Autor: Luiz Carlos Figueiredo
Nova Conquista, década de 1970, dia de feira. Aquele vai e vem danado de gente, aquela surreal gritaria, aquele barulhão e eis que surge correndo no meio da feira lotada, uma moça com as vestes rasgadas e completamente descabelada. Tropica, cai aqui, levanta ali, cai acolá e quando se sentia agarrada, sempre se desencilhava e continuava correndo fazendo um escândalo danado.
– Pare, Mariquinha. É mentira desse povo. Esta gente é tudo fofoqueira!
– Tão falando que Bom-Cabelo me tirou de casa! Vou me matar! – Gritava a moça se desvencilhando dos seus captores. Entre empurrões, gritos, apupos e desespero, a moça descambou correndo descabelada pela rodagem em direção ao rio da ponte. – Eu vou me matar agora, quero morrer! Antero não quer mais casar comigo… eu vou me matar! – Gritava à pleno pulmões, correndo desorientada em direção à ponte. – Ouça a sua pobre mãe, Mariquinha! Se você se matar vai dar um enorme desgosto pra ela. Volte aqui, pelo amor de Jesus Cristo, volte, não cometa esta loucura! – Gritava aquela renca de parentes tentando contê-la. Mariquinha era uma linda nova-conquistense que se enamorara e noivara com o caixeiro-viajante Antero Peixoto. Após ajeitar todo o enxoval, alugar e mobiliar a casa, uma semana antes do casório, ao chegar de viagem recebeu a notícia/bomba que o mel que existia na “lua” da sua linda noiva tinha se evaporado diante da tara inigualável do malandro Jaconias Bom-Cabelo, um inveterado “desdonzelador” da cidade. Acostumado a não levar desaforo para casa, assim que o caixeiro-viajante soube do sucedido entrou em uma violenta crise de infezação quebrando todos os móveis recém-adquiridos da sua futura casa, rompendo unilateralmente o noivado. Este gesto levou a pobre garota a um desespero tão medonho que achou que a única solução para o seu caso fosse o suicídio, assim, entre berros e gritos, se desembestou em direção ao Rio Pardo tentando dar cabo da própria vida. Nesta época, este rio era um mundão de água. Vira e mexe lá estava ele afogando um ou outro desavisado, priorizando, obviamente, os conquistenses, já que – rezava a lenda – não sabiam nadar (se dizia por aqui) por não existir rio naquela localidade. Neste dia, assim que Mariquinha começou a dar o seu show particular, se descabelando aos gritos no meio da rua, metade da cidade a seguiu correndo pelas duas partes do “corte” – que dá acesso ao rio da ponte – torcendo descaradamente para testemunhar uma tragédia. Depois de se desvencilhar várias vezes dos que queriam detê-la, a moça chegou à ponte, subiu na grade, olhou com desprezo para a família e após fazer o sinal da cruz, tapou o nariz e se preparou para o pulo…
O ilustre cantador Elomar Figueira fala que as três coisas mais faladas no fim de feira são “cachaça, fumo e fiado” … Nos bares da vida, a coisa é mais ou menos por aí, embora, a prioridade ainda seja futebol, mulher e cachaça, não necessariamente nesta ordem! Mariquinha era mais uma vítima das fofocas das mesas de bar… Naquele pequeno e singular universo, comédia e tragédia se fundiam de forma natural. Este era o tempo em que os “pinguços” julgavam e condenavam qualquer infeliz sem direito à defesa prévia. Tudo isso em nome da tal da paixão que é uma coisa pra lá de subjetiva. É tão subjetiva que cada um tem a sua.
