– Tchau, amor. Até amanhã. Tranque bem as portas e durma com Deus!
– Fique tranquilo amor, vou dormir bem, se Deus quiser. Até amanhã. – Disse a recém-casada Dolores, beijando Serjão, seu marido que acabara de arranjar um emprego de vigia noturno no Posto de Combustível de Cassiano.
Estamos em 1967, Cândido Sales é uma pequena cidade buscando seu lugar no espaço. As pequenas casas comerciais do município já começavam a produzir os primeiros empregos, fugindo um pouco do trabalho da beira da rodagem.
Serjão e Dolores após uma paixão fulminante se matrimoniaram. Casa alugada, moveis adquiridos em suáveis prestações e lá estava ele como chefe de família buscando o sustento da casa.
– Te amo, meu amor! Não se preocupe que estarei bem, ouviu? – Sérgio se despede da esposa com uma beijoca e munido do seu chapelão de massa, vai cumprir suas obrigações, levando a tiracolo o seu indefectível guarda-chuva. Bastou ficar sozinha para uma Dolores completamente excitada, colocar algumas gotas de perfume no cangote, passar um batom nos lábios e vestir uma minúscula lingerie se admirando no espelho. Inquieta, se deita na cama, abre as pernas e geme fogosamente… Passa-se meia hora e surge um vulto de um mascarado de capa e chapéu, usando roupas negras e rondando sorrateiramente a residência da moça. Após fazer o reconhecimento, o mascarado salta habilmente as cercas que dão para o fundo da casa. O homem de capa chega na porta dos fundos, dá três suaves batidinhas e Dolores, munida de um fifó, nua como veio ao mundo, abre a porta…
– Demorou, safado! Está querendo me matar, é? – Diz se enroscando ao amante. Assim, entre beijos, mordidas e arranhões vão para cama onde passam uma noite de volúpia e prazer. Até os vizinhos mais distante sabiam que os excitantes gritos que varavam a madrugada não eram provocados pelo vigia, logo, Dolores passou a ser conhecida pela vizinhança como a adúltera que chifrava o pobre vigia ou mulher que dava mais que jabuticaba.
O mascarado garanhão era Zé Cardoso, um dos nativos deste torrão, conhecido por se relacionar com mulheres casadas. Ficara tão famoso que ganhou o sugestivo apelido de Pé de Pano. Apesar de bem apessoado, Zé Cardoso fugia das mulheres solteiras, gostava mesmo era das comprometidas. Quem o conhecia já sabia da sua obsessão por casadas. Seu grau de exigência era baixíssimo. Pouco se importava se a senhora fosse feia ou bonita, gorda ou magra, nova ou velha… era comprometida? Então, era com ele mesmo!
Zé era filho de seu Elpídio e dona Madalena Modista. Nascido e criado no vilarejo, conhecia todo mundo, e… embora, fosse todo metido a sebo, adorava andar alinhado, bem vestido, cabelo penteado, perfumado e cheio de conversa mole. Era mais cabeludo que roqueiro e caminhava rebolando igual Michael Jackson dançando. Usava uma calça jeans mais apertada que pedra hume e, comparando mal, dava as aparências de um dos integrantes dos Menudos. Mesmo todo metido, Zé era o sonho de consumo da mulherada, a fama da sua paixão por comprometidas cruzara as fronteiras. Se a comprometida desse bola, o infeliz vestia o seu traje de guerra (máscara e roupas pretas) e saía no breu da noite pulando cercas e muros até atingir o seu objetivo. Entrava pelos fundos, pelas telhas, pelas janelas e virava a noite enroscado em algum corpo nu. O tal do Zé Cardoso era danado!
