E O PALHAÇO, O QUE É?
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E O PALHAÇO, O QUE É?

– E o palhaço o que é? – Gritava ele do alto das pernas-de-pau andando todo desengonçado pelas ruas esburacadas de Nova Conquista. – Ladrão de mulher! – Respondia aquela renca de moleques, criteriosamente escolhidos pelo palhaço Banguelinha do Gran Circus de Espanha.

– Mas o palhaço só é? – Insistia ele, com a cara toda pintada, com a calça listada de mais de dois metros de comprimento, um pequeno colete de veludo, uma calvície forçada por uma touca de borracha, os dentes superiores pintados de preto para forçar uma “banguelice” que, sequer, existia, arrematando tudo com um nariz enorme de borracha.

– Ladrão de mulher! Respondia a molecada extremamente excitada.

– Hoje tem espetáculo! – Afirmava ele.

– Tem sim senhor! – Respondia a molecada.

– Às oito horas da noite!

– Tem sim senhor! – Ressoava o coro.

– E o palhaço o que é?

– ladrão de mulher!

– Eu vou ali e volto já… – Provocava o palhaço.

– Vou tirar maracujá! – Respondia a meninada batendo uma pedra na outra em um ritmo alucinante, provocando uma surreal harmonia.

– Seu Mané! – Gritava ainda Banguelinha.

– Qué, qué! – Soava o coro!

– Eu vi o sol eu via a lua…

– Olha o palhaço no meio da rua… – Respondia o coro improvisado das dez vozes. Só os astutos eram escolhidos para saírem pelas ruas acompanhando as imensas pernas-de-pau que o artista dominava com maestria. Assim, rodavam a cidade inteira. O palhaço se equilibrando nas enormes pernas de pau e a molecada atrás, com a testa pintada, fazendo barulho, batendo uma pedra na outra. À tardinha, todos retornavam ao circo e ficavam até a hora do espetáculo. Não podiam ir em casa tomar banho já que a mancha de dendê marcada na testa era o passaporte para a entrada gratuita. Se a marca apagasse o infeliz estaria perdido, ficaria fora do show.

Estamos na segunda metade dos anos 1970, Cândido Sales era um povoado com ares de cidade, duas das suas quatro ruas (Avenida Presidente Vargas) eram rasgadas de fora a fora pela (Rio-Bahia) BR-116 – único lugar onde se conseguiria ganhar o sustento nosso de cada dia. Além das margens da rodagem, os Bairros da Usina, Nova Conquista e a Rua Nova (que posteriormente se transformaria no Bairro da Lagoinha) começavam a nascer. Neste tempo os circos itinerantes (juntamente com os Parques de Diversão) eram os únicos entretenimento de nosso povo. Quando um ou outro circo dava por aqui era motivo de alegria. A enorme tenda era armada diante dos olhos estupefatos da população que testemunhavam in loco a perícia dos seus profissionais, desenrolando a lona em uma sincronia invejável, fincando os tornos com marretadas sincronizadas, entrelaçando as cordas em uma harmonia esfuziante, que em um passe de mágica as cordas coloridas impulsionavam para cima aquele mundão de lona em forma de pirâmide, deixando a pequena bandeira vermelha tremular ao vento no alto do mastro principal que era a sustentação da itinerante praça de diversão.

Os espetáculos eram sempre lotados – as tábuas que formavam os famosos galinheiros dobravam diante de tanto peso -, e a grande atração da noite era o mágico (quase sempre o dono do circo) que levitava a linda garota vestida com o seu collant sensual (objeto de desejo dos marmanjos), os contorcionistas e equilibristas se apresentavam em seguida, abrindo espaço para os trapezistas voadores que eram fabulosos. Lá de caju em caju, até aparecia algum circo com o “Globo da Morte”. As pessoas gelavam o sangue vendo aquele duelo de motocicletas dentro do globo, mas, qualquer circo que tinha uma lãzinha a mais, não “dava nem as horas” pra nós, passavam direto para Vitória da Conquista.

