“A FILHA PRÓDIGA”
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“A FILHA PRÓDIGA”

Entre 1950 à meados de 1980, a nossa região importava inconscientemente os nossos filhos para – literalmente – fazerem vida na cidade de São Paulo. Tinha gente que aumentava até a idade dos filhos para irem trabalhar no roçadão. Um filho trabalhando em São Paulo era garantia de prosperidade. O dinheiro que chegava mensalmente mudava completamente a vida de uma família.  Foi isso que aconteceu com a jovem Julieta, que partiu para São Paulo com 15 anos de idade, assumindo a responsabilidade de sustentar sua família. O velho Macário, seu pai, sempre fora um fervoroso evangélico que fazia parte da Congregação Batista. Nunca foi chegado ao trabalho.

Em 1961 o vilarejo de Nova Conquista tinha três igrejas. A matriz, fundada por Zé do Sindicato e João Dengoso, pai do contador Wilson Ferraz, a Adventista, liderada pelo farmacêutico “Oswaldo da Farmácia”, e a Batista. Toda semana o povoado era tomado por dezenas de evangélicos vestidos com as suas túnicas negras, oriundos da primeira e segunda Igreja Batista de Vitória da Conquista, conduzindo grandes estandartes, megafones, bandeiras, brasões, distribuindo gratuitamente livros, revistas, panfletos, etc… Era comum acordarmos ao som de trombetas com grandes cultos sendo realizados na praça da feira, com os crentes entoando hinos:  – “(…) Foi na cruz, foi na cruz onde um dia eu vi meus pecados castigados em Jesus (…)” – Muitas pessoas importantes do povoado se converteram a essas religiões, entre as quais a famosa esposa do Coronel Cândido Sales, a senhora Melânia da Silva, que doou uma imensa faixa de terra para a construção de um templo bem no coração do povoado.

Na época, os evangélicos travavam guerras apoteóticas para aumentarem seus “rebanhos”, os Adventistas, por exemplo, tomavam de assalto a feira livre, tocaiavam os irmãos para evitarem que eles comprassem carne de porco. O indivíduo chegava de fininho, com as mãos nos bolsos do paletó e mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta, solicitava um quilo de suíno, e quando ia saindo os crentes (armados de suas bíblias) apareciam na frente: – Hummm… Lhe pegamos, cabra safado! Comprando carne de porco escondido, né? Não coma esta porcaria, não. Devolve agora! Porco é coisa do Tinhoso! Quem come porco vai direto pro inferno!

– Irmãos, o açougueiro garante que este porco é limpinho, ele dava banho nos bichinhos todo dia! – argumentava o infeliz, doido para comer um torresminho!

– Que limpo o que? O nome já diz… Porco é porco! Devolva agora mesmo. Nós não comemos esta porcaria. – Diante da pressão o pobre coitado devolvia na hora. O açougueiro ficava puto da vida! Tanto que depois de um tempo se organizaram e armados de faca e facão, começaram a enfrentar os crentes. Esta “guerra santa” por pouco não vitimou os habitantes.

– Sai daqui capeta dos “zinfernos”! “Ocêis” são crentes do capeta! Vão se lascar lá na beira do corte, deixa nós vender nossas carnes, lote de vagabundos!

– Era faca, peixeira e facão contra as bíblias! Entre mortos e feridos, sobreviveram todos!

Esta dificuldade financeira fez que a linda Julieta fosse enviada quase que a força para São Paulo para melhorar a vida da família. Novíssima, seios por nascer, braços e pernas finíssimos, a moça chamava a atenção pelos olhos azuis da cor do mar e pelos cabelos longos, negros e sedosos. Como tinha uma tia na Pauliceia, os pais conseguiram emprestar o dinheiro da passagem, encheu uma lata de farofa de frango frito e empurrou a pobre à força para o “roçadão” na Viação Vera Cruz. Julieta ficou três anos na Pauliceia. Mandava religiosamente as suas “cartas recheadas” para a família. A partir do terceiro mês, a contribuição fez que os “Macário” se tornassem a família mais importante da congregação. Em pouco tempo construiu e mobiliou um casarão. As generosas doações à igreja causavam inveja. Tanto dinheiro despertou a curiosidade dos invejosos que passaram a fuçar o que realmente fazia Julieta na capital paulista. Um dia, em pleno culto, o pastor ao agradecer a generosidade de Macário foi confrontado por um gaiato: – Senhor, agradecemos de coração a doação generosa dos Macários. Que Deus dê uma vida longa para a pequena Julieta, labutando de sol a sol naquela selva de pedra…  Peço ao irmão Macário e à irmã Maria para ficarem de pé para serem ovacionados…– Assim que o casal se levantou, um gaiato gritou em meio ao povo:

– Ela está é rodando a bolsinha na Praça da Sé… – Constrangimento total, e o velho Macário saiu completamente do prumo e soltou os cachorros:

– Julieta trabalha em uma das maiores fábricas que tem em São Paulo! É por isto que ela pode sustentar esta igrejinha de merda, cheia de “pé-rapado “da sua laia”! – Diante da reação, o gaiato abaixou-se por entre o povo, e “deu nas canelas”. Macário estufou a imensa barriga, abraçou dona Maria e saiu furioso da igreja…

Passa-se um tempo e em um belo dia eis que um carrão adentra o vilarejo, trazendo na boleia ao lado do motorista uma linda morena de lábios carnudos, batom vermelho, olhos azuis, cabelos escovados e de beleza estonteante. Ao ver alguns engraxates na beira da Rio-Bahia, a garota pôs delicadamente a cabeça pra fora da janela e perguntou:

– Nova Conquista é aqui, meninos?

– Claro, dona. É sim senhora! Foi aqui que o Judas perdeu as botas!