Metade do vilarejo sabia que já havia um bom tempo que ele andava arrastando as asas para os lados de Dolores que além de recém-casada, era meio rechonchudinha (o sonho de consumo de Zé era mulher gordinha), porém, ela compensava este sobrepeso com um apetite sexual de ruborizar as profissionais de Ana Calanga. Quando descobriu que Serjão arranjara um trabalho noturno, Pé de Pano faltou soltar fogos, “caridoso” como era, logo resolveu hipotecar solidariedade para a recém-casada. Assim, uma ou duas piscadas, uma caricia disfarçada no cangote e uma mordidinha no lóbulo da orelha, fez a senhorinha ficar literalmente de quatro. A partir daí, bastava Serjão ir trabalhar para o amante esquentar o seu lugar na cama, passando a noite todinha nos braços da adúltera. No dia seguinte, antes mesmo do nascer do sol, o caboclo dava uma saideira, pulava da cama e saía correndo pelos fundos com as roupas na mão. Apesar destes cuidados, a vizinhança pra lá de curiosa, via tudo, porém, quem se atreveria a falar? O fato era fofocado nos quatro cantos do vilarejo.
Neste tempo Candin era deste tamanhinho, tanto que a grande alegria do vilarejo eram os parques de diversão. Estes centros de diversão traziam um monte de novidades… luz elétrica, carrosséis (chapéus mexicanos, cavalinhos infantis, carrinhos de corridas…) que faziam a felicidade da garotada, jogo das argolas que eram lançadas pelos adultos buscando uma ou outra carteira de cigarros e os jogos de azar como as casinhas dos preás, as barracas de tiros ao alvo com dardos (e chumbinho) e as famosas barcas que testavam a força dos jovens malhados da cidade. A cereja do bolo era a voz aveludada dos locutores, tocando as “suas lindas páginas musicais”. Muita gente namorou e se casou motivados por estas locuções:
– Esta linda pagina musical é o rapaz de calça listrada e camisa xadrez que dedica com muito amor e carinho para a garota de vestido vermelho. – Era tiro e queda! Por mais difícil que a garota fosse, era humanamente impossível resistir a uma dedicatória daquelas. E os tímidos? Quando um ou outro ficava a fim de uma garota, escrevia um bilhetinho em um pedaço de papel e pedia ao amigo para entregar ao locutor. Logo se ouvia a pérola:
– Esta música é de um alguém que dedica com muito amor e carinho para a garota de lacinho de fita! “Eu te amo, eu te venero” … Na linda voz do cantor Paulo Sérgio.
Muitas vezes as amigas zoavam a pobre coitada que, sequer, sabia quem fizera a dedicação. Outros, quando rompiam unilateralmente o namoro, enchiam a cara e bêbado feito um gambá, cambaleava até a cabine e pedia com a voz arrastada:
– Toca aí pra mim “Paixão de um Homem” de Waldick Soriano. É Filó de Anáia que dedica pra Julinha… a filha escrota de João Melão. Ela me chifrou com Tenório de Luzia. Pode falar aí pra todo mundo ouvir.
Existia um “chavão” nestes parques que faziam um sucesso danado: – Esta música é um alguém que dedica a outro alguém que pensando bem, saberá quem…
Rapaz, isso era profundo! Filosofia pura! Era o que mais acontecia nos parques. Nesta época os namoradores deitavam e rolavam. Era mulher dando no meio da canela e os mais astutos lavavam a égua! Os tímidos sobravam…
Zé Cardoso não dedicava música pra ninguém, porém, era o campeão de dedicatórias. A turma se reunia e ficava tentando adivinhar quem era a “casada da vez” que estava lhe dedicando música. Sim. Não era atoa que ele era conhecido como Pé de Pano. Era especialista na arte de traçar comprometidas. De algumas regras ele não abria mão. A casada nem precisava ser tão bonita assim, porém, fazia questão de ser na casa e na cama do traído só pra ele sentir o cheiro, se não fosse assim, pra ele não tinha graça! Como veem, Pé de Pano adorava flertar com o perigo. Só andava com um lote de vagabundos da sua laia e se orgulhava de contar o que acontecia entre as quatro paredes. Tinha nego que babava ouvindo suas histórias.
– Peguei a nega de jeito e meti os ferros. Nunca vi alguém gritar daquele jeito. Acordou a vizinhança inteirinha. – Até aquele dia, Pé de Pano sobrevivera bravamente, embora, de quando em vez era obrigado a usar toda a sua habilidade para saltar um muro ou outro, sempre fugindo da peixeira amolada de algum marido raivoso.