Uma época chegou por aqui um circo que foi armado aqui na Lagoinha. A atração principal eram os internacionais trapezistas voadores. Neste caso, voar não era apenas um jogo de palavras, os caboclos – que traziam entre eles duas donzelas lindíssimas – voavam (literalmente) de um lado ao outro do circo. Faziam tudo isto sem rede de proteção, tirando o fôlego da plateia. Este número era o que encerrava a apresentação. Neste justo período, deu por aqui voltando de uma longa jornada na cidade de Manaus, o famoso José Carlos Lima. Sempre inteligente e polêmico, fez logo uma prova pleiteando o cargo de eletricista na Coelba e passou com louvor. Logo estava trabalhando feito o diabo aqui e no interior do município. Eis que no último dia do circo na cidade, deram de anunciar uma premiação para quem topasse – pelo menos – subir no trapézio que tinha uma altura medonha e intimidava quem sofria de vertigem.

Durante o espetáculo o Mestre de Cerimônia (que nas horas vagas também era palhaço) ficou quase duas horas desafiando os corajosos e quem disse que aparecia algum? Zé Carlos (hoje com 80 anos de idade) sempre teve uma qualidade que falta à maioria dos normais: uma vocação indescritível para chamar a atenção e arranjar encrenca (o cara não toma termo). Certamente o Palhaço do circo imaginou que em Nova Conquista não tivesse ninguém com topete para subir em uma altura daquelas. O infeliz desconhecia completamente a fama de Zé Carlos Lima. Para quem não o conhece, ainda hoje (quando bebe umas e outras – mais umas do que outras) se torna o cara mais “atentado” do mundo. Imagine este homem com uns vinte e poucos anos? Pois é… Zé (o atentado) estava lá no dito dia, com os seus vinte e poucos anos, sentado calmamente, solvendo tranquilamente a sua cervejinha gelada nas “cadeiras acolchoadas” bem ao lado da rede de proteção. – Senhoras e senhores… – anunciou o Palhaço, cheio de marra! – Se tiver algum homem de coragem aí e que queira ganhar duzentos contos é só vir até aqui… Se conseguir olhar pra baixo sem desmaiar ganha mais cem, e se conseguir pelo menos se balançar no trapézio vai ganhar a bolada de 500 contos, quem vai encarar? – Quem era doido de encarar?

– Dou-lhe uma… – provocou o apresentador. – É, estou vendo que tá faltando homem de coragem nesta cidade… Dou-lhe duas… Quem se habilita?… – Quando o palhaço abriu a boca para o “dou-lhe três”, quem se levantou do jeito que tinha chegado do trabalho? Sujo, com as botas enlameadas, macacão surrado e o cabelo empapuçado de óleo (os amigos descobriram que à medida que ele ia bebendo, o cabelo ia ficando pastoso e se grudando na testa)? Ele. O famoso José Carlos Lima. Trôpego, correu até o microfone e já foi se apresentando:  – Meu nome é Zé Carlos, trabalho na Coelba e vou tomar o dinheiro destes trouxas!… – O circo faltou vir abaixo! Apupos, aplausos, risos… Surpreso, o palhaço/apresentador chegou a mudar de cor. Antes que falasse mais alguma coisa, lá estava o eletricista subindo pela escada do enorme mastro que dava acesso ao trapézio. Chegou, cumprimentou o trio de trapezistas (não sem dar meia dúzia de beijos nas belas garotas) e já foi pulando no trapézio, dando uma “cabriola” e ficando se balançando de pernas pra cima e cabeça pra baixo. O ímpeto do fanfarrão surpreendeu o palhaço que ficou todo constrangido. Aí começou o número.  O trio de trapezistas “voando alucinado” em volta de Zé, dando cambalhotas, pulos, rodopios e rasantes e ele imóvel, assistindo tudo de ponta cabeça. Os trapezistas passavam por cima, por baixo… gritavam…

