AMOR, AMAR…
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AMOR, AMAR…

Na década de 1940 a Fazenda Bela Vista era a terra mais produtiva da nossa região, pertencia ao famoso coronel Onofre Gomes Pereira, era tão grande que se perdia de vista e mais conhecida que o recém-criado Povoado do Porto da Santa Cruz. Obrigatoriamente, era o local onde se arranchavam os tropeiros, boiadeiros, caixeiros-viajantes, baderneiros e até jagunços, alguns já com algum “trabalho” decretado, vinham apenas para “despachar” alguma alma indesejável para o outro mundo. Nos arredores da enorme fazenda existiam várias moradas com ranchos pequenos e suas plantações diversificadas, era o embrião do Porto de Santa Cruz tomando forma com o seu pequeno comércio, suas duas ruas e aquela renca  de vendas comercializando tudo quanto há, desde canjebrina, até tecidos finos, entrelaçados às carnes de animais silvestres recém-abatidos, como caetitu, tatu, cotia, veados, peixes e saruês. Vendiam-se também bolachas, balas-doces, espoletas, chumbos, anzóis, tintois, panelas e até penicos. A grande atração do povoado era o cabaré da nortista Joana Pintada, uma garota esperta e sorridente, com traços indígenas que importava jovens amantes de todo o Brasil, fazendo a alegria dos homens e o desprazer das senhoras casadas da região. Todo sábado o samba-de-roda era garantido através da eletrizante concertina de Joca Morotó, um músico obeso que tinha como diversão tocar a sua diminuta pé-de-bode – que desaparecia completamente diante da sua enorme pança.  Morotó tocava a noite  “inteirinhazinha” fazendo que as “moças-de-vida-fácil” se requebrassem sensualmente nos braços (e nas pernas) dos viajantes, que não por acaso, desaguavam neste torrão.

Neste tempo o coronel Onofre, representante político da região, despachara o filho Albertim de apenas 17 anos para se tornar um doutor advogado em São Salvador. Faltando um ano para ser diplomado,  o moço resolveu voltar com pompas ao povoado e foi recebido com uma festa apoteótica. O empolgado coronel mandou abater 15 cabeças de gado, mais de 20 barrões, uma renca de capões e trouxe um carro-de-boi entupido até os beiços de corotes de destilados, escancarando as portas da sua fazenda para Deus e o mundo,  soltando centenas de fogos de artifícios.

Durante a festa os olhos do garoto se cruzaram com os da jovem Marieta, filha de Mané Zacarias e de dona Raimunda e se apaixonaram à primeira vista. Marieta era extremamente linda, direita, comunicativa, tinham os cabelos longos e anelados, e era uma morena de lábios carnudos e de rara educação. Apesar da beleza e da decência da garota, o velho Onofre não aceitou o namoro e exigiu que o filho se separasse imediatamente. Queria que o filho se matrimoniasse com uma garota de posses, oriunda de São Salvador, não queria de jeito maneira, Albertim se casando com qualquer “pé-rapado” que encontrasse pela frente.

– Mas pai, estou apaixonado por Marieta, assim que nos vimos nos apaixonamos na hora, ela é o amor da minha vida, preciso tê-la ao meu lado pelo resto da vida. O senhor não entende isso?

– Ela não serve pra você. Arranje uma esposa fina, estudada e rica. Gente rica não se mistura com gente pobre, entendeu? Você é um doutor e precisa agir como um. Está decidido e pronto. Deixa esta menina no canto dela.

Diante da insistência do garoto, o velho coronel resolveu fazer uma visita surpresa à casa de Mané Zacarias, exigindo que o namoro acabasse naquele mesmo dia. Apesar de todo chororô, Zacarias mesmo com o coração partido, viu-se obrigado a acatar as ordens do revoltado coronel. Marieta, em desespero, secou as lágrimas de tanto chorar. De nada adiantou. Albertim foi conduzido quase que a força no dia seguinte para concluir seus estudos na capital, deixando o coração da pobre moça completamente dilacerado.

