Quem aí conhece Zé Pereira, o Rei da Folia? Para quem não sabe, Pereira é Zé Preto, nosso cracaço de bola. Bom vivant, boêmio, fala mansa, andar cheio de ginga, bem humorado, pacato e há alguns anos, era um degustador inveterado de canjebrina. Com 16 anos era titular absoluto da Seleção de “Candin”. Viveu do futebol por um bom tempo, disputando partidas em Medina, Itaobim e Pedra Azul. Era muito habilidoso e um excelente zagueiro, porém, quando se invocava de jogar de atacante virava artilheiro. Quando o futebol de Pereira rompeu fronteiras, a cidade de Pedra Azul (que fica no Vale do Jequitinhonha) já organizava campeonatos e abriu espaço para que os times competidores se reforçassem com até dois jogadores de outras cidades. Não foi que o Flamenguinho veio até este torrão em busca de Badim e Zé Preto? Sim. Quando encontraram Badim, souberam que o negão Zé Preto ficava o tempo todo na areiada, no Rio Pardo. Pagaram um emissário para informar ao negão que ele estava contratado para jogar no Flamenguinho com hotel, comida, roupa lavada, grana e canjebrina à vontade por conta do time. O negão nem pensou duas vezes pra aceitar. Quando a comitiva mineira veio até aqui para levar os nossos craques, metade da população se aglomerou diante do Lirio Hotel de seu Lindolfo para verem a partida dos jogadores em uma Brasília estalando de nova. Entre choros, velas e até lenços brancos estendidos, Badim e Zé preto partiram para a grande disputa. Chegaram em Pedra Azul como grandes ídolos.
Quando organizei o primeiro campeonato daqui, Zé emprestou os seus “serviços futebolísticos” à equipe do Rio Negro. Os outros times que disputavam o campeonato… Portuguesa, Palmeirinhas e Cruzeirinho foram formados por novos jogadores. O Cruzeirinho de Pio, tinha ele, Zé Dedão e Caolho como os mais velhos, Celson, Vandela, Milzinho, Piau e Isaac Pires jogavam um absurdo. Antes de Celson virar o grande jogador que foi, era Isaac quem enchia os olhos. O cara corria o campo inteiro, chutava com ambos os pés de longe, de perto, cabeceava bem e ainda era quem mais dava assistência para Celson ser o artilheiro do time. Em 1982 os veteranos fundaram o Rio Negro. O goleiro era Zé de Saturna – comia uma água desgraçada -, Zequinha, Assis, Wilson, Zé Carlos, Zé Preto e até alguns pernas-de-pau como Paulinho de Dona Almerinda, Miranda irmão de Oriston e Henrique – o cárdio poeta –, que atualmente reside em São Salvador, formava o time dos antigos ídolos – a maior torcida da cidade. Quando o Rio Negro aparecia a torcida enlouquecia. Gritos, músicas, fogos… Rolavam uma renca de apostas. Quando vencia – geralmente com gols de Zé Preto ou Zequinha – a torcida invadia o campo e carregavam os boleiros nas costas enchendo literalmente os seus meiões de grana. Zé Preto adorava aquele momento, trabalhar pra que? Passou a viver apenas do que ganhava jogando bola. Miranda (das Casas Miranda) em todo jogo doava um radinho de pilha para o melhor jogador da partida, Zé Preto ganhava quase sempre. Ganhou até o apelido de Dunga em alusão ao nome do rádio. Era um tempo em que qualquer “dez minreis” fazia que fôssemos jogar no interior do município, como Barra do Furado, Timóteo, Lagoa Grande, Quaraçu e até em outras paragens como Batuque e Divisa Alegre… No time tinha sempre alguém influente para requisitar o único veículo que a prefeitura dispunha, uma velha rural Wilis amarela e azul. O motorista era Zeca Prado – já falecido. As viagens duravam horas e se exigisse muito do “baqueleleixo”, as rodas ficavam mais bambas que bêbedo em beco estreito. Se isto não bastasse, a velha rural tremia mais que coração de ladrão. Chegávamos ao destino pra lá de moqueados, mal tínhamos forças pra jogar. Certa feita, antes de chagar à Divisa a bicha abriu o bico e ficamos na estrada. Tivemos que completar a viagem a bordo de um Papa-Jipe. A grana que recebíamos era suficiente para a aquisição de dois litros de conhaque Presidente. Um era para o time todo e o outro exclusivamente para Zé Pereira (que já combinava antes da partida) que bebia tudo sozinho e não dava um gole pra ninguém. Retornávamos à noite, bêbados feitos uns gambás e Zé com o seu litro debaixo do suvaco, totalmente moqueado, pedindo para que cantássemos a música que ele adorava: – Canta aquela aí agora, canta aí! – “Aquela” era a música que fazia uma citação ao seu nome… “(…) Eu não chorei, porque não sei chorar… Nem reclamei, porque não sou de reclamar… Só exaltei, Eneida, amor e fantasia… Cantei entrudo, Zé Pereira, o rei da folia… Boi, boi, boi, Boi da cara preta… Pega essa criança… Que tem medo de careta.. (…) limoeiro é limoeiro, uma flor é uma flor, batuqueiro é batuqueiro, cantador é cantador… vela inteira não me alumia, cotoco de vela quer me iluminar, chuva grossa não me molha, sereno quer me molhar, meu senhor? (…)”. Esta era a parte que todo mundo sabia cantar e Pereira soltava a voz embargada. Boi da Cara Preta era do compositor Zuzuca e fez