuscrito para a família explicando o porquê de estar partindo fora do combinado. Faltavam coragem para se assumirem homossexuais perante o “sistema” hipócrita e prepotente. Hoje, até os pais mais radicais são obrigados a “engolir” de vez em quando a preferência sexual do filho (ou filha).

Dia destes, lá estávamos nós discutindo este tema quando deu de aparecer um caboclinho todo “metido a inteligente” que ia passando e resolveu – mesmo sem ser convidado – entrar na conversa. Estufou o peito e crente que estivesse abafando, bradou:  – Olha, eu não sei vocês, mas eu fui criado assim: Com dois anos de idade, meu querido e velho pai me pegava pela mão e saía me mostrando… “Tá vendo ali, meu filho?” – Dizia ele.  – “Aquilo ali é uma mulher. Nós homens gostamos de mulher. Mulher gosta de homem. Quando você crescer, você tem que gostar de mulher”, entendeu? E foi assim… – falou orgulhoso –… Que eu cresci sabendo que eu tinha que gostar de mulher por eu ser homem! – Enquanto ele esperava os aplausos, alguém gritou:

– Quer dizer que você só é homem porque o seu pai mandou? Então se o seu querido e velho pai pedisse pra você gostar de homem, você aceitaria de bom grado, né?  – Foi tanta zoação que o caboclo saíu à francesa. Isso me fez lembrar do pobre Josivaldo (gay não assumido), que para ficar de olho nos garotos, promovia festas apoteóticas e convidava uma renca de garotas sob a condição de cada uma levar um acompanhante à tiracolo. Certa feita ele alugou uma casa do balneário do Porto de Santa Cruz e convidou todo mundo. Funcionário público – ganhando razoavelmente bem – ele juntou uma grana e entupiu o freezer de carnes nobres e bebidas sofisticadas. Casa decorada, luzes piscando, churrasco fumegando, som no mais alto volume e ele todo saltitante se apresentando para a moçada… Disfarçadamente, de vez em quando beijava uma das amigas, abraçava um amigo, mas estava de olho mesmo era na grande paixão (não correspondida) da sua vida. Apesar de ser o primeiro a ser convidado, nem passava pela cabeça do garoto que o dono da casa era apaixonado por ele. Entre danças, “comes e bebes”, beijos e abraços, o anfitrião ficava só esperando à oportunidade para dar o bote no rapaz. Na sua cabeça ele se assumiria para o jovem naquela mesma noite e ambos viveriam felizes para sempre. Conversa vai, conversa vem, e depois de dar atenção para os jovens presentes, sentiu a ausência do seu “doce amado” e quando deu de entrar na sua alcova encontrou o jovem na sua cama, pra lá de entrelaçado nas coxas da sua melhor amiga. Descontrolado, Josivaldo teve uma crise violenta de infezação e aos gritos, atirou no meio da rua tudo que estava no freezer, desde latinhas de cerveja até as sacolas de carnes e embutidos, passando por doces, paçocas, pães e bolos. Furioso, botou todo mundo porta afora aos berros:

– Sai todo mundo daqui. Não quero mais ninguém aqui na minha casa. Fora, fora, fora… Ingratos, renca de vagabundos… vigaristas, fora! – Não ficou ninguém, saíram todos. Fora da casa, uma das amigas mais íntimas do anfitrião deu a testa:

– Pera lá, pera lá, pera lá… Tem alguma coisa errada aí. Josivaldo está bêbado, porém, nunca foi mal educado. Vamos falar com ele pra ver o que houve?

– Que ele se lasque! Ele foi indelicado com a gente. Detesto falta de educação. Nos expulsou da sua casa. Eu não volto lá mais não! – Falou o amigo.

– Gente, dê um desconto, o pobrezinho está bêbado! Todo mundo aqui sabe que sóbrio ele não é assim! Vamos voltar, não podemos deixá-lo sozinho não! Vamos lá. – A turma voltou e quando chegou diante da casa, desconfiou da porta trancada e após chamarem por uns dez minutos, deram na bistunta de saltarem o muro e após procurar exaustivamente pela casa, alguém teve a ideia de abrir o freezer e lá estava Josivaldo dentro, trêmulo, encolhido e completamente congelado, chorando aos berros: – Eu quero morrer, ninguém me ama e ninguém me quer! – Naquela mesma noite, completamente chapados, depois de um banho quente coletivo, dormiu todo mundo pelado e amontoados na mesma cama.

