TRAIR E COÇAR… MARICOTA?
Artigo

TRAIR E COÇAR… MARICOTA?

Falar sobre a vida alheia é uma prática que vem lá dos tempos das cavernas. Os homens da pré-história buscavam informações dos oponentes para saber as suas fraquezas, os seus medos, seus desejos e como viviam… De lá pra cá a informação deu origem à fofoca, o povo tomou gosto e tem sido assim através dos tempos. Nos meados dos anos 1950 no povoado do Porto, existia um caboclinho que ganhava o seu sustento, fofocando. João Arengueiro era um especialista nesta arte. Nascido e criado naquele torrão, bastou ficar taludinho para começar a falar à torto e a direito da vida alheia… Com 15 anos de idade foi aclamado como o maior fofoqueiro da região. Como na prática a vida alheia sempre foi mais interessante que a nossa, em pouco tempo, João passou a ser a pessoa mais importante do vilarejo. Se ele não soubesse do sucedido, ninguém mais saberia. “Juão” era um sararazinho franzininho, altura mediana, todo ligeirinho, cabelo duro penteado pra cima, olhos claros, andar sincopado, e trajava sempre a mesma bermuda branca de brim, combinando com uma camisa balon e um par de alpercata de couro que ele fazia questão de sair arrastando pelas ruelas do vilarejo. O maior prazer de caboclo (depois, obviamente, da fofoca) era cortar água, o bicho tomava uma canjebrina lascada. Quando alguma coisa acontecia na região, lá vinha o sarará – mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta -, adentrando sutilmente o bar de João Saracura como se não soubesse de absolutamente nada, quietinho, se sentava na ponta do balcão e ficava só esperando alguém cair na rede e vir lhe pagar uma talagada – o pagador era sempre aquele curioso que queria saber das novidades. – E aí, “Juão”. Diz aí… É de vera que Mané Gaiúdo pegou Marilena fazendo servegonhice com Zelão dos Bolos? Conta aí, vá! Eu pago uma… – Com a cara mais lavada do mundo, João fingia não querer falar sobre o assunto: – Sei nada não, rapaz, sai pra lá, vida dos outros não é da minha conta não. Mané Gaiúdo é gente fina! – Que pena… – dizia o curioso. – Logo hoje que eu ia pagar um rabo de galo “prucê”, “vancê” num sabe de nada! Que pena, “Juão”. – Rabo de galo? – Rabo de galo era a fraqueza de João. – Bem, “inté” que estou sabendo de umas coisinhas… – Insinuava doido para tomar a birita. – Então conta o que sabe, rapaz, conte!  – Titubeante João Arengueiro gritava: – Saracura bote aí um rabo de galo caprichado por conta do moço. Bota logo um copo dublo, vá! – Enquanto João Saracura caprichava no drinque, o arengueiro dava com a língua nos dentes. – Rapaz, nem lhe conto… num foi que Mané deu uma bistunta e voltou mais cedo pra casa? Estava tão indisposto que nem tomou a bufadeira no buteco de Orelino, alguma coisa queria que ele fosse mais cedo pra casa. Mal chegou e num pegou Zelão fungando no cangote da esposa? O imediatismo do flagra fez o pobre do corno ficar completamente sem reação. Sabe aquelas bibas quando quer pegar um mosquito? Ficou daquele jeito. Marilena arrancando os cabelos, gemendo alto, a rua toda ouvindo e ela implorando pra Zelão “judiá” dela! Só deram por fé da presença do marido postado no meio do quarto se esvaindo em lágrimas quando chegaram aos finalmentes. Zelão ainda teve a petulância de vestir calmamente a sua roupa e cumprimentar o traído pela excelente esposa que ele tinha. Saiu foi assoviando um samba de Noel Rosa pela porta da frente. Quem testemunhou diz que Marilena ainda teve a indecência de jogar a culpa pra cima do pobre infeliz que segundo ela, não dava mais nos couros. – E daí, ele largou ela? – Qual nada. Gaiúdo fez foi se ajoelhar chorando, pedindo para ela não ir embora… Desce mais um rabo de galo aí, Saracura. Esta história foi cumprida, merece duas talagadas. –  Pois é. A tal da fofoca sempre fez parte do mundo e em especial dos lugarejos. Tanto que na Nova Conquista da década de 1970, em pleno dia de feira aconteceu um sucedido que turbinou o histórico dos nossos fofoqueiros. Lá estava a feira rolando com aquele monte de feirantes vendendo tudo quanto há. Bananas, mangas, coco, jabuticabas, fumo de rolo, tomates, farinha, cebola, carne, peixe… aquele vai e vem danado, aquela surreal gritaria, aquele barulhão ensurdecedor e eis que surge correndo no meio da feira lotada, uma moça só de calçola e completamente descabelada. Tropica aqui, cai ali, levanta acolá e quando os parentes a agarrava ela se desvencilhava se contorcendo igual lagarta e continuava correndo e gritando, fazendo um escândalo danado. – Eu quero me matar! Me solta! – Deixa de lambança, Maricota. Não está vendo que é tudo invenção desse povo? Esta gente é tudo fofoqueira, deixa isso pra lá!