– Solte o trapézio que a gente lhe pega! – Ao invés de soltar o trapézio, Zé ficava todo encolhido!  – Salte, moço. Tá com medo?  Vou lhe aparar, solte o trapézio e pule! – gritava um deles dando duas cambalhotas encarreadas no ar e, quando tentava se segurar em Zé, o eletricista, instintivamente recolhia os braços fazendo que o trapezista estatelasse lá de cima caindo na rede de proteção (ainda bem que tinham colocado neste dia!). Batia na rede, subia uns cinco metros, caia novamente e após uma aterrissagem perfeita, corria subindo as escada. Após duas ou três tentativas, o trapezista/palhaço escorregou e após cair desengonçado na rede, bateu a cara no chão que o nariz de borracha caiu lá no galinheiro. A plateia foi à loucura e o palhaço ficou puto! Visivelmente contrariado, o artista se levantou, mexeu todos os ossos do corpo para ver se estava tudo no lugar e com a cara amarrada, subiu espumando os cantos da boca.

Lá em cima, assim que a sua companheira lhe jogou o trapézio, o palhaço virou o capeta, deu algumas cambalhotas, meia dúzia de mortais, alguns rodopios e voou literalmente por cima e por baixo de Zé Carlos, que pendurado de cabaça para baixo, já nem sabia mais o que estava fazendo ali. Se no inicio ele deu umas duas ou três balançadas, agora estava completamente estático. Repentinamente percebeu que pelo fato de estar de ponta cabeça o efeito da cachaça havia passado e que ele estava em uma barca pra lá de furada. Nem era preciso ser muito inteligente para perceber que o palhaço que caíra estava doido para lhe dar o troco.

– Você vai me pagar! – Gritou puto da vida, passando a voar violentamente em direção à Zé que nesta altura dos acontecimentos queria mesmo era picar a mula dali. Aquela tensão toda no ar, o palhaço pra lá de furioso saltando em tudo que era direção e quando tentava agarrá-lo, Zé dava uma mexidinha e ele passava lotado. Furioso errou outro pulo e só não se estatelou novamente, porque foi seguro em pleno ar pelo outro trapezista. Depois de umas duas ou três tentativas frustradas de pegar Zé Carlos no ar, o artista solicitou o adjutório de uma das garotas que passou a empurrar com uma longa vara o trapézio onde Zé Carlos – mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta – estava pendurado de cabeça pra baixo.

– Vem cá, fila da puta! Seja homem! Solta este trapézio! – Quanto mais o palhaço xingava, mais Zé se agarrava, usando braços, pernas, unhas e até dentes para se segurar. Diante da insistência da garota em empurrá-lo para perto dos trapezistas, Zé já começava a temer pela própria vida. Aqueles caras iam jogá-lo lá de cima. Os companheiros davam o impulso, o palhaço saltava e quando parecia que ia conseguir Zé se esquivava fazendo o cara errar o pulo e cair diretamente na rede. Nesta altura a plateia urrava de prazer. Uivos, palmas, gritos e pela terceira vez seguida o palhaço estatelava cá em baixo. Furioso, o palhaço já pulou da rede gritando: – Vou lhe pegar e lhe derrubar daí fi de rapariga! – Falou e subiu correndo pelo lado oposto ao trapézio onde Zé era insistentemente empurrado. Com os olhos butucados, Zé Carlos esperou o artista subir, dar dois belos rodopios e vir desembestado em sua direção. Em pânico, soltou o trapézio e descambou no vazio antes de ser apanhado. Enquanto o Palhaço se enroscava no trapézio vazio, Zé caía pesadamente na rede. Bateu na proteção, subiu, bateu novamente, subiu e quando caiu novamente já foi saltando no chão e correndo para a sua cadeira, fazendo a plateia delirar de prazer! Foi o maior show da história! Furioso o palhaço/trapezista queria porque queria dar uns cascudos em Zé, que por sua vez insistia em receber a grana prometida pelo circo. Claro que ele não conseguiu receber, mas, com certeza, fez o nome naquela noite. Por via das dúvidas, a partir daquele dia sempre que chegavam um circo ou outro na cidade, ele assistia o espetáculo na parte mais alta do galinheiro, bem longe da rede de proteção. Afinal de contas, a experiência com o trapézio não lhe deixou nenhuma saudade!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e Escritor

Cândido Sales, Bahia. Quadra de Setembro de 2024. Lua nova de inverno.