“UM CABÔQUIM VIRADO NUM MÓI DE COENTRO”.
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“UM CABÔQUIM VIRADO NUM MÓI DE COENTRO”.

A  construção da BR 116 foi uma apoteose, mobilizou centenas de trabalhadores de todas as partes deste país.  A abertura da mata onde futuramente passaria a famosa rodagem, foi árdua, porém, nos meados do ano de 1948, em pleno Governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra, a ponte oficial (ainda existente nos dias de hoje) começou a ser construída. Acidentes, brigas, ataques de cobras, onças e de outros animais selvagens faziam parte do cotidiano dos trabalhadores. “Mulheres-Damas seguiam os trabalhadores fazendo vida”, alegrando os solteiros – e até alguns homens casados – e nas folgas o forró comia solto, iluminado à luz de carbureto. Na falta de mulher, dançavam-se homem com homem e eles não estavam nem aí. O importante era a diversão.

Todos os dias se contratavam trabalhadores, a mão-de-obra nunca era suficiente. Eis que um belo dia,  deu as caras por aqui um baixinho forte feito um touro, todo musculoso e pra lá de mal-encarado. Parecia ter uns 20 anos de idade e dizia ser oriundo da cidade de Jequié (interior da Bahia). O caboclo era mais desconfiado que marido traído. Devido à carência de trabalhadores o moço foi ingressado às pressas no quadro dos roçadores. Em pouco tempo, o “baxotim” como era conhecido, passou a chamar a atenção de todos, principalmente por ser extremamente metódico e “sistemático”. Se alguém conversasse perto dele em voz baixa, já levantava ariscamente as orelhas e passava a imaginar alguém falando mal da sua temida pessoa. E, como era conhecido por ter um “estopim” menor que o seu corpo, tomava logo duas lapadas de cana e partia diretamente pra briga.

Maneca Relento (como era chamado) era negro do cabelo duro, media aproximadamente um metro e quarenta de altura, usava uma barba rala visando respaldar a valentia que ele queria demonstrar e, inexplicavelmente, parecia ter o corpo extremamente desproporcional. Da cintura pra cima parecia ser uma pessoa normal, da cintura pra baixo, as pernas eram extremamente diminutas.

“O baxotim” não tinha medo de “cara feia”, adorava uma boa briga e mesmo o adversário tendo o dobro do seu tamanho, ele “fundava” dentro. Brigava até não mais se aguentar de pé. Houve casos em que ele caía para um lado e o oponente para o outro, ele arrebentado e o outro pior ainda.

Em menos de dois meses na empreita, Maneca já tinha arrumado mais de uma dúzia de confusão no acampamento e um monte de desafetos. O empreiteiro já o tinha na mira, porém, quando sóbrio, o baixinho trabalhava feito o “capeta”! Não enjeitava serviço! Na marreta, na picareta, na foice, no martelo, na enxada, no serrote… Era um maluco. Isto inviabilizava quaisquer possibilidades de ele ser demitido justamente. Derrubava o que tinha pela frente com uma vontade incontrolável. Era incansável, produzia diariamente por dois homens e meio. Maneca Relento só era baixinho, mas, como trabalhador era um “gigante”. Seu Gonçalo, o velho e cansado senhor que tomava conta da turma, sempre se invocava com as brigas de Maneca, mas, diante do ímpeto produtivo do negrinho, via-se obrigado a mantê-lo no trabalho. Para fazer jus ao nome, o “Baxotim” adorava dormir ao relento. Quando bêbado, caía no primeiro barranco que encontrava. Rolava e se lambuzava todo na terra (isto quando não quebrava literalmente a cara), e dormia onde caía, pesadamente, roncando até o dia clarear, quando fétido e maltrapilho, lavava a boca com um café forte e amargo, mascando logo em seguida meia dúzia de capas de fumo, cujo cuspe preto e gosmento era propositalmente atirado aos pés dos desafetos. Muitos não gostavam do comportamento do baxotim, mas, ái daquele que fosse reclamar, quando contrariado o “caboquim virava no mói de coentro”.

Metade da turma não gostava de Maneca, a outra metade o suportava, porém, ele não estava nem aí! Solteiro, suas grandes paixões eram cachaça, fumo e mulher – não necessariamente nesta ordem -. Por estes “pequenos prazeres”, Maneca Relento bradava aos quatros ventos que matava ou morria! E não era só jogo de palavras não, pois, quando ele recebia o seu pagamento, a primeira coisa que fazia era correr imediatamente pro prostíbulo que “funcionava experimentalmente” em um velho quiosque de tábua reciclada que seguiam os trabalhadores e gastava todo o seu dinheiro em cigarro, mulher e cachaça… O que sobrava, ele, obviamente, acabava gastando atoa!