– Tão falando que Bom-Cabelo me tirou de casa! Vou me matar! – Gritava se desvencilhando dos seus captores. Entre empurrões, gritos, apupos e desespero, a jovem descabelada desembestou rodagem abaixo em direção ao rio da ponte.  – Eu vou me matar agora, eu quero morrer! Antero não quer mais se casar comigo… ele vai se arrepender quando eu morrer! – Gritava à pleno pulmões, correndo desorientada em direção à ponte. – Ouça a sua pobre mãe, Maricota! Se você se matar vai dar um enorme desgosto pra ela. Volte aqui, pelo amor de Jesus Cristo, não cometa esta loucura! – Gritava aquela renca de parentes tentando contê-la. – Ele não acredita mais em mim. Ninguém me tirou de casa não, é calúnia. Eu ainda sou moça… aqueles mentirosos vão ficar com peso de consciência quando eu me matar… – Falava e corria quase pelada pelo meio da pista. Aquela renca de curiosos seguindo o cortejo, a maioria reliando. Os seios de fora balançando e a calcinha suada transparente garantindo a participação ativa dos que saíam de tudo que era lado para observar o escândalo. Maricota era uma linda nova-conquistense que se enamorara e noivara com o caixeiro-viajante Antero Peixoto. O amor do casal era tão pegajoso que deixava metade das mulheres do vilarejo com inveja. Após ajeitar todo o enxoval, alugar e mobiliar a casa, uma semana antes do casório, ao chegar de viagem o comerciante recebeu a notícia/bomba do seu vizinho que o mel que existia na “lua” da sua linda noiva se evaporara diante da impiedosa tara do “desdonzelador” Jaconias Bom-Cabelo, o terror das moçoilas deste torrão. Acostumado a não levar desaforo para casa, assim que o caixeiro-viajante soube do sucedido entrou em uma violenta crise de infezação quebrando todos os móveis recém-adquiridos da sua futura casa e rompendo unilateralmente o noivado. De nada adiantou a moça gritar, chorar, espernear, jurar por todos os santos, trazendo, inclusive, Bom Cabelo para negar o sucedido… Antero Peixoto foi irredutível. – Não me matrimoniarei com uma quenga descarada como você. Aliás, vocês dois se merecem, canalhas! – Falou e saiu deixando a dupla desolada. Este gesto levou a pobre garota a um desespero tão medonho que achou que a única solução para o seu caso fosse o suicídio, assim, após entrar em uma profunda depressão e secar as lágrimas de tanto chorar, Maricota resolveu que a única coisa decente que ela poderia fazer para limpar o seu nome perante o vilarejo era dar cabo da sua própria vida, e assim, entre berros e gritos, desembestou em direção ao Rio Pardo – cruzando a feira de ponta a ponta -, gritando feito uma aluada.

Nesta época, nosso rio era um atrativo tão legal que toda semana vinham caravanas de Vitória da Conquista e arredores para se divertirem aqui. Vira e mexe lá estava o rio afogando um ou outro desavisado, priorizando, obviamente, os conquistenses, já que – rezava a lenda – não sabiam nadar (se dizia por aqui) por não existir rios naquela localidade. Pois é, a quantidade de conquistenses que morriam afogados era um despropério. Neste dia, assim que Maricota só de calçola no meio da rua, começou a dar o seu espetáculo se descabelando aos gritos, metade da cidade a seguiu correndo pelas duas partes do “corte” – que dá acesso ao rio da ponte – torcendo descaradamente por uma tragédia. Todo mundo sabia que se ela caísse no rio, tchau meu bem (diria Lolozinho)! Depois de se desvencilhar várias vezes dos que queriam contê-la, a moça chegou à ponte, subiu na grade, olhou com desprezo para a família e após fazer o sinal da cruz, tapou o nariz e se preparou para o pulo…

– Não se aproximem que eu pulo! Estou falando sério! – As ameaças faziam os parentes recuarem temerosos. Assim que subiu na grade, a infeliz olhou com desdém para seus perseguidores e após fazer o sinal da cruz gritou:

– Se afastem! Tenho que morrer pra eu mostrar pra estes fofoqueiros que ainda sou virgem! Ninguém me tirou de casa não! Adeus mundo véi de Deus! Estou partindo! – Gritava ameaçando pular!

