Autor: Luiz Carlos Figueiredo
Nestes tempos modernos, onde o pessoal do mato está pra lá de civilizado (parafraseando Zé Laurentino), fico só analisando as mudanças que metamorfosearam a música brasileira. Hoje, bem diferente da conhecida pela minha geração. A música hoje está tão diferente que é composta até por programas de computadores, os ouvintes estão cada vez mais descartáveis e eu só imaginando para onde a nossa cultura musical está sendo tangida. Me recordo do intenso sacrifício que alguns artistas fizeram para popularizar a nossa arte cantada. Aqui em “Candin” o primeiro grande artista que existiu foi Dermeval Silva que fez um show ao vivo na Rádio Aparecida em São Paulo na década de 1970 transmitido para todo o Brasil através das ondas médias da famosa rádio paulista. Me lembro que famílias inteiras vestiram as melhores vestes para ouvirem Dermeval ao pé do rádio. Dé – como ainda hoje é conhecido por aqui – depois viria ser vocalista da Banda Sérgio Som – primeiro Conjunto musical da cidade de “Candin”!
O antigo locutor Geraldo Gomes afirmava através da sua RDC (Rádio Divulgadora da Cidade) que “Cândido Sales era um celeiro de artistas”! Além da dupla sertaneja Josivaldo e Esmeraldo que representou bravamente o nome deste torrão nos meados de 1970, se apresentando nos picadeiros dos circos itinerantes que armavam as suas tendas nos arredores do nosso município, dois outros artistas cândido-salenses se aventuraram no mundo do disco. Pedrinho de João dos Bolos e Erasmo Pontes (Duran), falecido recentemente (covid – 19). Sim. Estes “artistas novo-conquistenses”, mesmo com toda dificuldade, gravaram seus discos. Pedro gravou um compacto duplo e Erasmo um Long Play de oito faixas (quatro de cada lado) com cinco músicas de autoria do compositor Jaivan Acioly. Pedro até que conseguiu fazer um disquinho bonitinho com capa e tal, embora, a vendagem – mesmo representando a religião católica – tenha sido muito pequena o levando a um imenso prejuízo. Com Erasmo a coisa foi ainda pior. Depois de dormir na porta do estúdio no Rio de Janeiro por só ter levado a conta do chá para prensar a bolacha, o jovem artista gravou o disco, porém, não conseguiu a grana suficiente para fazer a capa. Teve que comercializar os vinis envolto em sacos de matéria plástica. Muitos compraram, e sequer, o ouviram. O prejuízo de Erasmo, também foi enorme. A influência musical que ainda hoje norteia o nosso torrão, vem dos grandes artistas que se apresentaram aqui na década de 1970, sempre cooptados pelo radialista Geraldo Gomes que além da citada RDC também era o dono do único cinema (com palco e auditório) que existia por estas paragens. Trio Nordestino, Anastácia, Dominguinhos, Luiz Gonzaga e Waldick Soriano fizeram apoteóticos shows por estas bandas. Tanto que o Rio Pardo Festival que aconteceu aqui por 11 anos ininterruptos foi um dos mais importantes da nossa região.
