Autor: Luiz Henrique Borges
Um pouco mais de um ano, após finalizar o doutorado em que pesquisei os confrontos entre Brasil e Argentina e as percepções construídas pelas imprensas dos dois países em relação ao seu rival, recebi o agradável convite para escrever, semanalmente, crônicas sobre futebol. Inicialmente, pensei que seria uma atividade episódica. Me enganei. Sem uma única interrupção, o exercício de escrita, hoje, alcançou sua centésima crônica. Agradeço ao leitor, sempre paciente e generoso, pela sua leitura e por seus comentários sempre educados e bem embasados. Boa coincidência, a centésima crônica estar ocorrendo com o fim de vários campeonatos regionais.
O último final de semana nos proporcionou muitas emoções. Conhecemos vários campeões estaduais em confrontos que ficarão para a história. No Rio Grande do Sul, o Grêmio, ao derrotar o Ypiranga de Erechim nos dois confrontos, conquistou o pentacampeonato gaúcho e se enche de moral para a difícil disputa da Série B deste ano. Outro clube que, acredito, deverá reencontrar sua grandeza é o Cruzeiro. Apesar da derrota para o Atlético Mineiro na final, a Raposa realizou boa partida, criou dificuldades para o atual campeão brasileiro e, mantendo sua tradição de revelar jovens promissores, lançou Vitor Roque, de apenas 17 anos. Além disso, me parece melhor estruturada do que nos dois últimos anos.
No Paraná, coube ao Coritiba comemorar a conquista. A equipe do Alto da Glória venceu os dois jogos contra o Maringá, quebrou um jejum de cinco anos sem ganhar o Paranaense e, com o seu 39º título estadual, ampliou para 13 conquistas a sua vantagem contra o Athletico Paranaense, seu grande rival.
Nos campeonatos Amazonense e Mato-Grossense a lógica imperou. Os dois clubes mais bem estruturados, os alviverdes que carregam os nomes das capitais dos seus estados, Manaus e Cuiabá, futebol também é geografia, sagraram-se campeões. As coincidências entre eles não param nas cores e nos nomes das capitais, ambos foram bicampeões estaduais e conquistaram cinco títulos nas últimas seis temporadas, ou seja, eles só ficaram sem levantar a taça em 2020.
O Brusque, em Santa Catarina, deixou para trás competidores como a Chapecoense, o Avaí e o Figueirense e ganhou o segundo campeonato estadual da sua história. Na decisão, após dois empates contra a jovem equipe do Camboriú, o gol fora de casa garantiu o título para o tricolor catarinense.
Em terras goianas, o Atlético Goianiense não sentiu o peso de jogar no estádio do adversário, o Serrinha, e venceu o Goiás por 3X1. A torcida do Dragão, no sábado, dia 02/04, comemorou duplamente, o título e o octogésimo quinto aniversário do clube.
No Rio de Janeiro o Fluminense exorcizou a desclassificação na Libertadores da América quando, na ocasião, após abrir boa vantagem em casa, jogou de forma covarde em Assunção e acabou superado pelo adversário. Confesso que temi por enredo semelhante. No primeiro jogo, o tricolor venceu seu eterno rival, o Flamengo, por 2X0. A vantagem de gols era semelhante ao fatídico confronto contra o Olimpia. Contudo, desta vez, Abel Braga e seus comandados não se esconderam no placar conquistado no primeiro jogo e o enredo foi distinto inclusive dos últimos Fla-Flus.
No jogo de domingo, o Fluminense, que saiu atrás no placar, agrediu o seu adversário, controlou o meio de campo, buscou o empate, terminou os 90 minutos com maior posse de bola e ainda desperdiçou uma penalidade máxima. De forma justa, após 10 anos, a equipe das Laranjeiras ficou com o título e, de quebra, impediu que o rival conquistasse o inédito tetracampeonato estadual.
Em todas as finais aqui descritas não houve o time da virada, mas em São Paulo… O tricolor paulista, após um início ruim, cresceu na competição. Contando com um elenco com muitos jogadores da base, o São Paulo classificou-se para a final e conseguiu convincente vitória no primeiro confronto contra o Palmeiras, por 3X1, no Morumbi.
Tratando-se de um clássico, a vantagem era considerável. Mas o domingo foi mágico para o alviverde. Foi um daqueles jogos que só se repete a cada milênio. Épico! Todos sabiam que os primeiros vinte ou vinte cinco minutos deveriam ser marcados pela intensa pressão do Palmeiras. Equivocadamente, o goleiro são paulino, já no minuto inicial buscou fazer a famosa “cera” para esfriar o jogo. Os palmeirenses interpretaram a “malandragem” do arqueiro rival de forma completamente diferente. Fabrício Werdum, lutador de MMA, afirmou que em muitas encaradas, na véspera do combate, o lutador pressente não apenas o estado físico e mental do seu adversário como até o provável resultado da luta.
A cera do goleiro tricolor foi como a encarada descrita por Werdum. Os palmeirenses perceberam o temor do oponente e avançaram sobre ele de forma implacável contando com o apoio e os cânticos de sua torcida: “O Palmeiras é o time da virada, o Palmeiras é o time do amor. Ererê, ierê, ierê, ôôô, ôooo”.
O interessante é que o cântico em questão não nasceu em terras paulistanas, mas no Rio de Janeiro, assim como a presidente do Palmeiras, Leila Pereira. A canção, “A criação do mundo na tradição Nagô” foi samba enredo da Beija-Flor de Nilópolis no Carnaval de 1978 produzido pelo aclamado carnavalesco Joãosinho Trinta (escrito com “s” mesmo). Embalado pela música, a Beija-Flor conquistou o tricampeonato e se consolidou como uma das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro.
No futebol, a adaptação do samba entrou para o repertório da torcida do Vasco da Gama, clube pelo qual a carioca e agora presidente do Palmeiras, Leila Pereira, torcia em sua infância e mocidade. Há duas versões para a adoção da música pelos vascaínos. A primeira, ainda em setembro de 1979, após uma vitória vascaína de virada sobre o Flamengo, por 4X2 e a segunda, bem mais tarde, em maio de 1988, quando o Vasco venceu, de virada, o Fluminense por 2X1. “O Vasco é o time da virada. O Vasco é o time do amor. Ererê, ierê, ierê, ôôô, ôooo”, canta ainda hoje a torcida vascaína quando o time precisa de uma virada.
O Palmeiras, em momento mágico, transformou a letra da música em realidade. Contando com uma administração competente, com uma equipe muito qualificada, com um treinador extremamente capaz e com um trabalho já longevo para os padrões brasileiros e, particularmente, com a incrível energia emanada da torcida no Allianz Parque, o alviverde, o time da virada, mas não amado por todos, que fique claro, não tomou conhecimento do São Paulo. Aplicou um sonoro 4X0 e levantou, com justiça, seu vigésimo quarto título estadual.
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