Pelé é adjetivo
Luiz Henrique Borges
Eu já havia escrito metade da crônica da semana quando recebi a triste notícia do falecimento do maior e melhor jogador de futebol que já existiu. Aos 82 anos, Pelé não conseguiu driblar o câncer, doença que há séculos, como tão bem descreveu o oncologista Siddhartha Mukherjeel na premiada obra “O imperador de todos os males: uma biografia do câncer”, desafia os nossos conhecimentos e os avanços da medicina.
Desde a década de 80 ouço diversas pessoas comparando o Pelé com outros jogadores. Ao Garrincha, ao Maradona e mais atualmente ao Messi. Sempre que sou convidado para falar sobre a história do futebol, uma das perguntas que tenho que responder versa sobre o assunto. Invariavelmente respondo que na mesa em que os gênios do futebol se sentam, Pelé ocupa e ocupará sempre a cabeceira. Mesmo entre os deuses, há uma gradação e o mineiro de Três Corações foi o jogador de futebol mais completo que existiu.
Pouco importa saber se ele era destro, canhoto ou, o mais provável, ambidestro, o certo é, independente da perna que disparava o petardo, os seus chutes eram certeiros. Mesmo não sendo muito alto, 1,73m, ele cabeceava com rara competência. Suas tabelas e dribles encantavam os torcedores. Ele atacava e defendia com maestria. Sua invejável capacidade física proporcionava arrancadas que só terminavam com as bolas deslizando nas redes dos adversários. Sua habilidade era tal que não havia jogada impossível ou irrealizável. Pelé desafiava as leis da física.
Nenhum de nós imaginaria, nem nos sonhos mais loucos, Maradona ou o Messi atuando como goleiro. Pelé, em tempos em que não era possível realizar substituições, não só era o “goleiro reserva” do Santos como ele teve que atuar na posição por quatro vezes sem ter sido vazado uma única vez. Algum desavisado pode afirmar que ele ficou poucos minutos na posição. Não é verdade. Na primeira delas, em 4 de novembro de 1959, o goleiro do Santos, Lalá, se contundiu aos 19 minutos da etapa final e Pelé foi deslocado para o gol até o apito final do juiz.
Outros também podem inferir que Pelé só atuou no gol contra adversários pequenos e em jogos sem importância. Vamos aos fatos! Pelé retornou ao gol em 19 de janeiro de 1964, na vitória do Santos por 4X3 contra o Grêmio, no Pacaembu. Não bastasse ter marcado três gols no jogo, o genial atleta atuou debaixo das traves a partir dos 41 minutos da etapa final, após a expulsão de Gilmar e, apesar dos poucos minutos que restavam, ele realizou duas boas defesas que garantiram a vitória do Santos na semifinal da Taça Brasil de 1963 na qual o Santos se sagrou campeão após vencer por duas vezes o Bahia em 25 e 28 de janeiro de 1964.
Diversas jogadas que nos encantam, realizadas por Zico, Maradona, Ronaldo, Ronaldinho, Messi, Zidane, etc., foram originalmente feitas por Pelé. É importante ressaltar que o craque brasileiro não contou, ao longo da sua carreira, com a onipresença da mídia.
Os críticos anacrônicos, todos aqueles que avaliam os jogadores do passado a partir dos padrões atuais, afirmam que o futebol mudou e que se Pelé atuasse hoje ele não seria tão bom. Caro anacrônico, o “se” não existe, mas a sua análise carece de um importante argumento: é preciso lembrar que com os métodos de treinamento da época o craque brasileiro, junção de talento e transpiração, sobrava em relação aos demais jogadores. Imaginem se ele tivesse à sua disposição as modernas metodologias de treino e os equipamentos, como chuteiras, camisas e bolas, atuais. Todo este arsenal certamente potencializaria ainda mais a capacidade técnica do genial jogador.
O futebol paulista, antes de Pelé, era dominado pelo Palmeiras, São Paulo e Corinthians. O Santos era considerado um time do interior que, vez ou outra, entrava no baile oferecido pelo “Trio de Ferro”. A partir dele, o Santos dominou o futebol nacional do final dos anos 50 até o início da década de 70 e se transformou na equipe brasileira mais conhecida em todo o mundo até hoje. Entre 1958 e 1973, por exemplo, a equipe do litoral de São Paulo conquistou 10 campeonatos paulistas e, de lá para cá, já sem Pelé, a equipe levantou a taça estadual em 9 oportunidades. Qual foi o outro gênio do futebol que alterou tão drasticamente o patamar nacional e internacional da equipe pela qual ele atuava?
Desde 1938, os brasileiros afirmavam que éramos o país do futebol. No entanto, a realidade não era tão pródiga. Apesar dos anos 40 ser a década sem Copas, em virtude da II Guerra Mundial, a principal seleção do continente e provavelmente do mundo era a Argentina. Era muito difícil, nos confrontos, superarmos os nossos vizinhos. Mesmo contando com uma excelente equipe, fracassamos na Copa de 1950. Pelé materializou o discurso, ele foi o principal artífice que nos transformou no país do futebol arte, do futebol espetáculo, do futebol vencedor.
Um dos argumentos mais ridículos apresentados pelos críticos de Pelé é que ele contou com um entorno recheado de craques. Tal fala demonstra apenas a boçalidade ímpar de quem o pronuncia, afinal desde quando jogar ao lado de grandes jogadores atenta contra qualquer craque? Na verdade, o fato de Pelé se destacar e ser o maestro do Santos ou da Seleção Brasileira, apenas demonstra e reforça o quanto ele era genial. A última Copa do Mundo demonstrou a importância da equipe para a atuação do craque. O futebol do artilheiro polonês Lewandowski simplesmente desapareceu quando ele teve que atuar ao lado de atletas sofríveis em sua seleção.
Finalmente, há o lado pessoal de Pelé que também foi alvo de diversas críticas. Não pretendo abordá-las e não cabe a mim realizar qualquer juízo de valor sobre as controvérsias que envolveram o jogador fora do campo de futebol. Infelizmente, ainda hoje, percebo muitas pessoas atacarem equivocadamente a capacidade futebolística de Pelé, confundindo alhos com bugalhos, a partir de discursos que reverberam a falsa necessidade, proveniente do pensamento cristão, de que os ídolos sejam impolutos, sem máculas e defeitos. Ou, ainda pior, de forma hipócrita, presos por suas preferências ideológicas, fecham os olhos para os equívocos de terceiros para apontar o dedo acusadoramente para o brasileiro reduzindo a importância que o atleta brasileiro representa para o futebol. Caso, caro leitor, você deseje, me avise para que eu possa aprofundar os pontos aqui esboçados.
Por fim, o melhor médico é considerado o Pelé da medicina, o melhor jogador de basquete é o Pelé do basquete, ou seja, diferentemente de qualquer outro nome, o de Pelé deixou de ser substantivo para se transformar em adjetivo. Afirmo, sem medo de errar, que enquanto o futebol existir e a bola rolar pelo gramado, Pelé será eterno e o maior de todos os tempos!