Então, É Natal!
Artigo Opinião

Então, É Natal!

Um dos compositores mais importantes da MPB hoje em dia (para a maioria absoluta da população) é um ilustre desconhecido. Poucos sabem quem foi o baiano de Santo Amaro (Não. Não é Caetano Veloso) e principal compositor de Carmem Miranda, que depois de uma bistunta se suicidou em 1958. Estamos falando de Assis Valente que sobreviveu no Rio de Janeiro dos anos 1950 vendendo as músicas que compunham. Assis fazia uma música por dia, este era o seu ganha-pão. O autor de “Camisa Listrada”, “Alegria”, “O Mundo Não Se Acabou” e “Brasil Pandeiro” – entre outras – também foi o autor de “Boas Festas” a música que desconstruiu completamente a história do natal feliz, cantada em prosas e versos aqui na antiga Terra de Vera Cruz. Enquanto todo mundo falava da “Noite Feliz e do Sino pequenino que tocava em Belém”, o compositor baiano nos dava um choque de realidade. Sim, cortava à própria carne para mostrar que mesmo na noite de natal, continuávamos sendo o Brasil da fome, da peste, da miséria, das pandemias e da surreal distribuição de renda onde poucos tem muito e muitos nada tem. Um Brasil hipócrita!

Anoiteceu, o sino gemeu e a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem a felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade, eu pensei que fosse uma brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu, ou então felicidade é brinquedo que não tem…

