Autor: Luiz Carlos Figueiredo
Diante de toda a polêmica referente ao recente pleito presidencial onde parte dos evangélicos foram protagonistas, rebusquei nas minhas memórias afetivas alguns casos que de uma forma ou outra teve o envolvimento da nossa fé de cada dia. No início dos anos 1970, a nossa querida Cândido Sales foi tomada de assalto por uma legião de “Batistas”. Invadiram literalmente a cidade se apossando da praça pública e após o toque literal dos clarins, desfraldaram alguns estandartes enquanto dezenas de jovens saíram de porta em porta induzindo os pobres moradores a fazerem parte daquela famosa seita.
– O mundo está acabando, Jesus está voltando, quem não se arrepender dos seus pecados vai se queimar eternamente no fogo de enxofre! Ainda há tempo, a religião Batista é a religião escolhida por Deus e a única que salva! Se torne um Batista e purifiquem todos os seus pecados! – Gritavam com um megafone bem no pé dos “zuvidos” dos pobres moradores.
– As trevas comerão as “fraldas” do dia, os filhos vão chorar e as mães não vão ver, só os puros de coração encontrarão o caminho da salvação. Convertam-se agora ou arderão eternamente nas chamas do inferno! – Era gente tremendo, outros chorando, alguns tendo ataque de epilepsia e o caos se instalando literalmente em meio aos moradores. Diante da pressão, uma renca de pessoas inseguras acabavam se convertendo. Depois de toda esta pressão, assim que a poeira baixou, descobrimos que quem tocou todo este terror foi a esposa de “Candin Capador”, evangélica fervorosa (morava em Vitória da Conquista na época) forçava a catequização das “almas penadas” que habitavam este torrão apenas para aumentar o seu rebanho.
O antigo povoado de Nova Conquista nasceu de uma “guerra santa”. Durante a emancipação política do município (na década de 1960) travou-se nos bastidores uma violenta batalha entre católicos e evangélicos, que foi ganha pelos católicos aos 45 do segundo tempo. Nesse período era comum vermos nos quatro cantos da cidade, fervorosas pregações religiosas de ambos os lados. Os católicos brigavam para que a feira livre fosse sábado e os evangélicos optavam pelo domingo. Só de birra, o poder público mudou para segunda-feira desagradando as duas partes. Era o tempo em que alguns evangélicos tocaiavam os compradores de carne de porco nas portas dos açougues fazendo a maior pressão:
– Aquele que comer esta porcaria vai arder eternamente nas chamas do inferno até virar carvão! Comer porco é pecado, está escrito na bíblia, sabia disso não? – Quem não achava nem um pouco engraçado eram os açougueiros. Diante da constatação do prejuízo, quase todos os dias podia se vir um ou outro açougueiro armado de uma peixeira amolada correndo atrás de algum crente! Foi durante este período que João de Arimatéia levou um choque “disgramado” quando teve um contato imediato com um “espírito religioso”. Ainda menino testemunhou incrédulo à invasão da pensão da sua família que fazia vezes de “dormitório” (localizado bem na beira da rodagem onde os “araras” seguiam para São Paulo ou Triangulo Mineiro) por uma renca de peregrinos munidos de cruzes, catecismos, rosários, bíblias e afins, vindos dos confins dos Gerais com destino à “Terra Prometida”, que não por acaso, era o povoado de Quaraçu (distrito de nossa cidade), terra natal do líder religioso, que também era o fiel condutor daquele rebanho. Ele viu como o seu querido e velho pai resistiu bravamente ao assédio do líder peregrino que insistia que o mundo estaria se acabando dali a algumas horas e que só se salvariam os que conseguissem chegar à “Planície Sagrada”. Como o pai de João de Arimatéia gostava mais de dinheiro que pingunço de canjebrina, temendo perder o pagamento dos hóspedes que pernoitaram na sua pensão, o jeito foi dar um bico na fé se recusando veementemente a acompanhar o “cortejo”. O velho senhor só se esvaiu do peso que torrava a sua consciência quando testemunhou incólume (uma semana depois), a volta cabisbaixa do líder religioso completamente desolado. Após ficarem acampados na “terra prometida” por oito dias e oito noites, viram o mundo continuar existindo do mesmo “jeitim” e a maioria dos seguidores capou o gato caindo na lapa do mundo, deixando o velho líder a ver navios. A partir desta data, João virou um ateu convicto e deixou de acreditar em padre, em madre, em frei e até em pastores… (Ave Titãs)! Nos meados dos anos 1980, influenciado pelo cantor Tim Maia, João de Arimatéia – agora um respeitável pai de família – entrou de cabeça na cultura racional (criada pelo pretenso médium Manuel Jacinto Coelho) e de lá pra cá tem esperado ansiosamente a chegada de um disco voador que virá exclusivamente para levá-lo para o “Mundo Racional”, onde será recebido com pompas pelo Racional Superior.