Quando de posse dos seus “minguados”, o pequeno Maneca corria para juntar os seus “molambos” com Marica Língua de Veludo, a “quenga” mais famosa da época. Apesar de toda a poeira que se tinha naquele tempo, a moça só “desfilava” trajando vestidos de seda pretos acompanhado de um perfume mais cheiroso que o talco de Joca Barbeiro. Quando o minguado dinheiro de Maneca acabava, todos ficavam sabendo, pois ouviam-se logo os gritos histéricos de Língua de Veludo, furiosa, quebrando o baixinho na porrada e o jogando bêbado feito um gambá pela janela do barraco que servia de bordel. Uma coisa precisa ser dito, Maneca Relento apesar de encrenqueiro tinha uma vantagem… Só brigava com macho. Nas vezes em que teve desavença com mulher, levou tapa na cara, chute na bunda e em momento algum esboçou alguma reação. Tinha gente que jurava de mãos juntas que Maneca adorava apanhar de “mulher-dama”! Já com homem, o baxotim que repetia exaustivamente ser da cidade de Jequié, terra, segundo ele, “de homem valente”, entrava “de cabeça na briga” que só acabava quando o oponente ficava fora de combate.

Marica Língua de Veludo – dá pra imaginar o porquê do apelido – era meio que amasiada de Maneca, claro que esta regra só valia quando o caboquim estava “montado na grana”. Quando duro, Marica fingia que nem o conhecia. Maneca, dentro da sua vã ignorância, entendia. Afinal de contas, mulher-dama era assim mesmo, se tem dinheiro é sua, se não tem, será de quem tiver, mas, lá no fundo, quando Língua de Veludo usava aquele diabo de vestido preto e se lambuzava, de rouge, crayon e  água de cheiro, ninguém resistia ao seu “charme”.

Obviamente, não era uma mulher bonita, pois, o vestido apertado revelava a sua barriguinha saliente, o seu sorriso escancarado mostrava alguns dentes cariados que a ausência de luz elétrica e o batom ruge carmim disfarçava tão bem, porém, Maneca adorava entrar naquelas entranhas que as suas coxas volumosas ajudavam a esconder. Às vezes, “o apetite” era tão intenso, que o diabo do baxotim ficava até três dias com o cheiro da rapariga impregnado na sua pele.

Evidente que, nos meados de 1947, já existissem um variado leque de veículos motorizados no Brasil, porém, aqui no “fim do mundo” carro era coisa rara, embora, de vez em quando aparecessem alguns. Um Jeep aqui, uma Ruralzinha ali, um Chevrolet 1938 uma vez por mês (para ligar o veículo, o ajudante do motorista corria até a frente do carro e girava fervorosamente uma manivela, dando a explosão necessária para a partida do motor), e até alguns carros de “passeio”, Aero Willys, Sinca Chambord, todos, sem exceção vindos pela “estrada real” do Porto de Santa Cruz.

Muitos apareciam por aqui apenas para levar as nossas madeiras, outras vezes vinham trazer mercadorias, mas, nunca ficava muito tempo. Faziam o que tinham que fazer e “picava a mula” estrada afora!

Um belo dia, Língua de Veludo sem ter nem porquê, não fugiu na boleia de uma Toyota? Hã… E quando Maneca Relento descobriu? Ah! Foi um fuzuê! Não teve homem (por mais forte que fosse) que conseguisse segurar o “baxotim” que de tão enfurecido jogou até alguns golpes de capoeira de angola derrubando metade dos homens do acampamento. O homem ficou tão desorientado que não sabia se brigava (derrubando os companheiros), gritava (desesperadamente) ou chorava (copiosamente). Foram mais de doze homens para amarrá-lo numa gameleira onde passou a noite, utilizando-se para isto grossas cordas e um nó de marinheiro que um nortista metido a carioca aprendera – segundo ele – servindo na Marinha do Brasil.  Diante da pressão e do monte de mãos que o segurava, Maneca, que escorregava mais que sabonete molhado, diante da desvantagem numérica, aceitou a derrota e desmaiou. No dia seguinte ao ser desamarrado – tendo antes que prometer não agredir mais nenhum companheiro -, ele se recusou a seguir trabalhando e depois de entrar em uma depressão profunda, bebeu sozinho um garrafão quase cheio de pinga bufadeira, quebrou uma “meiota” de vidro e rasgou diante de todos os seus colegas, a sua própria cara de uma ponta a outra, deixando o acampamento parecendo um matadouro, todo lambuzado de sangue coalhado.

Foi muito difícil conter o sangramento, porém, às pressas, foram chamar o velho Zeferino Raizeiro que na afobação e diante dos esguichos de sangue que teimava em jorrar do rosto de Maneca, costurou (mal costurado) a cara do baxotim em “grossas pregas” com uma agulha de coser saco de estopa, deixando um pedaço do “beiço” dependurado, o que lhe incomodou terrivelmente pelo resto da sua vida.

Depois de algum tempo de molho e de dezenas de emplastros de folhas e garrafadas de raízes feitas zelosamente pelo velho Raizeiro, Maneca Relento se recuperou, porém, deprimido, vivia triste e choroso pelos cantos, até que partiu na calada da noite (sem nem ao menos se despedir) e nunca mais deu sinal de vida. Até hoje não se sabe o paradeiro dele ou de Marica Língua de Veludo.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Cândido Sales, Bahia. Quadra de Dezembro

Lua Minguante de Verão, 2023.