Aqui na nossa “aldeia”, nosso primeiro “contato imediato” com o Bom Velhinho se deu em meados da década de 1970. O prefeito Moisés Felix deu uma bistunta e resolveu distribuir uma renca de brinquedos para os carentes – não confundir com a história já contada do prefeito Jaimilton que quase foi linchado. Após encher um velho galpão de brinquedos, Moisés exigiu que a molecada comparecesse de banho tomado e de vestes limpas, entrando em uma interminável fila. Para a distribuição contratou alguns babões que ignoraram solenemente os necessitados. Começava aí a discriminação social. Os “baba-ovo” escolhiam criteriosamente quem receberia ou não os presentes enviados por São Nicolau. Muita gente ficou traumatizada com aquela discriminação, tanto que um antigo companheiro que participou desta experiencia, ao encontrar o Bom Velhinho já nos anos 1980 em uma galeria de Vitória da Conquista, foi acometido de uma repentina crise de infezação e teve que ser contido à força para parar de chutar (chorando) as canelas de um pobre ator que se passava por Papai Noel! Foi um fuzuê.
A partir de 1989 a distribuição destes brinquedos virou tradição por aqui. Todo 25 de dezembro o Prefeito do momento se transformava em Papai Noel e saía distribuindo brinquedos para a molecada. No ano de 1996, na gestão do então prefeito Amilton, devido a enorme quantia de verbas sequestradas, a administração vivia um colapso financeiro violento. Funcionários e fornecedores à beira de um ataque de nervos, credores desconfiados, prestadores de serviços agoniados e a distribuição de brinquedos comprometida. Eis que diante da pressão o Prefeito tira um coelho da cartola e consegue através de alguns amigos/comerciantes de Vitória da Conquista a aquisição gratuita de um lote de brinquedos para se distribuir por aqui. Para manter a austeridade, incumbiu o competentíssimo e então Secretário de Educação Joselito Rocha de preparar (a custo zero) a festa de Papai Noel em plena tarde de natal. Após queimar as pestanas o valoroso Secretário astuciou um plano para realizar um festejo bem modesto. Emprestou de um prefeito vizinho a tradicional roupa de São Nicolau e após receber os brinquedos doados, marcou o evento. O local escolhido seria a porta do Centro Recreativo do Espigão, ali mesmo, no chão. Mas, políticos, sabe-se como é. Logo apareceram alguns correligionários insistindo para que se fizesse um palanque, não importaria que tamanho tivesse! A ideia para quem ainda não entendeu era fazer o que todo político adora, ou seja, politicagem. Assim, Joselito conseguiu a custo zero uma modesta aparelhagem de som que satisfaria plenamente as necessidades do evento, o problema continuava sendo o palco. Assim que souberam que Papai Noel distribuiria os brinquedos no meio do povo a classe botou a boca no mundo: – Porque no meio do povo? Não! Autoridades precisam de palanque! – Assim, sugeriram construir – usando a mão de obra da prefeitura – um palco de madeira reutilizando as tábuas usadas nos andaimes das obras. Não carecia ser grande coisa, bastava acomodar algumas autoridades constituídas.
– Isso não vai dar certo! – Insistia Joselito Rocha contra a enorme divergência de opiniões. Não resistindo a pressão, o ilustríssimo Secretário autorizou a confecção do artefato com as tábuas recicladas, embora, ficasse ele incumbido de supervisionar pessoalmente a construção. Depois de algumas dezenas de marteladas atreladas à um barulho ensurdecedor de serrotes e lixas, eis que do nada surge alguma coisa parecida com um palanque. Uma demão de tinta aqui, outra ali e um bom pedaço de lona preta deixou o bicho mais ou menos parecido com um palco. Um olhar mais atento veria algo meio troncho, derreando para um lado, rangendo para o outro, uma quantidade enorme de tábuas furadas, emendadas, e remendadas com uma enorme variedade de tonalidades e espessuras. Experiente, o Secretário informou ao Prefeito/Papai Noel que só permitisse subir no palanque – além dele – o locutor oficial (no caso, Ivanaldo Martins) e a primeira dama. Com medo do bicho desabar pegaram alguns correligionários meios parrudos e fizeram até um teste drive que se consistia em fazê-los pular por todo o tablado, como o bicho aguentou o tranco, lá foram todos para a grande distribuição. No horário marcado, a área livre do Espigão ficou lotada de pais (e mães) visivelmente excitados com os seus respectivos filhos escanchados nas cinturas. O DJ tocando músicas natalinas, o locutor Ivanaldo parecendo até um narrador de corridas de cavalos e a molecada alucinada dando cangas, rolamentos, cambalhotas, saltos mortais… tirando completamente os pais da zona de conforto. Após a distribuição das senhas umas quatro ou cinco filas foram montadas. Chamado ao palco, Papai Noel (ao lado da primeira Dama) foi ovacionado. Quase cinco minutos de aplausos, depois convidaram ao palco a mãe que tinha a senha número um. Emocionada a senhora subiu com o seu filhinho escanchado. Ao receber o primeiro presente, o garoto deu um abraço apertado e meia dúzia de beijos na bochecha de Papai Noel – sendo obviamente, fotografado pelo retratista oficial da Prefeitura – recebeu os merecidos aplausos. Finalmente Papai Noel se reencontrava com as crianças carentes.