Pois é. São histórias de botequins. Isto me fez lembrar de 1999 quando o prefeito eleito foi destituído do cargo e de uma hora para outra, eu e mais uns quinhentos funcionários fomos postos no olho da rua. Enquanto entrávamos em “depressão”, os que assumiam a prefeitura saíam às ruas soltando fogos e fazendo festa. Passadas algumas semanas, ao voltar da rádio onde eu fazia um programa diário, bati de frente com alguns dos ex-companheiros pra lá de desolados, afogando as suas mágoas em um barzinho bem no centro da cidade. Diante da insistência, aceitei tomar um copo de brahma e à medida que fluía o papo, fomos relaxando e pedimos para a dona do boteco tocar um dos cd’s que eu trazia da rádio. A coisa estava tão boa que já tinha até companheiros dançando quando entrou no recinto uma renca de baba-ovos do novo gestor, entre os quais um açougueiro recém-chegado por aqui, conhecido pela alcunha de Bastião Almeida. O cara tinha fama de valentão e pra variar já estava completamente moqueado. Bastou nos ver para já ir pedindo um copo de canjebrina e virar goela adentro: – A coisa hoje aqui não está boa. É hoje que eu arranjo um tumba com estes come-feiras, nunca mais matei ninguém, estou até com saudade! Vai ser hoje!

Éramos uns cinco, olhei pra todos da mesa e fiquei triste, tinha gente quase se borrando. Tentei manter a calma e pedi à garçonete uma saideira. A pobre moça, mais branca que vela, trouxe a cerveja quase que tropicando nas próprias pernas. – Aqui está. – Falou abrindo a cerveja. – Melhor vocês irem embora pra evitar encrencas. – Já estávamos fadados a deixar a mesa quando o valentão gritou para a pobre moça com uma arrogância de meter medo:

– Quem foi que botou esta merda de música? Tire isso daí agora. – A moça nos olhou quase que desmaiando e quando foi tirar a música achei aquilo de um desaforo indescritível e ao ver que ninguém ali na mesa tinha coragem de fazer nada, fiz do medo coragem e me levantei; – É o seguinte “caba réi”, chegamos primeiro e estamos ouvindo, assim que a música terminar você pode botar o que quiser pra tocar. Por favor, não mexa no disco! – O cara me olhou de cima abaixo e falou com a sua voz de trovão: – Ou tira este disco agora ou vou quebrar a radiola! – A pobre da garçonete faltou botar um ovo. Olhou pra mim, olhou pro valentão e abriu o berreiro. Diante do impasse eu resolvi dar uma blefada pra ver até que ponto o “machão” ia. Engrossei a voz e bradei: – Esta música vai tocar até terminar. Quero ver quem é o gostoso que vai quebrar a radiola? – Falei grosso e o caboclo amarelou, fui até o balcão e fiquei só olhando pra ele, que nesta altura ameaçava puxar alguma coisa de baixo da camisa. Enquanto eu procurava manter a calma, os amigos do valentão tentavam contê-lo. Furioso, o “brabão” empurrava um, empurrava outro e queria porque queria ir às vias de fato. Enquanto pulava igual macaco adestrado, eu mantive a distância, fechei a cara e fiquei só assistindo…

– Gente, pelo amor de Deus, não briga aqui não. Vai quebrar o meu bar todinho! – Gritava a pobre garçonete. Entre o empurra lá que eu empurro cá, não deu de sair de baixo do balcão uma barata desembestada pelo meio do salão? Foi. Ao ver a cucaracha o “valentão” deu um gritinho, se desmunhecou todinho e completamente desesperado, subiu na mesa.

– Ai meu Deus, uma barata. Uma barata. Mata ela, mata ela, sai pra lá bicha nojenta, sai pra lá, fora, xô! Tira este bicho daqui! – Gritava sapateando em cima da mesa, morto de medo enquanto a pobre garçonete dava com a vassoura na cabeça da barata que se esquivava das vassouradas com uma incrível habilidade! A tragédia virou comédia. O valentão que tinha medo de baratas ficou desmoralizado. Rachamos de tanto rir e a cucaracha conseguiu fugir, embora completamente mochilada das pancadas. Naquela noite voltamos felizes para casa, a barata havia vingado todos nós.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e poeta

Cândido Sales, BA. Quadras de Junho de 2024. Minguante de Outono.