Existem vários tipos de paixão… A DEVASTADORA é aquela que faz o caboclo deixar de tomar banho, trocar de roupas, comer, dormir, e até deixar a barba crescer… em casos mais extremos, o pobre coitado vira andarilho e sai pelo mundo com um saco cheio de quinquilharia na cabeça… A MORREDEIRA é aquela que faz o sujeito querer pular do 5º andar ou se jogar na frente de uma carreta desembestada. A ABILOLADA é aquela que faz o cara dá um “cacorê”, se armar de um porrete e sair quebrando tudo o que via pela frente, incluindo-se aí os móveis da casa que ele próprio comprou no carnê e que ainda estava pagando as prestações! A SOFRIDA é aquela que faz o caboclo chorar feito um condenado no ombro do melhor amigo diante de todo mundo, sem nenhum constrangimento. Um amigo meu, por exemplo, certa feita sentou-se na mesa e após tomar umas duas ou três talagadas de vinho, falou para quem quisesse ouvir: – Aquela safada me chifrou. O corno é realmente o último a saber. Todo mundo na cidade sabia e ninguém tinha coragem de me contar. Eu era corneado por João Boca Rica, Onofre de Antonieta e Marcos Zarolho. Se eu perco pra estes caras eu vou ganhar de quem? – Perguntava entornando o litro de Dom Bosco. Lá pras tantas um amigo querendo hipotecar solidariedade ao traído deu de falar: – Se fosse só estes tava até bom, o pior que ela lhe traiu até com Julinho Perninha! – O que, com aquele perneta? – Ao ouvir a revelação o traído butucou os “zóios” abraçou-se com o amigo e abriu a boca chorando! – Aahhhh Meu Jesus Cristinho! Julinho Perninha eu não aguento! Eu vou me suicidar…. Aaaaahhhh! – Chorou copiosamente no ombro do fofoqueiro.
Agora a pior mesmo é a AVASSALADORA, aquela que consome as entranhas do pobre coitado e aos poucos vai deixando o cabra mais arrasado que plantação de algodão depois de uma nuvem de gafanhotos! O caboclo perde a vontade de viver! Vai se degringolando até entrar em depressão. Pois é, a tal da paixão não é brinquedo não! Tenho um amigo fabuloso, cujo único defeito é a paixonite rasa! Agora não, que ele – felizmente – “aquietou o facho”, mas, alguns anos atrás, praticamente toda semana ele se apaixonava por uma mulher diferente. Chegava de fininho, mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta e já ia perguntando: – Posso te contar um segredo? Estou morto de paixão por Tonha de Filomena. Acho que vou me casar com ela! – Como os seus relacionamentos duravam pouco, vira e mexe, tínhamos que estar consolando o camarada ali mesmo na mesa. Só deixou de se apaixonar quando teve uma crise de choro no meio da praça da Lagoinha após testemunhar a sua grande “paixão semanal” se pendurar nos beiços de um ex-vereador. Depois deste dia tomou vergonha na cara e nunca mais quis se apaixonar de novo.
Agora, a pior coisa que existe é se apaixonar de forma unilateral, ou seja, só o apaixonado sabe da paixão, a outra parte, sequer, sabe da sua existência. Conheci um moço que “arriou os quatro pneus” para os lados de uma galega dona de um boteco. Não que a galega fosse assim, um mulherão, mas, sabe-se como é, “em tempo de guerra (profetizava o cantor Rosemberg quando “medicado”) pernas de barata vira serrote” O carinha da história, todo santo dia saía para ganhar o “pão-nosso-de-cada-dia” fazendo propagandas em uma moto. Depois dos afazeres diários, parava no boteco da galega e tomava seu trivial dois dedos de canjebrina. Bebia bem lentamente apenas para ficar admirando a derriére da moça. Um dedo de prosa aqui, uma sorrateira pegada de mão ali, um sorriso caprichado, um suspiro ajustado, uma cruzadinha de pernas e ele saía do barzinho mais feliz que pinto no lixo. Muitas vezes quando ele pagava a conta e se preparava para sair a diaba da galega se sentava mal agasalhada no balcão e munida da sua indefectível minissainha, abria inadvertidamente as pernas e o caboclinho voltava com tudo para dentro do bar gastando o resto da mixaria que ainda tinha no bolso. Um belo dia, ao chegar para tomar a sua “costumeira”, trombou com uma meia dúzia de boizinhos embriagados, com os seus carrões envenenados. Ao perceber os olhos pidões da galega pra cima dos “pleibóis”, o infeliz ardeu nas traiçoeiras chamas do ciúme, tomando só de pirraça um litro inteirinho de pinga. Resultado: pagou a conta, saiu cambaleando e ao montar na sua moto alugada, acelerou mais que devia e colidiu com o primeiro poste que achou pelo caminho. Foi pedaços de moto para um lado, fragmentos de som para o outro e o infeliz ficou com a cabeça toda mochilada, com um galo deste tamanho no meio da testa. Conduzido às pressas para o hospital local, ficou uma semana internado. Ao receber alta, saiu à francesa e nunca mais voltou ao bar.