Um ano depois, eis o agora Doutor Albertim retornando ao povoado. Entre luxúria e cachaça, Albertim ficou sabendo no Bordel de Ana Pintada que Marieta continuava donzela e intacta. Dissera que se não fosse dele, não seria de mais ninguém. Bêbado igual um gambá, resolveu fazer na calada da noite uma visita surpresa para a sua antiga paixão. Após saltar com muita dificuldade o imenso muro da casa de Mané Zacarias, adentrou o quarto de Marieta, acordando subitamente a garota. Ao se verem, entregaram-se sofregamente um ao outro como se nada mais importasse para eles. Antes mesmo de atingirem o êxtase foram flagrados por Mané Zacarias, que tomado por um rompante, enxotou o pobre rapaz para fora de casa na base do cascudo, tendo o cuidado de jogar as suas vestes no meio da rua. Após aplicar uma surra apoteótica na garota, o velho Zacarias teve que suportar os gritos alucinados do doutor advogado, esmurrando desesperadamente a sua porta, chamando a atenção de toda a região. – Seu covarde, não bata nela não! A culpa é minha, está com raiva, vem bater em mim. Não adianta, nem você e nem o meu pai vão nos separar.  A gente se ama e ninguém vai botar gosto ruim em nosso amor! Eu amo Marieta, ouviu, Mané Zacaria? Eu amo sua filha e vou me casar com ela de qualquer maneira. –  O escândalo foi tão grande que não faltou quem corressem até a fazenda do coronel Onofre, acordando o velho e relatando o sucedido com generosas doses de exagero. Alucinado, espumando os cantos da boca e vestindo apenas uma velha ceroula florida rasgada nas nádegas, o coronel desembestou morro abaixo e ao deparar com o seu filho pra lá de embriagado, apenas de cueca, chorando na porta da casa da garota, perdeu completamente as estribeiras e lhe aplicou uma surra violenta de currião – emprestado às pressas de um dos seus quebra-facas. Bateu tanto que o jovem se mijou todinho na frente de toda a população. Não teve força nem pra se levantar, tendo que ser amparado por dois capangas do coronel e forçado a tomar um banho nas águas frias do Rio Pardo, para que em seguida fosse despachado quase que desfalecido para a cidade de São Salvador. Pra quem acha que o que está ruim não pode piorar, três meses depois, Mané Zacaria constatou com os olhos que a terra haveria de comer que sua Marieta estava prenha do filho do coronel. Sentou-se com o velho Onofre e ao relatar o sucedido recebeu uma quantia significante em dinheiro, levando de quebra algumas garrafadas feita às pressas pelo velho Clarindo Raizeiro. Apesar de todo mundo ficar sabendo, a garota foi forçada a tomar os remédios  e abortou imediatamente a criança do jovem advogado. Desesperada a moça entrou em um profunda depressão, chamando a atenção por se tornar uma moça sem alma e sem alegria. Assim que soube do fato, através das maus traçadas linhas enviadas por sua mãe Clarinda, o jovem advogado perdeu completamente a razão e tirou a própria vida se enforcando no quarto da pensão em que morava, na cidade de São Salvador. Seu corpo foi encontrado pendurado, dois dias após o sucedido. A morte do jovem foi um choque para todos do vilarejo. Dona Clarinda (a mãe) também não suportou a perda e faleceu de morte morrida dois meses depois. Diante das perdas, o coronel Onofre se transformou em um homem rude e violento, humilhando e agredindo quem lhe dirigia a palavra. Morreria tempos depois na miséria! Marieta se transformara em uma demente, perdendo completamente a vontade de viver. Ficava o tempo todo no batente da janela com o olhar perdido no horizonte, fazendo que a culpa consumisse completamente o seu pai, Mané Zacarias.

