Autor: Mafuá de Malungo
Em agosto de 1988, aos quatorze anos de idade, ingressei para trabalhar na Rádio Bandeirantes FM de Vitória da Conquista, a nossa ZYC 311 e FM 97,5 MHZ (hoje 99,1). E, como já mencionei em uma coluna anterior, eu, que não tinha rádio FM em casa, quando conheci uma emissora de frequência modulada, foi pelo lado de dentro. Uma história que me remete a uma pilhéria sobre um parente meu, lá dos lados dos Gerais, que desmontou um rádio para conhecer e conversar mais de perto com “os homenzinhos” que viviam e falavam lá dentro do aparelho!
Curiosamente, poucos meses depois, e ali mesmo na Bandeirantes, me deparei com um livro: “Tempo, vida, poesia: confissões no rádio”, de Carlos Drummond de Andrade. Até então eu não sabia, mas estava ali a consubstanciação das minhas (futuras) paixões pelo rádio, pelo jornalismo, pelo livro e pela literatura, principalmente pelas narrativas biográficas e a poesia. Ainda me causa estranheza que este livro, publicado pela primeira vez em 1986, ainda seja tão pouco estudado! O volume reúne uma série bem divertida de oito entrevistas concedidas pelo Poeta de Sete Faces à amiga e jornalista Lya Cavalcanti, as quais foram veiculadas pela PRA-2, Rádio Ministério da Educação e Cultura, na década de 1950.
A deliciosa intimidade com que a série de entrevistas se desenrola, como bem notou Elvia Bezerra, nos mostra que a relação de Drummond com Lya vai além da de colegas de profissão. O título do estudo de Elvia já nos sugere isto: “A Louca Admirável e seu Capanga”. No livro, estas conversações são alegres mesmo. Leia-o, quando puder. Contudo, na primeira vez em que eu li “Tempo, vida, poesia”, vi assomar no meu coração uma daquelas sugestões que só Drummond é capaz. Ali, pelo Capítulo V, o poeta afirma que o jornalismo é uma escola de clareza da linguagem e que tal qualidade exige antes clareza de pensamento. Heureca!
Para Drummond, o batente diário do jornalismo não atrapalha quem sinta a compulsão de ser escritor. Pelo contrário, aperfeiçoa! Porque proporciona o treino diário, pois o jornalismo não admite preguiça, diz o poeta. E a preguiça, prossegue Drummond, é o mal maior do escritor entregue a si mesmo. Logo, o jornalismo não admite lentidão porque não há pausas. Afinal, “o leitor não espera”.
— Uma disciplina que ainda estou longe de conseguir, em especial na regularidade de escritura desta coluna, não é professor Elton Moreira Quadros?
Interessante é que, ao aproximar-me de Drummond, cheguei mais perto do jornalismo e do rádio, evidente. E fui me tornando próximo, e observador atento do trabalho de profissionais como Dilton Rocha (in memorian), Janyd Ramos, Mac Donald, Inamara Mélo e Júnior Patente; pioneiros no jornalismo do rádio FM de Conquista, logo nos primeiros anos da década de 1980. Falando em pioneirismo, cabe destacar que foi Janyd Ramos quem se antecipou ou abriu caminhos para uma temática radiofônica feminista, antes mesmo que isto viesse a se tornar um movimento de ampliação dos direitos civis e políticos da mulher, ou de luta para equiparação dos seus direitos aos do homem.
Este é um dos exemplos de que programas como “Conquista Hoje” e “Microfone Livre” marcaram época no rádio local. Oxalá, Deus queira, eu possa escrever uma história que os caiba. Um livro contando a história do rádio de Conquista, quem sabe?
Mas voltando a Drummond e à similitude entre o jornalista e o literato, o poeta assevera que a literatura é um fenômeno de imitação ou repetição. O que faz lembrar, imediatamente, o espirituoso Abelardo Barbosa, o Chacrinha, autor da célebre frase: “Na televisão, nada se cria; tudo se copia“. No rádio, idem. E em Vitória da Conquista nós temos, felizmente, um imitatore (no melhor sentido do termo) daquela graça e vivacidade do Velho Guerreiro: o radialista Mac Donald, outro “louco” admirável.
Donaldo Miranda, para os familiares e amigos mais próximos, primeiro adotou o nome de Donald e, mais tarde, Mac Donald, para sempre. Se o Chacrinha tinha lá seus bordões, como “cheguei, baixei e saravei” ou “quem não se comunica se trumbica”, Mac também criava e ainda cria os seus provérbios. Quem trabalha com ele conhece o famoso “no rádio não se deve entregar tudo, o rádio tem sempre de ter um gostinho de quero mais” ou “rádio não é timbre, é emoção” — uma referência aos antigos vozeirões que dominavam as emissoras.
