‘Se sua irmã dormir comigo, te dou ouro’: o assédio contra yanomamis
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‘Se sua irmã dormir comigo, te dou ouro’: o assédio contra yanomamis

Garimpeiros de Boa Vista, em Roraima, oferecem perfumes, roupas, bebidas alcoólicas e até ouro para aliciar yanomamis e abusar sexualmente de meninas e mulheres em comunidades indígenas. A prática tem se intensificado com o avanço do garimpo ilegal na região.

Aquela moça que você levou consigo é sua irmã? Se você fizer ela deitar comigo, sendo que você é o irmão mais velho dela, eu vou pagar 5 gramas de ouro.”
Depoimento de um yanomami sobre o aliciamento de um garimpeiro

O relato faz parte do relatório “Yanomami Sob Ataque”, produzido pelas associações Hutukara e Wanasseduume Ye’kwana e publicado em abril do ano passado. O documento reúne as formas mais recorrentes de aliciamento em terras Yanomami.

“O que se observa é a utilização do ouro e da comida como meios de seduzir e envolver indígenas e ter acesso aos seus territórios”, afirma Luísa Molina, antropóloga do ISA (Instituto Socioambiental).

O aliciamento é uma estratégia de entrada e permanência de garimpeiros em terras indígenas. “Eles prometem cestas básicas, motor de embarcações, porcentagens de ouro em troca de acessos aos territórios”, diz a antropóloga.

A violência sexual contra mulheres é outra forma de garantir a entrada às terras. “Elas têm seus corpos violados pela investida dos garimpeiros”, afirma Molina.

Uma fonte que trabalha em território Yanomami, mas preferiu não ser identificada, afirmou que pessoas mais velhas costumam ser mais resistentes ao aliciamento.

Já os indígenas mais jovens tendem a ser alvos preferenciais de garimpeiros. As abordagens são feitas em comércios e até em postos de saúde.

As principais formas de aliciamento são:

  • Oferta de materiais de alto valor em troca de acesso a territórios;
  • Oferta de porcentagem de ouro ou dinheiro em troca de acesso a regiões;
  • Oferta de bebidas alcoólicas e armas;
  • Oferta de trabalho para jovens como “seguranças” em áreas de garimpo;
  • Oferta de acesso à internet nas cidades.

Comida em troca de relações sexuais com indígenas
Segundo o relatório, garimpeiros abordam indígenas oferecendo comida em troca de relações sexuais com jovens. No documento, pesquisadores destacam trechos de diálogos entre eles:

Yanomami: “Vocês estão tirando ouro de nossa floresta, vocês devem dar comida para nós sem trocar.”

Garimpeiro: “Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu te darei comida. Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrizar uma grande quantidade de comida que você vai comer! Você se alimentará!”

Garimpeiro: “Se eu pegar tua filha, não vou mesmo deixar vocês passarem necessidade!”

Segundo o relatório, somente depois de tocar as jovens os garimpeiros oferecem os alimentos.

Ouro e perfume para perderem o medo
O relatório mostra também as estratégias utilizadas para ganhar a confiança das mulheres. Segundo os pesquisadores, os alimentos são entregues para afastar o medo das jovens.

Yanomami: “Eles entregaram para mim comida sem razão! Talvez sejam generosos?'”

Garimpeiro: “Da próxima vez que você vem, vou comprar uma saia que te entregarei!”. “Irei te entregar também ouro. Com aquele ouro, você poderá pegar aquilo que você gostar!”

“Se você quiser tomar cachaça, vou comprar cachaça”
Consta no documento que garimpeiros abusam sexualmente de mulheres quando estão sob efeito de álcool.

Há relatos, segundo a fonte ouvida pela reportagem, que grupos de garimpeiros convidam yanomamis para eventos e oferecem bebidas alcoólicas para abusar de meninas e mulheres.

Pouco habituados ao consumo de álcool, os indígenas sentem mais rapidamente os efeitos da bebida – e os garimpeiros se valeriam disso para cometer os crimes.

“Vivo com angústia”
Para a maior parte das mulheres indígenas, segundo o relatório, os homens do garimpo representam uma “terrível ameaça”, gerando um clima de terror e angústia permanente nas aldeias.

Yanomami: “Quando as pessoas disseram que eles se aproximavam, eu fiquei com medo. Por isso, desde que ouço falar dos garimpeiros, eu vivo com angústia.”

Doenças e estupros
A transmissão de doenças sexualmente transmissíveis é outro tema recorrente nos relatos de mulheres indígenas. Com o avanço do garimpo ilegal, organizações que atuam no local têm enfrentado dificuldade para entrar em algumas áreas.

Esse cenário, segundo fontes ouvidas pelo UOL, faz com que muitas não tenham acesso a exames e tampouco tenham problemas diagnosticados, gerando subnotificação.

Depois que os garimpeiros que cobiçam o ouro, estragaram as vaginas das mulheres, fizeram elas adoecer. Estão transando muito com as mulheres. É tanto assim que, em 2020, três moças, que tinham apenas por volta de 13 anos, morreram. Os garimpeiros estupraram muito essas moças, embriagadas de cachaça. Elas eram novas, tendo apenas tido a primeira menstruação.”
Relatos de um yanomami que consta no documento.

“Quero morrer simplesmente de velhice”
Os relatos colocam a invasão de terra indígenas em um novo patamar. “É algo tão profundo que elas não têm como determinar se vão morrer de velhice ou não. É como se estivessem vivendo um estado de guerra”, diz o documento.

Não queremos que nossos maridos sejam mortos pelos garimpeiros, depois que se instalem nas proximidades. Não quero morrer de fome. Eu quero morrer simplesmente de velhice, sem outras causas. Eu quero morrer como uma mulher idosa.”

Fonte: Uol | Foto:  Charles Vincent/ISA