muito sucesso com Jair Rodrigues. Jogar na zona rural era uma diversão. Ninguém se preocupava com o resultado, queria apenas arrecadar a grana da cachaça pra todo mundo voltar feliz, bebendo no gargalo e Pereira ali com o seu litro debaixo do suvaco. Certa feita o Palmeiras – timaço de Dedé – foi jogar na cidade mineira de Taiobeiras, a fama do time mineiro era de meter medo. Uma chuva lascada, raios, trovões, lama… Levaram à tiracolo, Pedrão – Marido da falecida professora Dáurea – que ficava o tempo inteiro cantando na beira do campo: – Quem foi que disse que nossa vitória não sai? Há, há, há, há, há… a vitória vai sair… Tarararará… a vitória vai sair… – Na época o poeta Jaivan também era chegado a tomar umas e outras e não iria perder uma oportunidade de ir ao bonito estádio de Taiobeiras para o grande embate intermunicipal. Diante da chuva e do lamaçal que o estádio – mesmo gramado – virou, o time Cândido-Salense arrancou um bonito empate. Voltavam todos dentro de uma velha kombi fazendo uma batucada infernal, “molhados” por dentro e por fora quando o veículo deu uma bistunta e estancou no meio na estrada. Sem paciência para esperar alguém buscar um mecânico, Pereira, Zé de Saturna e Jaivan resolveram tirar na canela mais de duas léguas no meio da noite. Lá para as tantas Zé de Saturna sugeriu que todos viessem correndo. Mesmo bêbados, o poeta e Zé Pereira desembestaram pela rodagem, quando deram por fé, cadê o goleiro? Voltaram e toparam com Zé de Saturna, bêbado feito um gambá, correndo sem sair do lugar. Veio rebocado pelos amigos.
Uma das festas mais populares deste torrão, sempre foi o aniversário de “Candin” que acontece todo 5 de julho. Começa de madrugada com os fogos da alvorada, em seguida vem o atletismo, salto à distância e ciclismo. À tarde tem sempre uma partida de futebol com a seleção deste torrão enfrentando algum time mais ou menos remediado. Já vieram aqui os profissionais do Serrano e da Catuense – ambos disputavam a primeira divisão do glorioso campeonato baiano. No 5 de julho de 1995 a Rádio Pirata 95,7 tinha uma programação toda especial, enviava um “correspondente” para fazer a cobertura diretamente do “Estádio Augusto Flores”. Campo lotado, jogadores ao vivo falando para toda a região, a população toda orgulhosa, e metido a radialista, eu, juntamente com “Zezim Bonifácio” éramos incumbidos de fazer a transmissão diretamente do campo de jogo. Entrevistávamos os torcedores, o campo repleto, e percebemos que havia uma indignação com a barração de Zé Preto que era o último grande craque que nos restava. “Véi Barbeiro” após uma bistunta, se invocou de fazer uma renovação formando um time só com jovens, barrando o único ídolo que tínhamos. Enquanto a torcida protestava vaiando o time que entrava em campo, Pereira assistia tranquilamente no meio da torcida. Assim que o time entrou, dei um toque pra “Zezim” entrevistar “Véi Barbeiro” ali mesmo na muvuca. Audiência maciça, todo mundo com o seu radinho de pilha no pé do ouvido e para botar ainda mais lenha na fogueira alguém resolveu ligar o rádio de um carro que estava estacionando debaixo do pé de surucucu, amplificando a transmissão em uma altura medonha. O danado do “Zezim” já chegou botando o microfone na boca de “Véi” que diante da torcida não teve como fugir da entrevista. – Estamos aqui Luiz Carlos com o grande técnico “Véi Barbeiro” ele vai falar agora o porquê de ter barrado Zé Preto. Fala aí, Véi. Zé Preto não vai jogar porquê? – Ao ver o microfone o treinador ficou mais vermelho que um peru e gaguejou: – Não, não. Não foi barrado não. Ele está contundido. – Ah, tá bom. Tá ouvindo aí Luiz Carlos? Nosso grande ídolo Zé Preto está contundido e não pode jogar! – Falou “Zezim”. – Imediatamente deu um estalo e eu falei: – “Zezim” … Zé Preto está aí bem perto de você. Confirma aí se esta história procede? – Menos de um minuto e Zé Preto já falava ao vivo na frequência modulada da 95,7: – E aí Zé, o treinador disse que você está machucado e não pode jogar. É verdade? – Zé pegou o microfone e falou para que todo mundo ouvisse: – Eu machucado? Sequer fui chamado para este jogo. Nunca estivei tão bem fisicamente. Ele deve estar achando que eu estou velho demais! – Tá vendo aí torcedor? “Véi Barbeiro” barrou o nosso grande ídolo, Zé Preto é o grande jogador que ainda temos aqui. – Gritou “Zezim”. Dá pra imaginar a vaia que “Véi” levou? Quase meia hora de apupos. Dia 5 de julho, aniversário da cidade, o estádio lotadíssimo e a torcida carregando Zé Preto nos ombros e vaiando “Véi Barbeiro. – Ão, ão, ão Zé Preto é Seleção!… Viva Zé Preto! Ão, ão, ão Zé Preto é Seleção!… – Acho até que o time daqui ganhou este jogo, só que na semana seguinte lá estava “Véi” implorando Zé Preto pra voltar a jogar na sua Seleção. Zé fez todo doce do mundo, porém, voltou a integrar o glorioso escrete de “Candin”!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de novembro
Crescente de Primavera, 2023.