Tudo corria bem até o Presidente da Câmara resolver subir ao palanque! Subiu ao lado da sua digníssima! Como o palco aguentou, subiram logo uma renca de vereadores com suas respectivas esposas. Se os vereadores subiram, porque os Secretários ficariam de fora? Assim, para desespero do nobre Secretário (que sabia das limitações do “palanque”), subiram logo uns cinquenta correligionários e ficaram trocando cotoveladas para saírem na foto ao lado do “Bom Velhinho”. Guardas afobados, cabos-eleitorais desolados, puxa-sacos bobalhões, solteiras sem pretendentes, funcionários sorridentes, policiais de plantão, quase todo batalhão e os amigos dos amigos. Virou uma farra! Escabreado, Joselito (que de bobo não tinha nada) quem disse que quis subir no palco? Ali mesmo do chão soprou no ouvido do Prefeito/Papai Noel: – Prefeito. Não vai aguentar. Manda esta renca descer que este negócio vai cair. Eu supervisionei a construção. Não vai aguentar. Bote todo mundo no chão! – Bastou ouvir para o prefeito relutar: -Não posso, não! Sou lá algum louco de mandar esse povo descer? – Pois então se prepare que vai cair. Estou avisando. – Ao ouvir a conversa, a primeira dama deu logo um calundu e já chegou entrando de sola no secretário: – Que cair o que? Você está é ciumando da popularidade do meu marido! Não vai cair porquê Deus não quer! – Sem alternativas, Joselito deu os ombros e ficou só rezando para que a tragédia anunciada não se concretizasse. O Prefeito/Papai Noel até acreditava no seu secretário, porém, entre a decepção de efetuar a “ordem de despejo” ou apostar que o “palanquinho” aguentaria… Melhor apostar – rezando – na segunda opção. Afinal de contas não queria se indispor com ninguém, principalmente em época de natal. O tempo foi passando, pessoas subindo, pessoas descendo, as mães satisfeitas, a primeira dama sorrindo, os retratistas tirando suas fotografias (Sim. Era uma época que ainda se vivia de tirar chapas), os vereadores contentes, os presentes de natal nas mãos da meninada, o locutor Ivanaldo cheio de predicados louvando a capacidade de se reinventar do Prefeito/Papai Noel quando… subitamente se ouve um ranger característico de madeiras sendo quebradas… A coisa aconteceu exatamente no momento em que o Prefeito ergueu o cajado e acenou para a plateia.
– Hô, hô, hô… Feliz natal criançada! – Falou com a voz empostada. Mal terminou a frase e ouviu-se um barulho ensurdecedor. O palanque pendeu-se para um lado e quase em câmera lenta desabou espalhafatosamente levando à tiracolo Papai Noel, a primeira dama e aquela renca de políticos que se encontrava em cima.
O que se viu a seguir foi constrangedor: Uma espessa nuvem de poeira, gritos desesperados de dor, gente segurando as canelas arranhadas, outros entrelaçados entre madeiras e pregos, a barba postiça do Papai Noel na cabeça do Chefe de Gabinete, o gorro na cabeça do Presidente da Câmara, mulheres caídas sobre homens, homens caídos sobre as mulheres, gemidos, sussurros, palavrões e muita vaia (imagina só a alegria dos opositores só assistindo e secando)? Imediatamente a “tropa de choque” capitaneada pelo ilustríssimo Secretário de Educação se pôs a acudir as vítimas. Constrangido, porém, pra lá de escolado, o Papai Noel – que já tinha sido goleiro em tempos idos – foi o primeiro a se levantar. Juntou rapidamente os brinquedos espalhados pelo chão, jogou dentro do seu saco de seda vermelha e mesmo caxingando foi retirado às pressas da “cena do crime” pelos seguranças e pelo Chefe de Gabinete. Apesar do susto, ninguém se machucou gravemente devido à pequena altura do palco. Um arranhão aqui, um calombo ali, uma torção acolá, um pequeno sangramento, uma raladura, enfim… Entre mortos e feridos, salvaram-se todos!
Alguns correligionários ainda tentaram responsabilizar o pobre do Joselito pelo vexame, porém, não deu certo. Experiente, ele se defendeu apresentando uma farta documentação assinada pelo prefeito, provando que ele cumprira ordens direta do executivo e que, inclusive, havia desaconselhado o excesso de lotação do improvisado palanque. Aliás, era uma fase em que o prefeito andava tão azarado que mais uns dois palanques caíram com ele em cima. Um dos quais na cidade de Poções ao lado do excelentíssimo senhor Governador da Bahia e de sua renca de seguranças.
Só sei que depois desta, coincidência ou não, palanques para receber Papai Noel aqui na cidade passaram a ser construídos em ferro fundido e criteriosamente vistoriados! Como diz o ditado: Melhor prevenir que remediar!

FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e poeta
CSales, Bahia. Quadra de Dezembro. Nova de Verão 2022.