ENTRE O PRAZER E A DOR.
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ENTRE O PRAZER E A DOR.

Chuva caindo, um lamaçal lascado, raios, trovões, rios, córregos e lagos transbordando e lá seguia focado na sua função, o jovem mascate Fenelon. De quando em vez a sua dupla de jumentos empacava diante do atoleiro, mas, completamente indiferente o comerciante usava toda a sua força para seguir em frente. No lombo dos animais uma variedade de mercadorias… Grãos, carne do sertão, panelas de alumínio, talheres, tecido variados e até penico esmaltado.

Estamos em 1962, o Sertão da Ressaca – completamente desbravado – tem como referência o grande centro comercial de Vitória da Conquista. As cidadelas do entorno, dependiam economicamente desta localidade para as suas necessidades básicas, tais como compras, cartórios, delegacias, justiça, igrejas e afins. Embora muita gente tivesse Conquista como referência, ainda existiam no interior do município a presença dos famosos mascates que vendiam de porta em porta tudo quanto há.

Nesta referida região existiam várias fazendas, entre as quais a do velho Zambuco, um nordestino que deu por estas bandas na década de 1940, tomou gosto pelo lugar e após muito suor conseguiu prosperar e constituir uma linda família, habitantes do Rancho Águas Turvas. Zambuco era casado com dona Francisquinha e tiveram 3 filhas, todas lindas e escoladas. Zefinha era a mais velha e mais comunicativa. Do alto dos seus 40 anos a “senhora-moça”, bonita e prendada, deixou de se casar por ser extremamente exigente. À medida que passava o tempo ela testemunhava incólume suas irmãs mais novas se matrimoniando. Zefinha já se imaginava uma velha encruada, porém, prometera a si mesma que só se casaria com alguém que o seu coração escolhesse e até aquele momento ninguém chamara a sua atenção, o que mais lhe atormentava era chegar aos 40 sem sequer, saber o gosto molhado de um beijo. Isso a tirava da sua zona de conforto.

Verdade seja dita, Zefinha era a mais linda das três. Corpo totalmente sinuoso, baixinha de cabelos sedosos e curtos, corpo de “carne batida” moldado à lida diária, seios fartos e duros, olhos agateados, fala sensual e andar desconcertante.

Neste tempo a região fervilhava de tropeiros, boiadeiros, coronéis e mascates. Estes saíam de porta em porta oferecendo mercadorias oriundas do sul do país. A maioria destes moços cruzava o sertão em lombos de animais, embora, alguns andasse de pés, conduzindo na cacunda os seus sacos e alforjes. Neste dia chuvoso deu de aparecer por aqui o jovem Fenelon, um famoso mascate que atiçava o coração das donzelas da região e que nunca tinha passado no Rancho do pai de Zefinha. O jovem mascate era muito educado, tinha uns 18 anos de idade – aproximadamente -, lia, escrevia e calculava com uma destreza indescritível e sempre passava no dia marcado para suas vendas e cobranças. O moço tinha a pele negra, cabelo duro, sorriso fácil e dizia ser oriundo da antiga Vila do Poção (se transformaria depois na cidade de Poções aqui mesmo no Sudoeste). O jovem mascate saía pelo sertão puxando sua dupla de jumentos, conduzindo seus alforjes e bruacas entupidos de mercadorias e era um especialista em vendas. Do alto dos seus 18 anos, o rapaz só se interessava em fazer o seu pé-de-meia. Trabalhava feito um louco diante de todos os perigos oferecidos pelo quase inatingível sertão.

Alas que um belo dia, após visitar dezenas de casebres comercializando as suas bugigangas, diante de uma tempestade tenebrosa, Fenelon deu de bater na fazenda do velho Zambuco. Chegou – completamente molhado – com a sua capa de tropeiro, abriu a cancela, amarrou os animais e após perceber que não saíra ninguém do imenso casarão, começou a bater palmas na porta.

– Ô de casa, aqui é Fenelon Mascate, fui surpreendido pela tempestade, careço de uma guarida, tem alguém aí? Posso pagar com mercadorias fresquinhas chegadas do Sul, tem alguém aí? Por favor, me arranje uma guarida, a chuva está forte e as águas estão invadindo tudo, me dê uma guarida por favor!  – Gritava Fenelon, desesperado, batendo palmas à porta da casa grande do velho Zambuco. –  Ô de casa, tem alguém aí? – Mal terminou de gritar e quem aparece para abrir a porta? Zefinha, a mulher-moça, conduzindo uma candeia iluminando a tarde cinzenta.

– Meu pai foi na Vila da Conquista, não está em casa não, senhor! Só quando ele chegar… –  Quando os olhos agateados da moça cruzaram com os de Fenelon foi um efeito devastador, amor à primeira vista. A jovem senhora titubeou, o mascate deixou cair o alforje que trazia nas mãos e ficaram como que hipnotizados olhando um para o outro.

– Olá, eu sou Zefinha filha do senhor Zambuco e de dona Francisquinha… – Como hipnotizado o jovem mascate só conseguiu dizer:

– Meu Deus, como você é linda! eu…  – Mal abriu a boca e já foi puxado para dentro de casa. – Lhe esperei muito, tem que ser você! – Gritou a moça tão vidrada quanto o moço. Sentaram-se no sofá e com as mãos entrelaçadas ficaram se olhando mutuamente. Como em um passe de mágica descobriram que um havia sido feito para o outro e que mesmo se vendo pela primeira vez. Ambos estavam loucamente apaixonados.

