Autor: Luiz Henrique Borges
Há três décadas, o credo neoliberal surgiu como a salvação da “lavoura” brasileira, consequência de uma economia que passou toda a década de 1980 e o início da seguinte claudicante e sofrendo com a aumento sem controle da inflação.
Na prática, os princípios defendidos pelo neoliberalismo não se concretizaram plenamente, uma vez que a elite econômica brasileira é avessa à concorrência e à abertura efetiva do mercado. No entanto, os grupos menos favorecidos se viram atropelados por discursos do tipo, “o sucesso só depende do seu esforço”. As vítimas das mazelas do Brasil passaram a ser os culpados pelas dificuldades vividas. Afirmo, de forma peremptória, que as desigualdades sociais no Brasil inviabilizam os discursos ditos meritocráticos que, na realidade, objetivam apenas a manter e justificar os privilégios de alguns sobre muitos.
Os espaços públicos, incluindo aqui os estádios de futebol, não ficaram alheios ao movimento neoliberal. Em nome da segurança, do conforto, do progresso e da civilidade, diversos locais antes compartilhados por pessoas menos favorecidas acabaram sendo “privatizados”, ou seja, ocupados pelos mais abonados. É o denominado processo de gentrificação.
Termo de nome estranho, quase um palavrão. Ele é derivado do inglês gentrification. Se retornarmos ao processo histórico que ficou conhecido como a Revolução Inglesa, ocorrida no século XVII, verificaremos que a gentry, era composta pela pequena nobreza e pelas famílias “gentis” de longa data que nunca obtiveram o direito oficial de conter um brasão. Eles eram os “bem-nascidos”.
Vamos retomar o processo de gentrificação dos espaços públicos. Inicialmente, ele ganhou uma conotação positiva, na medida em que propunha melhoramentos significativos em áreas urbanas que se encontravam abandonadas ou degradadas. No entanto, a partir da década de 80, o seu sentido se alterou drasticamente. O olhar não era apenas de melhorar a qualidade de vida dos moradores locais, mas particularmente, em virtude do crescimento urbano e a ganância do mercado imobiliário, em se apropriar de tais espaços expulsando a população carente. Agora, a área poderia ser reurbanizada e revendida para as classes médias ou para a elite, os “bem-nascidos”, contando, é claro, com investimentos públicos em infraestrutura.
Os estádios de futebol, como outros espaços públicos de lazer, sofreram o mesmo processo. Há algumas décadas nos orgulhávamos por possuir os maiores estádios do mundo. O Maracanã chegou a abrigar, na final da Copa de 50, praticamente 200 mil pessoas. Em seus primeiros 32 anos, em 25 oportunidades o Maracanã recebeu mais de 150 mil torcedores. A partir do início do século XXI vimos um movimento de encolhimento dos estádios que se iniciou na Europa e atravessou o Atlântico. Ele objetivou satisfazer as exigências de um modelo que privilegia as camadas sociais com melhor poder aquisitivo. Os setores populares, como a geral, deixaram de existir e os seus torcedores, os geraldinos, com o rádio de pilha colado ao ouvido e eternizado pelo saudoso Canal 100, desapareceram dos estádios.
O processo ganhou diversos nomes: “modernização”, “reconversão”, “renovação”, “adequação”, “reforma”. O processo foi tão radical que ele afetou o próprio campo lexical do futebol: os estádios foram rebatizados como arenas. Tal mudança é, sem dúvida, uma tentativa de apagamento da memória. Os estádios abrigavam as denominadas “classes perigosas” que se misturavam e poderiam conspurcar os “bem-nascidos”. As arenas, por sua vez, são locais de “civilidade” e de “iguais”. O que assistimos é a ressignificação, de forma silenciosa, dos discursos eugênicos, racistas e, lógico, excludentes.
Ouvi também, inclusive em programas esportivos, que a elitização do futebol trouxe como positividade o maior número de mulheres e de famílias aos jogos. Discurso novamente repleto de preconceito ao associar diretamente a pobreza com a violência. Se isto fosse verdade, os estádios e seus entornos deveriam ganhar o Nobel da Paz e seria totalmente desnecessária a parafernália tecnológica de vigilância presente nessas arenas da civilidade. Não foi o afastamento dos menos privilegiados que permitiu que mulheres e famílias fossem aos estádios, mas sim as mudanças muito mais profundas e comportamentais da sociedade brasileira que é, exceto pelos retrógrados, cada vez menos tolerante com o machismo, com a homofobia, com o racismo e com todos os tipos de autoritarismos.
É importante lembrar que nem todos os objetivos foram alcançados. O processo de “higienização” dos estádios almejava trocar a figura do “torcedor” – emocional, intenso, excitado e explosivo, pela do “consumidor”, melhor financeiramente, mais calmo e disposto a assistir o jogo como se estivesse em um espetáculo teatral. Enquanto o torcedor, de forma coletiva, grita, reclama, ameaça, xinga e sofre; o consumidor contempla, aplaude, fotografa e filma o acontecimento. Como frequentador de estádios desde a tenra idade, faço a seguinte analogia, a esperança dos reformadores era tirar de cena o torcedor que é parte da cultura do futebol brasileiro para dar lugar ao consumidor de Copa do Mundo com quem tive o desprazer de dividir o espaço em 2014 quando o Brasil apanhava da Holanda no Mané Garrincha. Para eles, o importante não era o futebol, o resultado do jogo, mas a festa que compartilhavam.
Se o novo ideal encontrou êxito durante a Copa do Mundo de 2014, no dia-a-dia, no futebol caseiro, isto não ocorreu. O torcedor não se transformou no “consumidor”, mas sim no cliente, com todas as suas premissas. Ele sempre tem razão e a sua compra, o ingresso para o jogo do seu time, precisa gerar o sentimento de satisfação imaginado. Seu comportamento é irascível quando os resultados não são os desejados.
Paulo Souza, que não fez um bom trabalho no Flamengo, foi a última vítima da impaciência crescente dos torcedores. Mas, para ficar apenas no rubro-negro carioca, se o treinador não entregar a satisfação imaginada, ou seja, os resultados de 2019, ele será massacrado. Não foi o que aconteceu com Domènec Torrent, Rogério Ceni e Renato Gaúcho? A sanha não atinge somente os treinadores, mas alcança rapidamente os atletas, inclusive os já consagrados, quando eles comentem alguma falha. Exemplifico com dois goleiros, Hugo do Flamengo, que foi massacrado por sua torcida e já ouço duras críticas ao goleiro botafoguense, Gatito Fernández, que já salvou o alvinegro tantas e tantas vezes. A paciência não faz parte dos atributos do torcedor-cliente, ele pagou e quer que o produto corresponda exatamente aos seus desejos. Ironicamente, talvez os tempos pandêmicos, com os estádios fechados, não tenham sido tão ruins assim para atletas, treinadores e até dirigentes.