Alas que Dolores era tudo o que se dizia dela. Tinha um apetite voraz. Era realmente insaciável, gulosa, compulsiva… Meio rechonchudinha, é verdade, mas quem estava ligando? Zé Cardoso se esforçava a noite inteira querendo satisfazê-la, por mais que se tentasse, nunca saciava o ímpeto da gordinha.
Como o pobre do Serjão trabalhava de segunda a sábado, não tinha energia suficiente para acalmar a libido da patroa. Quando o marido saía lá vinha Pé de Pano. Houve um momento, que cansado, Zé Cardoso começou a fugir da gulosa. Quando ele não aparecia, ela ia atrás e o buscava na frente de todo mundo. Já nem disfarçava mais. Como é do conhecimento de todos, o pobre do traído é mesmo o último a saber. A cidade toda arengando e Serjão completamente iludido. Na frente das pessoas, Dolores enroscava-se ao marido e o enchia de beijos, parecia a mulher mais apaixonada do mundo. Quando o infeliz saía pra trabalhar lá vinha Zé Cardoso para esquentar o seu lugar na cama.
Um belo dia, o pé de pano, se enjoou e se invocou de dar um bolo em Dolores. Pra que? Após esperar por um bom tempo, a gordinha resolveu ir atrás do amante e o pegou enroscado com Madalena filha de Lindalva, que se diga de passagem, era um mulherão. Ah, quando a gordinha viu a cena, endoidou. Saiu do prumo, pegou um cipó de goiabeira e deu uma surra violenta nos dois no meio da praça. Não satisfeita, ainda pegou Pé de Pano pela orelha e levou batendo até sua casa. – Estava me traindo, safado? Tome, tome pra aprender a respeitar… Diante da raiva se esqueceu completamente que era um senhora casada e que o seu marido era outro. Bastou chegar em casa pra ela tirar à força as roupas de Zé, e cavalgá-lo violentamente, uivando igual uma loba desgarrada…
Humilhada e mochilada da surra que levara, Madalena resolveu se vingar. Correu até o posto e abriu o verbo pro marido traído.
– Serjão, sua mulher está lhe traindo com Zé Pé de Pano.
– O que? Deixa de inveja. Dolores é uma mulher direita. Ela jamais ficaria com um moleque como Zé Cardoso!
– É?… Apois vá lá agora pra ver se você não os pega no flagra? Ele está comendo a sua mulher agora e na sua cama. Seja homem, vá lá!
– Deixa de ser arengueira, Madalena. Lava a boca pra falar de Dolores, ela na é da sua laia não, sua piranha escrota! Quer tomar os tabefes?
– Piranha é a gorducha da sua mulher. A cidade toda sabe que você é um corno chifrudo, só você, Serjão, que não sabe… Vai lá agora pra você pegar os dois na cama. – Nervoso, Serjão largou o posto, vestiu sua capa, pegou um facão amolado e desembestou, seguido por Madalena e por uma renca de curiosos que queriam ver o circo pegar fogo. Entrou pelos fundos, quebrou a tramela da portinhola com um pontapé e pegou o casal na cama, com Dolores se descabelando em cima de Zé Cardoso, gritando mais que cachorro atropelado.
Ao ver a cena, Serjão butucou os “zói” e após ficar petrificado por alguns segundos, puxou o facão e quando partiu para cima do casal nus e atrelados… desmaiou… caiu pesadamente no piso do quarto. – Serjão meu bem, não morra, por favor, não morra! – Enquanto Dolores acudia o marido, Zé Cardoso completamente mijado, corria pelado pelas ruas, sendo vaiado pelo povo.
Se você está pensando que o traído largou da esposa pode ir tirando o cavalinho da chuva, perdoou a esposa e ficou ainda mais apaixonado. Zé Cardoso virou piada na cidade e nunca mais comeu ninguém!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e poeta
Cândido Sales, Quadra de Janeiro de 2025
Lua Nova de Verão.