– Case-se comigo! – Balbuciou Zefinha. Apesar de jovem, aquilo era tudo o que Fenelon desejava na vida, logo, abraçados, esperaram pacientemente o restante da família chegar e para surpresa de todos, Fenelon pediu a mão da jovem senhora desconcertando completamente o velho Zambuco.

– Oxente, vocês já se conheciam? Que diabo de pressa é essa? Aconteceu alguma intimidade entre vocês, Zefinha? – Quis saber o velho Zambuco.

As explicações duraram uma eternidade, Fenelon se apresentou relatando que apesar de jovem já tinha construído com o suor do seu rosto um “pé de meia” razoável (trabalhava desde os 12 anos) e tinha condições de sustentar uma esposa. Tinha certeza absoluta que um nascera para o outro. Zefinha, leitora voraz, comparou o amor devastador que os arrebataram naquele momento como às histórias existentes nos livros dos contos de fadas. Embora o velho não conseguisse entender o que houvera de fato, percebeu que o jovem mascate se viu perdidamente apaixonado pela sua filha madura, logo ela que ele já tinha perdido as esperanças de arranjar um casamento. Percebeu sinceridade nas palavras de Fenelon, assim, deu a sua bênção.

Naquela noite o jovem mascate pernoitou na fazenda, logo pela manhã após um café reforçado se despediu na família da moça e ao ser conduzido por ela até o estábulo – onde estavam a sua junta de jumentos – trocaram o tão sonhado beijo molhado que Zefinha esperara por toda a vida. Fenelon partiu prometendo voltar muito em breve para o casório.

Um mês depois lá estavam eles diante do altar da pequena igreja da comunidade matrimoniando-se diante de Deus e do Padre Anfilhófio. Foi uma festa lascada com fogos, sanfoneiro contratado, uma renca de presentes e uma indisfarçável fartura de comidas e bebidas. Diante de toda a alegria que rolava no ambiente, o casal doido para o momento esperado despediu-se dos presentes no auge da festa e correram para o quarto dos fundos onde realizaria o grande sonho de Zefinha. Assim que eles se trancaram, as irmãs, dona Francisquinha e mais algumas tias correram para ouvir por entre as paredes. Na época a luz que “alumiava” eram as candeias, na penumbra do quarto ouvia-se os gemidos sensuais de ambos, completamente pelados se acariciando, finalmente chegara à noite de núpcias de Zefinha. Entre um beijo e outro, foram arrancando as vestes, prometendo se amar eternamente e completamente despidos, na hora da concretização do ato perceberam que ambos eram donzelos. Riram do fato e entre carícias, mordiscadas e lambidas partiram para a tão sonhada empreitada!

O quarto fora feito especialmente para o evento, ficava um pouco distante da casa, mas, a curiosidade das irmãs acabou salvando a vida do menino Fenelon. Depois de quase meia hora de mãos deslizando pelos corpos nus, beijos e gemidos incontrolados, uma insaciável Zefinha, completamente descontrolada saltou sobre Fenelon e ao tentar introduzir de uma só vez o enrijecido membro do amado, assustou-se ao ouvir o barulho de algo se rasgando para em seguida vê-lo dar um berro aterrador e um salto tenebroso, espatifando-se cama abaixo.

– O que foi meu amor? Está passando mal, fale comigo, vá? Socorro, socorro… – Gritava Zefinha ao ver na penumbra o noivo rolando no chão se esvaindo em sangue, berrando mais que porco ao ser castrado. – Me acode, me acode, me acode! – Gritos masculinos e femininos! – Acode aqui gente, ele está morrendo, ele está morrendo… – Foi quando as irmãs que se escondiam atrás das paredes correram até o salão de festas e interromperam o samba, fazendo que mais da metade dos convidados estourasse a porta de madeira e deparasse com uma cena macabra:

Trajando o vestido de noiva todo sujo de sangue, a encruada moça chorava sobre o travesseiro enquanto o pobre do Fenelon rolava de dor no chão do quarto recém-cimentado, com a genitália em carne viva, cujo couro fora esfolado brutalmente até o pé da sua barriga. Sem muitas alternativas o jeito foi enrolá-lo às pressas em um velho cobertor e trazê-lo rapidamente para a farmácia de seu Rufino – a única que existia por aqui na época. – Ao ver o desespero do rapaz o farmacêutico utilizou a única alternativa que tinha, costurar o tecido rasgado sem anestesia.

Fenelon foi amarrado à força na maca e toda vez que o farmacêutico enfiava a agulha no seu membro, o infeliz agitava-se tanto que chegava a levantar a maca, faltava bater a cabeça no teto da farmácia. No terceiro ponto a dor foi tamanha que o mascate desmaiou. Que Fenelon sobreviveu não temos dúvidas, a dúvida ficou em saber se Zefinha (que morreu com quase 90 anos) foi ou não “desdonzelada”, segundo as más línguas, morreu sem conceber filhos e Fenelon nunca mais quis saber de praticar sexo, morreu donzelo.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Fevereiro de 2024.

Crescente de Verão chuvoso.