Entre os anos de 1989 e 1999 recebíamos todos os anos, artistas como Elomar, Dércio Marques, Xangay, Wilson Aragão, Carlos Moura, Rosemberg Oliveira, Ivânia Catarina, Mão Branca, Walter Lajes, Marta Moreno, Gutemberg Vieira, Nagib, Rubinho do Vale, Tau Brasil, Bilora, Edson Colares, Paulo Macedo, Gil Barros, Juá da Bahia, Geslaney, Papalo Monteiro, Dão Barros, Roger Ferraz, Beto do Vale, Jaivan Acioly, Zeca Bahia, Zé das Águas, Padre Valmir, Dinho Oliveira, Ito Moreno, Banda Cortina de Ferro, Diórgem Junior, Reginaldo Belo, Anselmo Siqueira, Grupo Trupizanga, Lucinho Cruz, Biló, Roberto Bah, Yure Colares, Carlos Gomes, Luiz Marcos, Marilene, Lassy, Adelvina, Coliomar, Waldeir Santos, Geraldo Sol e tantos outros. O cantor e compositor Rosemberg Oliveira que morou alguns anos por aqui influenciou bastante na realização deste evento. Além de “Elomariano”, Berg gostava muito do cantor Waldick Soriano. Era fã da originalidade do conterrâneo. Foi a partir da opinião de Berg, que esmiucei as minhas memórias afetivas, lembrando que Waldick fez dois ou três shows aqui em “Candin”. No último, ficou quase que uma semana vagando pela cidade, hospedado no Hotel Cinelândia que pertencia à família de Jones – o Delegado. Na época, uma das irmãs do delegado devia ter uns 18 anos de idade e era uma das moças mais lindas daqui. Não é que de uma hora para outra, o velho Waldick não arriou os quatro pneus pela garota? Pois é. O famoso artista se apaixonou e foi solenemente ignorado por ela. Ao perceber que o seu amor não era correspondido, o velho cantor entrou em parafuso e ficou uma semana se embriagado de bar em bar. Assim, era muito comum se vir nas mesas dos bares da vida (e dos bregas da época) o grande Waldick Soriano (após ter gravado dezenas de longs plays) completamente moqueado tocando violão ao lado do negro Areré (que era um exímio panderista), sentados na mesma mesa, solvendo dúzias de garrafas de cerveja e dezenas de doses de aguardente, tocando uma ou outra canção do extenso repertório do mais popular cantor do Brasil.
Areré era uma figura conhecidíssima por aqui, trabalhava como chapa, era extrovertido, brincalhão e um bebedor inveterado de canjebrina. O negro gostava mais de cachaça que recém-nascido de peito. Seu problema (já exaustivamente debatido aqui) era não gostar de tomar banho. Assim, bastava suar um pouquinho para subir uma catinga tão medonha que deixava urubu sem fôlego. Muitas vezes, mesmo ao lado do famoso Waldick, quando as pessoas queriam apreciar o vozeirão do baiano de Caetité, Areré aproveitava para fazer uma apresentação um pouco mais arrojada do seu pandeiro e quando transpirava, o fedorzão ficava insuportável e pouca gente se habilitava a assistir à apresentação até o final. Só se via gente correndo e tampando o nariz. Waldick, mamado, não estava nem aí, cantava até o cair da noite. Entre uma música e outra, sempre dedicava a próxima canção para a sua mais nova paixão!
– Esta aqui é pra ela… vocês sabem de quem estou falando… “Torturas de Amor”! – Falava soltando a sua voz inconfundível! Durante este período, religiosamente, logo após as pseudos-apresentações, o velho Waldick ficava tão embriagado que era literalmente arrastado por Areré até o quarto do hotel. Abraçava-se ao Negão e completamente trôpego era posto na cama de bota e tudo mais, onde dormia feito um anjo sonhando com a sua grande paixão.
Nesta época, Geraldo tinha alugado da família de Seu Etelvino o Cine Metrópole que ficava na Avenida Rio Branco, em frente ao Mercado Municipal. Quando seu Etelvino montou o novo cinema da cidade, além de aparelhos modernos de projeções, trouxe também a primeira tela côncava na nossa história. Tudo estaria bem se a telona não ocupasse dois terços do imenso palco, assim, quem quisesse fazer um ou outro show teria que ficar em um diminuto espaço de meio metro quadrado em uma altura de quase dois metros.