Neste tempo existia por aqui um remediado carreiro chamado Valentin. Este moço tinha uma pequena olaria, produzia telhas e tijolos que era conduzidos diariamente pela sua junta de bois. Valentin era famoso pela sovinice e após saber do sucedido com a garota fez um acordo com Mané Zacarias para se casar com a filha tristonha. O casamento abafaria o escândalo e traria um pouco de paz para o fazendeiro, claro que em contrapartida, ele aceitaria de bom grado o dote da garota depressiva. Como tinha pegado um bom dinheiro do coronel Onofre, Mané Zacarias não se furtou de pagar o dote para o velho carreiro, exigindo que o moço apenas lhe desse uma vida confortável e cuidasse da sua enfermidade. O casamento foi realizado sem muito alarde e logo, lá estava Marieta morando ao lado do marido sem balbuciar uma palavra, sequer. Em poucos anos o avarento conseguiu ficar “podre” de rico, duplicando o dote recebido. O tempo o transformou em um velho sovina e mal-humorado, cujo passatempo, era sair enterrando seus bens pelos quatros cantos da fazenda. Ouro, prata, moedas, colar, anéis, pulseiras, talheres, tudo que tivesse algum valor era selecionado e criteriosamente enterrado. Em pouco tempo se transformou em um velho corcunda e seboso. Logo cedo pulava da sua cama, depositava cuidadosamente esses bens em uma botija de barro para em seguida sair enterrando em lugares estratégicos, escondidos da esposa. Velho e flácido, o ancião se negava até a tomar banho, andando sempre sujo e maltrapilho. Em pouco tempo se transformou em um miserável, dividindo com a esposa uma “bolacha mata-fome”  no café da manhã. Seu almoço era um ovo colhido no galinheiro. O velho era tão paciente que adotou uma galinha de estimação entre as centenas que possuía e ficava horas esperando esta galinha pôr um ovo, quando – por um motivo ou outro – isto não acontecia, ele ficava sem almoçar. Quando bem sucedido, tinha o inenarrável prazer de assar o ovo em um borralho – aquela cinza emanada do fogão de lenha -, dividia criteriosamente o alimento em duas partes e após misturá-lo à farinha e a pimenta colhida no seu próprio quintal, solvia gulosamente a parte que lhe cabia. As más línguas insistiam em dizer que apesar dos 20 anos de casados, o casal jamais praticara sexo. A jovem e linda Marieta se transformou em uma velha horrível, corcunda, sovina, desleixada e avarenta, andando sempre com um velho xale sobre os ombros cobrindo um velho vestido preto e rasgado, parecia uma moribunda. Ninguém entendia como aquela garota chegara a um estado daquele. Os dentes cariados, um bafo medonho e uma grande verruga na testa lhe dando a aparência de uma das velhas bruxas dos livros de história. O fedor dos corpos sem asseios atravessavam os limites da sua propriedade, incomodando, inclusive, os viajantes que passavam na estrada real, localizada há alguns metros da casa.

Eis que um dia em uma tarde chuvosa e cinzenta, os moradores do povoado foram surpreendidos pela notícia da morte súbita e desconhecida do velho casal que amanheceu endurecido no chão da velha e enorme casa que servia de morada para eles. A dupla foi encontrada após um desconcertante ajuntamento de urubus no telhado da residência. Desconfiados, alguns confinantes arrombaram a porta e deram de cara com o sucedido. Desconfiam-se que ambos se envenenaram. A falta de recursos da época impossibilitou uma investigação mais criteriosa, que pudesse esclarecer os fatos.

A partir da morte do casal, por anos a fio, quem se atrevesse a passar em frente ao imenso casarão do velho avarento tarde da noite, podia topar com um andarilho errante, acompanhado de uma trinca de porcos, cavando a torto e a direito o quintal do casarão, procurando o seu tesouro enterrado e assustando violentamente os desavisados viajantes. Esta visagem ficou anos no inconsciente dos moradores da região.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales – Bahia. Quadras de Junho. Minguante de 2023.