– Vocês não mudam nunca? – Riu a morena, mostrando os lindos dentes.

– Dou duzentos Cruzeiros para quem me mostrar a casa de Macário…

– Macário crente, um gordão? Eu levo “ocê” lá! – gritou o mais astuto, pulando no estribo e se segurando no retrovisor do caminhão-baú. O carro subiu uma ladeirinha, desceu outra e logo estava parado na porta da melhor casa da rua. Duas buzinadas e lá estava dona Maria saindo à porta e se deparando com a sua querida filha!

– Julieta! Meu Deus do céu! Corre aqui, Macário, sua filha chegou, homem! – Macário saiu correndo, nu da cintura para cima, se abraçou a filha, foram chegando os irmãos e dezenas de curiosos, inclusive de outras ruas. Foram mais de duas horas descarregando o baú: Ferro de engomar, mesa fornida, cadeira redonda, cômoda espelhada, espelhos reluzentes, pratos decorados, talheres importados, retratos emoldurados, sofás de veludo colorido, tapete antiderrapante, bule com chaleira, batedeira de ovos, tudo quanto há… Depois do carro descarregado, Julieta deu uma boa gorjeta para o motorista, deu o dobro do prometido para o garoto e logo a residência se encheu de gente. Amigos, “inimigos”, curiosos, irmãos de igreja, invejosos, parentes próximos, parentes distantes… Dona Maria (e Macário) enchendo a filha de mimos, eis que chega o pastor da sua igreja. Constrangida, Dona Maria pediu para a filha vestir algo mais decente, já que ela, desde que chegara vestia aquelas roupas curtas e indecorosas. Contrariada, Julieta obedeceu. Botou uma saia um pouco mais comprida, uma blusa de mangas e sentou-se extremamente à vontade no sofá recém-adquirido para papear com o pastor. Conversa vai, conversa vem e o pastor, morrendo de curiosidade deu de tocar na “ferida”:

– Querida Julieta, rezamos muito por você. O que faz pela nossa congregação é elogiável. Imagino você batalhando diariamente naquela fábrica, levantando cedo, pegando ônibus, apenas para sustentar sua família…

– Fábrica?!! – indagou a garota, ficando repentinamente séria.

– Sim. Você não trabalha em uma fábrica? – insistiu o pastor!

– Eu?!! – De repente, como possuída, Julieta solta uma gargalhada estridente constrangendo completamente o pastor e, por tabela, os seus pais!

– Ué, querida, você trabalha em quê? – Perguntou Macário.

– O senhor acha que se eu trabalhasse como operária eu teria condições de lhes dar este luxo? – A mãe, pressentindo o problema, foi saindo à francesa, o pastor tentou mudar o rumo da prosa e do alto da sua arrogância, Macário quis esclarecer as coisas… – “Intonce”, se você não é operária, “ocê” é o quê?

– Eu?!! O senhor não desconfia não pai? Você acha que eu faço o que pra sustentar vocês? Eu sou Meretriz, pai! Garota de programa, puta, quenga, prostituta! Lá em Sampa eu vendo a única coisa que possuo… meu corpo…

O pastor correu pra cozinha e, tomado por um ímpeto incontrolável, Macário, vermelho igual um peru, partiu violentamente para cima da filha lhe aplicando uma renca de safanões, ignorando completamente os que estavam na residência…

– Vagabunda! Eu lhe “induquei” pra isto, sua safada? Você vai voltar pra São Paulo agora. Desapareça daqui! Saia da minha casa agora! – pegou a garota pelos cabelos e a jogou no meio da rua, correu até o quarto e jogou todas as malas e sacolas que a filha trouxera. – Suma da minha frente e leve suas coisas… Pecadora, fuleira, indecente! – De repente, jogou no meio da rua uma enorme mochila de lona… – Suma daqui sua vagabunda! Não lhe considero mais minha filha! Vá embora daqui, agora! –  Ao cair, a mochila se abriu, revelando milhares de cédulas de mil cruzeiros… Julieta, toda descabelada, pega o dinheiro esparramado e coloca dentro da mochila, fazendo os olhos do pastor e do velho quase saltarem pálpebras afora… Quando ia saindo, Macário gritou:

– Julieta, você disse que trabalha em que?

– Meretriz, pai! Sua filha é uma Meretriz! – falou, furiosa, já saindo…

– Espere filha! Espere! Por favor, espere! – gritou Macário, já com outra entonação de voz! – Eu entendi tudo errado! Você falou meretriz?

– Sim… – confirmou a garota. – Eu vendo o meu corpo para lhe sustentar, seu escroto. Você, esta igreja de merda, mainha e meus irmãos, entendeu?

– Ah, bom! – falou o velho, mais calmo que um monge. – Eu pensei que você tivesse dito… Atriz! Atriz são aquelas mulheres que ficam beijando descaradamente na televisão, né? Classe imoral! É uma laia de gente descarada que, sequer, acredita em Deus, né?! Pode Voltar filha, seja bem-vinda à sua casa! Desculpe o seu velho pai, foi tudo um mal-entendido! Entra, vá! Maria, receba nossa filha! – Correu, abraçou-se à filha diante da rua cheia de curiosos, dizendo em alto e bom som para quem quisessem ouvir:

– Se você fosse uma atriz eu juro por Deus que eu ia lhe expulsar de casa, mas, Meretriz? O que há de mal nisto?

Entrou com a filha casa adentro, tendo o cuidado de bater fortemente à porta na cara dos curiosos.

A partir daí, Macário mudou completamente de vida, se tornou um dos homens mais ricos do povoado, investiu todo o dinheiro da filha em gado, se tornando um rico fazendeiro.

Fim

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Março de 2025

Minguante de Outono.