Ao ver Waldick dando sopa nas ruas de “Candin”, o empreendedor que existia em Geraldo Gomes fechou imediatamente uma apresentação do famoso cantor para o Cine Metrópole. Após uma semana de propaganda maciça, chegou o dia de o famoso cantor voltar a se apresentar em nossa cidade. Uma hora antes da apresentação, o cinema estava mais lotado que comício em beco estreito. Veio gente de toda região para ver o intérprete de “Eu Não Sou Cachorro Não!”. Na hora do show apareceram logo dois problemões para o pobre do Geraldo resolver. Um foi à negativa do Nego Areré em tomar banho… – Não tomo banho de jeito maneira! – Disse ele. – Prefiro deixar de tocar o meu pandeiro que tomar banho! – Como Waldick atrelava a apresentação dele à presença do exímio panderista, o jeito foi arrumar uma solução caseira. Fizeram uma mistura de perfume com álcool e desodorante e borrifaram fartamente no “subaco” do negão, disfarçando um pouco o mau cheiro, ao tempo em que o trajava com um terno branco, chapéu coco e uma gravata borboleta. Areré ficaria até apresentável se o terno não ficasse tão folgado que cabia dois dele dentro. O outro problema era um pouco maior. Waldick deu um calundu e falou que só começaria o show se a sua grande paixão se sentasse na primeira fila. O pior foi que a irmã de Jones se negava veementemente a comparecer à apresentação. Após muita negociação envolvendo Geraldo Gomes e as mais importantes “autoridades” da cidade, chegou o recado para que Waldick começasse o show que em seguida ela viria. Mesmo a contragosto, o cantor iniciou tomando logo uma talagada de pitu de quase meio litro. Após cantar com a sua inigualável voz o sucesso “Tortura de Amor”…
– “Hoje que a noite está calma e que minh’alma esperava por ti… Apareceste afinal, torturando este ser que te adora… volta, fica comigo só mais uma noite… Quero viver junto a ti… Volta meu amor fica comigo, não me desprezes a noite é nossa e o meu amor pertence a ti (…)” -,
Waldick levou a plateia ao delírio cantando o seu grande sucesso “Eu Não Sou Cachorro Não”. Música vai, música vem, um violonista Conquistense acompanhando o cantor, Areré suando igual cuscuz dentro do terno branco improvisado e Soriano de olho na cadeira vazia à sua frente e nada da garota chegar. Entre uma música e outra ele ia entornando as garrafas da aguardente Pitu. Após cantar a música “A Dama de Vermelho” com a voz meio embargada (Não se sabia ao certo se era o efeito da cachaça ou a desolação causada pela ausência da garota), o artista ameaçou parar o show se a sua “musa” não aparecesse. Mal acabou de falar e adentrou o cinema – abrindo passagem em meio à multidão – em um lindo vestido longo vermelho, a grande paixão local de Waldick Soriano. Cabelos longos e escovados, um decote fabuloso e um vestido que realçava divinamente as curvas da garota de 18 anos. – Abram alas! – Gritou o cantor no microfone. – Deixa ela passar, deixa a formosa dama passar… – Não faltaram babões para conduzir a garota até a cadeira vazia e em seguida todo o cinema se levantou para aplaudi-la de pé por mais de cinco minutos. – Aí está ela, minha gente! A grande paixão da minha vida! – Falou o cantor deixando a garota completamente ruborizada. Mas, mantendo a promessa, a garota se sentou, cruzou as pernas, sorriu e aproveitou para assistir ao show. Entusiasmado, Soriano bebeu logo o que restava na garrafa de aguardente, pediu Areré para abrir outra e após dedicar à música “Paixão de Um Homem” para a moça começou a cantar dançando em cima do pequeno palco:
– Amigo, por favor leve esta carta e entregue àquela ingrata e diga como estou. Com os olhos rasos d’água o coração cheio de mágoa, estou morrendo de amor… Amigo, eu queria estar presente para ver o que ela sente quando alguém fala em meu nome, eu não sei se ela me ama, eu só sei que ela maltrata o coração de um pobre homem(…)”
À medida que cantava Waldick só tinha olhos para a garota que retribuía a gentileza com generosos sorrisos. Lá pelas tantas, devidamente empolgado o cantor se esqueceu do tamanho do palco e ao dar um passo em falso, balançou pra lá e pra cá e prestes a despencar palco abaixo o nego Areré largou este pandeiro e após um voo digno dos melhores goleiros do mundo o agarrou em pleno ar. Caíram entrelaçados palco abaixo, tendo o cantor a felicidade de cair por cima do panderista. Entre mortos e feridos salvaram-se todos. Waldick não teve um arranhão, sequer, Areré ficou com pequenas escoriações (nada que alguns goles de pinga não resolvessem) o show foi paralisado sob intensos aplausos do público e Waldick se deliciou nos braços da garota que ao vê-lo cair foi a primeira pessoa a correr pra socorrê-lo. Depois deste dia, Areré passou a ser o mais famoso panderista da região, sendo rotulado como O HOMEM QUE TOCOU COM WALDICK SORIANO, passando a ser convidado para participar de shows em várias cidades do entorno de “Candin”. Ah, sim. A paixão incontrolável de Waldick pela garota durou menos de 24 horas, a partir daí cada um seguiu para seu lado.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e poeta
CSales, BA. Quadras de Outubro de 2022, Primavera, Lua Cheia.