Alguns anos atrás, João recebeu de supetão a visita do seu irmão que afirmava ser um dos representantes diretos do Racional Superior, nomeado pessoalmente pela poderosa entidade. O astuto irmão de João (mais novo que ele) induziu o pobre coitado a sair em grupo em busca da “Caverna Sagrada” onde encontrariam um suposto “cristal magnetizado”, localizado nas entranhas do povoado de Barra do Furado (outro distrito de nosso torrão). O cara – para desespero de João – exigiu que todos fossem caminhando por mais de 10 léguas, seria a contrapartida exigida de cada um dos fiéis! Na metade do caminho, João de Arimatéia que era pra lá de sedentário se viu acometido de uma violenta dor nos quartos, e após parar e pedir guarida, foi despido à força e levou uma surra violenta de cipó de goiabeira dada por todos da comitiva. Segundo eles, estavam preparando a sórdida e pútrida matéria do infeliz para o contato com os alienígenas. Assim que foi possível, João voltou desembestado para “Candin”, “azuado” e pelado com as roupas nas mãos. Muito tempo depois, soube através de terceiros, que o famoso cristal foi achado e detinha uma potência superior ao das bombas atiradas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki na segunda guerra mundial. Os adeptos do irmão de João, esperam ainda hoje as ordens do “Racional Superior” para saber o que fará com o “valioso” cristal. Durante todo este tempo, João de Arimatéia procurou aqui mesmo na cidade expandir os seus seguidores, porém, após a saída barulhenta de Tim Maia nos anos 1980, a seita caiu em descrédito. Hoje João está velhinho e debilitado, porém, não perde as esperanças de que um “objeto voador não identificado” seja enviado decretadamente para buscá-lo.
Dia destes os filhos foram acordados no meio da noite com João de Arimatéia aos berros: – Sai daqui sua cadela safada, fela de uma égua! Eu sou um racional, não tenho medo de você não, entendeu? – Ao adentrarem o quarto os filhos testemunharam o velho João só de ceroula, com uma meia na cabeça, armado de um facão enferrujado, fazendo um barulho desgraçado descendo a ripa em um velho penico esmaltado.
– O que foi pai? Está louco da cabeça? – Gritaram os filhos preocupados.
– A Véa da Foice esteve aqui agora pra me buscar! – Disse ele ofegante.
– Ué, como o senhor sabe que era a morte? – Perguntou um dos filhos sorrindo. – Podia ser a sua sombra! O senhor está tão aluado que está mijando e confundindo o rastro do mijo com uma cobra!
– Ôxi, a velha da foice é conhecida. Quem entraria no meu quarto a estas horas da noite trajada de preto, armada de foice e com cara de caveira tentando me degolar? Era ela sim. Será que eu sou algum besta? – Perguntou ofegante.
– E o que o senhor fez? – Quis saber os filhos pra lá de curiosos.
– Ah, ela não sabe com quem andou mexendo. Invoquei a força Racional, desci a ripa nela que só sobrou este montinho de cinzas pretas aí, ó, tá vendo? Eu sou lá algum idiota pra me deixar ser carregado por esta Véa? Não! Está chegando o momento de seu Jacinto mandar o disco-voador me buscar. Serei levado para o Mundo Racional e de lá contemplarei toda esta lama podre que vocês chamam de mundo! Lá é o Paraíso! O velho pai de vocês vai ficar de lá só observando!