Ah, sim. Voltemos agora à história de Mariquinha que foi perseguida por toda a família até o rio da ponte. Assim que subiu na grade, a infeliz olhou com desdém para seus perseguidores e após fazer o sinal da cruz gritou:
– Se afastem! Vou morrer pra eu mostrar pra este povo linguarudo que ainda sou virgem! Ninguém me tirou de casa não! Vou me matar e ninguém entra no meio!
– Não, minha filha! A gente acredita em você, não se mate não! Pense na sua família! – Implorou a mãe à distância.
– “Paín” preferiu acreditar na língua dos fofoqueiros! Vou me matar sim! – Ameaçou se jogar e a mãe gritou se ajoelhando no asfalto! – Não faça isso não, minha filha! Se você morrer eu morro também! Se você pular eu pulo atrás…
– Não tenho mais motivos pra viver! Falem pra Antero que eu o amo e que ele vai levar esta culpa pelo resto da vida, nunca vai ter paz por ter acusado uma donzela inocente de traição. Adeus mundo cruel!
– Não! Pelo amor de Deus não faça isso! – Gritava o pai também se ajoelhando no asfalto. Nesta altura já havia uma fila quilométrica de carros parados em ambos os sentidos só esperando o desfecho daquela tragédia. – Minha filha… – implorou o pai – eu acredito em você. Lhe prometo que vou falar com seu noivo pra ele vai voltar atrás e se casar com você! Dê uma chance pra gente, dê!
– Antero é orgulhoso, pai… nunca vai dar o braço a torcer!
– Ele vai sim, Mariquinha. Eu falo pra ele que o que eu contei pra ele era tudo mentira. – Revelou um dos vizinhos que testemunhava diariamente o rala e rola da noiva com o topetudo do Bom-Cabelo bem no quintal da sua casa! – Zezim, fí de uma égua, então foi você que fofocou? Ah, meu Deus! – Gritou, tampou o nariz e se jogou de uma altura medonha dentro das águas pardas do rio. Afundou, subiu, afundou novamente e desceu correnteza abaixo… Aquele desespero todo em cima da ponte, a mãe desmaiando, o pai garguelando Zezim, os motoristas apartando a briga e o Rio Pardo urrando valente naquele turbilhão de água. Aquela tristeza toda, todo mundo com cara de luto e eis que um garotinho quebra o silêncio apontando para o meio do rio. – Olá, olá ela! Olá! – Diante do turbilhão de água, após afundar e subir várias vezes, a garota se agarrou em um tronco que descia correnteza abaixo e após descansar um pouco sobre o tronco que descia, nadou tranquilamente contra a correnteza até chegar às margens do rio, sentando-se calmamente no lajedo enquanto os presentes se atropelavam descendo desembestado em direção à garota. A mãe foi a primeira a chegar, se abraçando desesperadamente à filha. – Oh, Mariquinha! Graças a Deus, você está viva! Que susto você nos deu, filha? Não faça mais isso, ouviu? – Falou acariciando a garota que olhou para os presentes com toda a calma que podia, falando com a cara mais safada do mundo…
– SÓ NÃO MORRI PORQUE DEUS NÃO QUIS!
No dia seguinte bem cedinho, lá estava o casal entrando na igreja, Antero Peixoto de terno e gravata e Mariquinha de véu e grinalda casando-se diante dos olhos de Deus e da língua dos homens. Viveram felizes para sempre, embora, por coincidência, sempre que o caixeiro-viajante saía em busca do sustento da sua família, notava-se um sorrateiro Jaconias Bom-Cabelo rondando a casa.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e poeta
CSales, Bahia. Quadra de Outubro de 2022. Lua Cheia de Primavera.