– Não, minha filha! A gente acredita em você, não se mate não! Pense na sua família! – Implorou a mãe à distância. – Se você se matar como seu pai e eu viveremos?

– “Paín” preferiu acreditar na língua dos fofoqueiros! Vou me matar sim! – Ameaçou se jogar e a mãe gritou se ajoelhando no asfalto!

– Não faça isso não, minha filha! Se você morrer eu morro também! Se você pular eu pulo atrás… Os seus irmãos ficarão órfãos, você vai querer isso?

– Não tenho mais motivos pra viver! Falem pra Antero que ele é o amor da minha vida e ele vai levar esta culpa pelo resto da vida, nunca vai ter paz por ter acusado uma donzela inocente de traição. Adeus mundo cruel! Adeus, vou me matar, vou morrer… Adeus!…

– Não! Pelo amor de Deus não faça isso! – Gritava o pai também se ajoelhando no asfalto. Nesta altura já havia uma fila quilométrica de carros parados em ambos os sentidos só esperando o desfecho daquela tragédia.

– Minha filha… – implorou o pai – eu acredito em você. Lhe prometo que vou falar com seu noivo pra ele voltar atrás e se casar com você! Dê uma chance pra gente, dê! – Antero é orgulhoso, pai… nunca vai dar o braço a torcer!

– Ele vai sim, Maricota. – Gritou alguém no meio da multidão. – Eu falo pra ele que o que eu vi você fazendo era mentira, se eu disser que inventei essa história ele volta atrás! – Revelou Belarmino, o vizinho que testemunhava diariamente o rala e rola da noiva com o topetudo do Bom-Cabelo bem no quintal da sua casa!

– Belarmino, fí de uma égua, foi você? Ah, meu Deus, estou perdida! – Gritou Maricota, tampando o nariz e se jogando de uma altura medonha. Ao ouvir o “tchibum” a plateia que prendia a respiração diante do suspense, gritou em uníssono: – Não pula não, Maricota! – Tarde demais. O corpo desceu vertiginosamente se estatelando nas águas revoltas. Afundou, subiu, afundou novamente e desceu correnteza abaixo… Aquele desespero todo, aquela agonia em cima da ponte, enquanto a mãe desmaiava o pai aproveitava para garguelar Belarmino! – Porquê você tinha que contar, fofoqueiro “fi” de uma égua! – Aquela renca de motoristas tentando separar a briga e o Rio Pardo urrando valente naquele mundão de água. Tristeza generalizada, choros, soluços, clima de velório e eis que um garotinho quebra o silêncio apontando para o meio do rio.

– Olá, olá ela! Olá! – Diante do turbilhão de água, após afundar e subir várias vezes, Maricota se agarrou desesperadamente em um tronco que descia correnteza abaixo e após um leve descanso, nadou tranquilamente contra a correnteza até chegar às margens do rio, onde sentou-se calmamente em um lajedo enquanto os presentes se atropelavam descendo desembestados em direção à ela. A mãe foi a primeira a chegar, se abraçando desesperadamente à filha. – Oh, Maricota! Graças a Deus, você está viva! Que susto você nos deu, filha? Não faça mais isso não, ouviu? – Falou acariciando a garota que calmíssima olhou para os presentes e falou com a cara mais safada do mundo… – SÓ NÃO MORRI PORQUE DEUS NÃO QUIS!

No dia seguinte bem cedinho, lá estava o casal entrando na igreja. Antero Peixoto de terno e gravata e Maricota de véu e grinalda casando-se diante dos olhos de Deus e da língua dos homens. Viveram felizes para sempre, embora, por coincidência, sempre que o caixeiro-viajante saía em busca do sustento da sua família, notava-se um sorrateiro Jaconias Bom-Cabelo rondando a casa.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de julho de 2024. Lua Cheia de inverno.