Sabe-se ainda que Chacrinha não poupava seus convidados. No quadro “Buzina do Chacrinha”, logo depois da performance de algum calouro, ele gritava: “vai para o trono, ou não vai?”. E no início da carreira, ali pelos anos 1940, na Rádio Clube Fluminense, enquanto comandava o “Cassino do Chacrinha”, o apresentador fingia com sons e ruídos que ali no estúdio aconteciam grandes festas e badalados lançamentos de discos. Mentira tão deslavada quanto bem humorada. Entretanto, aqui em Conquista, Mac não ficava longe.
Um tempo, Mac criou o “Helicóptero da Band”, que cobria as ruas da nossa cidade em busca de informações e de encontrar pessoas. Era comum ver gente olhando pra cima procurando pela nave que seguia dando detalhes sobre o trânsito e sobre os passantes que iam encontrando pelo caminho. Mas poucas pessoas se davam conta da veia cômica, própria das farsas. E tampouco os seus entrevistados ou colegas de bancada foram poupados de apelidos. Para Mac, Dilton Rocha era o “Do Rio”; Kleber Gusmão era o “Elétrico da Band”; Ivan Lemos era o “Charles Bronson de Conquista”; Paulo Martins, “O Moreninho da Band”.
Nem mesmo os entrevistados escapavam de seus epítetos. O falecido deputado federal Coriolano Sales, por exemplo, recebeu de Mac Donald o qualificativo de “O Futucador” — Paulo Nunes me dissera um dia que Cori odiava. E foi Mac, junto com Nilton Júnior, quem me pôs o famigerado apelido de “of-hand” — que eu também detestava, aliás.
Lembro que, nos anos 1990, Mac fez uma dupla impagável com João Melo na Rádio Clube AM no programa “Show do Mac Donald”, em que os fatos viravam causos tão insuspeitados quanto aqueles que a gente lê em Bocage ou Pedro Malasartes. Nos anos 2000, de volta à Band, Mac apresentou durante vários anos o “Forró da Band” em que, ao modo de Chacrinha, transformava o estúdio em um grande barracão ou em um imenso terreiro de função igualzinho à música de Elomar. Quem o ouvisse, poderia jurar que, onde estivesse, Mac estava cercado de gente com violas “seguro na mão”, gente sentada junto da fogueira com a manduréba “atiçando os tição” e, em volta da fogueira, as meninas rodando baião.
A história de Mac Donald se confunde com a história do rádio e, principalmente, do jornalismo no rádio em Conquista. Ele é a comprovação de que fazer rádio é um eterno vício para quem verdadeiramente nasceu radialista.
Eu escrevi este texto porque vi Mac Donald recentemente e ouvi, comovido, a sua história de enfrentamento e de cura do “Imperador de Todos os Males”, doença assim chamada pelo oncologista indiano Dr.º Siddhartha Mukherjee (ver o livro “O Imperador de todos os males: uma biografia do câncer”, editora Companhia das Letras), uma doença clandestina, sobre a qual a gente fala aos sussurros, mas que é uma entidade perigosa. Digo entidade porque o imperador de todos os males não é uma doença, mas várias.
Entretanto, Mac também tem muitas faces e uma delas é cheia de otimismo. Assim esta crônica não serve ao lamento, ela é uma demonstração de amizade e ainda o reconhecimento da atitude ativa e confiante de Mac Donald diante deste desafio. Pois, tão logo reuniu forças, ele voltou ao rádio, ao batente diário do jornalismo. Igual ao Chacrinha na música de Gilberto Gil, Mac continua “comandando a massa/ e continua dando/ as ordens no terreiro”.
Está lá todos os dias, de segunda a sexta-feira, ao meio-dia e quinze, apresentando o seu jornal. Por isto mesmo, eu envio ao nosso Velho Guerreiro Mac Donald aquele abraço…
Meu abraço é semelhante a amizade de Lya Cavalcanti com Carlos Drummond de Andrade porque, espero ter demonstrado, Mac é um louco admirável, e eu o seu capanga. Afinal de contas, em muitos dos programas de rádio que ele apresentou, eu estava do outro lado do aquário como seu operador de áudio.
Saúde, Macão! Força sempre!
Foto: Arquivo