Apesar do velho João demonstrar diariamente não andar lá muito bem da cabeça, uma coisa intrigava diariamente a família. Não é que vira e mexe um objeto voador não identificado estacionava em cima da morada de João de Arimatéia? Pois é. Pode acreditar. Até fotos já foram tiradas. Às vezes o bicho ficava parado e as vezes dava rasantes indescritíveis. Sim. Os parentes têm monitorado constantemente estes óvnis passando para lá e pra cá sobre a casa do moribundo que mesmo debilitado sai caxingando para o lado de fora da casa munido de uma velha mala de sola e um guarda-chuvas quebrado gritando feito um desvalido: – Ei! É aqui mesmo. Olha eu aqui! Desce aí pra me buscar! Você está me procurando? Eu moro é aqui, pode descer! – O objeto voador faz algumas mungangas, dá algumas piscadas no ar e depois desembesta em direção ao espaço. O que é ainda mais estranho, é que segundo a própria família, vira e mexe, João é envolvido em um ou outro acidente doméstico ficando com a cara mais “mochilada” que bombacha de gaúcho. – Pai, o que foi isso, pai? – Indagavam os filhos ao vê-lo todo arrebentado. Nariz quebrado, olho roxo, dentadura retorcida, cara inchada, os cambaus… O mistério é que no dia seguinte o velho João aparecia sem um arranhão. Novinho em folha, deixando a família completamente embasbacada! – Ué pai, que houve com a sua cara? Ontem estava toda muchilada, onde foram parar as marcas? – Perguntavam surpresos!
– Invoquei a força racional e reconstruí a matéria! Já estou prontinho pra outra. – Dizia ele com a cara mais limpa do mundo.
Mas nem sempre foi assim. Alguns anos atrás, João de Arimatéia ficou extremamente debilitado e após levar até vela na mão, prestes a fazer a “passagem” topou ir às pressas para o hospital local. Na ânsia da morte, desenganado pelos médicos, relatou com um fio de voz o seu último desejo. João de Arimatéia exigia a extrema unção de algum padre, como não encontraram nenhum pároco naquele instante, resolveram quebrar o galho com algumas “Testemunhas de Jeová” que se encontravam no recinto. Todo mundo sabia que a raça que mais o moribundo ojerizava na face terra eram os crentes! Quando ele viu aquela renca de senhoras com aqueles cabelos e saias enormes adentrarem o recinto, butucou logo os olhos e começou e pensou até em correr… a família ficou só esperando o escândalo…
– O senhor está morrendo, quer ouvir a palavra de Deus? – Indagou a anciã que parecia ser a líder do Grupo. João fechou a cara e a contragosto consentiu:
– Sim! – Respondeu para a surpresa de todos. – O senhor acredita em Deus?
– Sim. – Gritou ele com a voz forte contrariando tudo o que havia pregado em toda a sua vida. – O senhor acredita na Bíblia?
– Sim! – Voltou a confirmar com uma fé inabalável.
– Então parta em paz! Deus está lhe chamando! O Reino dos céus o espera! Que a terra lhe seja leve e que a sua passagem seja tranquila! – Falou a Anciã enquanto o grupo lia o salmo 23 e testemunhava incrédulo João de Arimatéia beijar sofregamente a mão da anciã em um indescritível desespero!
– Agradecido irmã, muito obrigado! Oh, Senhor, me cubra de glórias!
Se você está pensando que ele bateu as botas, pode tirar o cavalinho da chuva. No dia seguinte, como que por um milagre, logo cedinho o ancião voltou andando pra casa, novinho em folha. Ainda hoje continua esperando a chegada do disco voador que o levará para o Mundo Racional!
Sabe qual o moral da história? “Na tortura toda carne se trai”!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Quadras de Outubro, Lua cheia da Primavera de 2022.