FUTEBOL NÃO É “PÃO E CIRCO”
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FUTEBOL NÃO É “PÃO E CIRCO”

Autor: Luiz Henrique Borges | Foto: Reprodução

O futebol, como os esportes em geral, por muito tempo não foi percebido como um
assunto sério, como se ele fosse apenas “pão e circo”, desvinculado da realidade brasileira. Lembro que em 2006, além de professor universitário, dava aulas em uma conceituada escola no ensino médio e comentei sobre a pesquisa que estava desenvolvendo para o mestrado, tendo o futebol como temática. Uma excelente aluna, de pronto, me indagou: “O que o futebol tem de importante? O que ele explicará da história brasileira?”
Doze anos decorridos, já tendo concluído o doutorado, no qual também trabalhei com
o futebol, mais precisamente com a rivalidade entre o futebol brasileiro e o argentino e como cada país percebia o seu adversário, a partir do que a imprensa de cada rival publicava ao longo do tempo, uma alta servidora do órgão no qual sou concursado perguntou: “O que o futebol tem a ver com o patrimônio histórico brasileiro?”. Se pensarmos no teor dessas indagações, percebemos que mesmo entre pessoas bem informadas a imagem do futebol como “pão e circo” continua existindo.
Para não deixá-lo, caro leitor, sem as respostas dadas à época, para a aluna fiz um
rápido apanhado sobre a questão racial no Brasil, estudávamos a escravidão, e lhe falei, da importância do Vasco da Gama, no final da década de 20, ao romper com os estigmas raciais que desmereciam o negro e o indígena e contei à jovem que Pelé e Garrincha, dois ícones do futebol mundial, no meu entender, os dois maiores jogadores que o mundo gestou, eram descendentes dessas duas “raças”. Disse-lhe que a Seleção, contando em campo com esses dois atletas, jamais perdeu uma única, das 40 partidas em que eles atuaram juntos.
Fiz ver a alta funcionária, que não há algo mais próprio da identidade do nosso povo
que o futebol e o carnaval. Esses dois elementos unem brasileiros de todas as regiões do país e nos faz reconhecidos também internacionalmente. Se a identidade construída por tais aspectos da nossa cultura não são patrimônios culturais brasileiros, o que seria então?
Torcer por um clube ou pelo selecionado do país significa participar ativamente da
vida social e da construção de identidades que extrapolam o âmbito privado, tais como a casa e a família. Torcer para o Bahia ou para o Vitória, por exemplo, significa criar laços idenitários com esses clubes. Eu, como botafoguense, tenho uma identidade forte com o meu time do coração. O botafoguense sofre antes de qualquer outra coisa, ele espera pela catástrofe antes da arrebatadora vitória, o símbolo é o Pato Donald, “reclamão”, e é exatamente desta maneira que assisto e torço pela estrela solitária. Sofrendo, antes mesmo do resultado final, reclamando de tudo e de todos, antes mesmo do apito inicial. Mas, ao assistir uma partida da Seleção Brasileira, meu humor, minha identidade, muda totalmente, sou tomado pelo ufanismo, pela certeza da vitória e, acima de tudo, que ela será acompanhada pelo bom futebol, pelo que denominamos de “futebol-arte”.
O futebol pode ser utilizado como objeto de “alienação”, como “pão e circo”? Certamente. Mas isso não se restringe ao futebol, tal utilização pode ser encontrada em qualquer atividade que envolve o ser-humano. Vamos para outro assunto popular, as novelas. Elas também eram acusadas de serem alienantes, mas para o espectador atento e crítico, elas trazem discussões atuais e reflexões sobre os mais variados assuntos.
Enfim, o que transforma um objeto em alienante é o uso que nós, receptores, fazemos
dele. Aqueles torcedores que vão ao jogo de futebol para agredir os seus rivais, que provocam as confusões nas arquibancadas e nas imediações dos estádios, transformaram-no em algo alienante. Mas o culpado é o futebol ou o uso que o torcedor fez deste objeto? Quem de fato o transformou em “pão em circo”?
O direito à diversão, ao lazer, ao tempo livre, foram conquistas obtidas com muito
esforço especialmente pelos homens que viveram no final do século XIX e no início do século XX, ou seja, seus frutos não podem ser vistos necessariamente como alienantes. O futebol é paixão, como diria Nelson Rodrigues, é elemento de diversão de milhares de brasileiros, seja jogando seus “rachas”, suas “peladas”, seja assistindo os jogos amadores ou profissionais. Nós pulsamos, sofremos, amamos, naqueles 90 minutos, enfim, vivemos. Torcer é pertencer. No campo e na vida, na ginga e no jogo, no peito e na raça se fundem brasilidade e futebol.