TEJE PRESO
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TEJE PRESO

Autor:Luiz Carlos Figueiredo

Corria o ano de 1986, o povo da Bahia comemorava a vexatória derrota do “Carlismo” (Josaphat Marinho fora esmagado por Waldir Pires) por mais de um milhão e quinhentos mil votos. Os poucos cargos do estado que existiam em Cândido Sales (leia-se: quatro professores, um diretor de colégio, um vigia, um delegado e um carcereiro) eram disputados a ferro e fogo por várias “vertentes políticas”. Logo, o comando dos cargos estaduais foi passado para um grupo de jovens oposicionistas filiados ao PMDB (Partido vencedor) liderados pelo jovem e irrequieto “Bigode”. O xis da questão estava em encontrar o indivíduo certo para assumir o cargo de Delegado de polícia que, por motivos óbvios, (após a escandalosa derrota) se encontrava vago.
Nesta época, religiosamente tombavam caminhões conduzindo “cargas valiosas” na famosa “curva de João Puba”! Ninguém sabia que mistério era aquele. Todo santo mês aconteciam de três a quatro viradas. Adivinha o que aconteciam com as cargas? Exatamente. Eram roubadas e vendidas abertamente no comércio de “Candin”. Quem mais subtraia o produto roubado eram as pessoas incumbidas de zelar pela população. Chegou um momento que se banalizou tanto o roubo que os guardas municipais saíam tirando pedidos no comércio antes mesmo dos carros tombarem!
– Que dia vai virar um carro de jabá, Guarda Belo? – Perguntava o comerciante astuto! – Acho que daqui até o sábado de aleluia deve virar algum! – Respondia o guarda na maior tranquilidade à vista de todos. – Quando virar eu quero dois fardos de jabá, do bom, viu?
– Claro, claro! Vou até anotar! – E diante dos olhos perplexos da população tirava o pedido como se fosse à coisa mais normal do mundo. No dia de feira eram vendidos “tudo quando há”: Surubim salgado, brinquedos importados, calças curinga, bolas de futebol, bambas, congas, kichutes, pratos esmaltados, galinhas mal morridas (na época “as pobres coitadas” eram transportadas vivas e em caixas de madeira gritando durante toda a viagem).
Diante de tudo isto, o novo governo se viu obrigado a cobrar uma atitude mais drástica do jovem Bigode que saiu de porta em porta (dos correligionários) oferecendo o cargo oficial de Delegado para quem quisesse aceitar e para azar dele, ninguém queria. Mas, como encontrar a pessoa com o perfil ideal? Dentro do grupo de artistas que lhe dava suporte era humanamente impossível encontrar alguém com tais características! O grupo cultural ao qual Bigode pertencia era composto por um poeta sonolento, um cantor visionário, um músico revoltado, uma atriz decadente, uma bailarina perneta e o exótico diretor musical Jones, “executivo do Conjunto Musical Reflexo do Sol” que também exercia a função de “detetive particular” nas horas vagas.
Depois da negativa de praticamente todos os integrantes da ALA JOVEM SOCIAL, Jones foi nomeado. Em pouquíssimo tempo ficou nítido e notório o grau de empolgação do agora “delegado”, que sem o que fazer tocava terror nos músicos da sua própria Banda, a Reflexo do Sol. Quem chegava atrasado para os ensaios levava logo uma meia dúzia de cascudos e se questionasse a autoridade do delegado era imediatamente conduzido à prisão local. Austin (o guitarrista) foi o primeiro a se rebelar contra o que se constatou ser “abuso de autoridade”. Ao ser solto após tirar três dias de cadeia, a primeira coisa que fez foi pedir as suas contas e sair de fininho às vésperas de uma apresentação importante da Banda em uma cidade vizinha. Desesperado e sem alternativas, o jeito foi Jones cair nas “garras” de Cicuta, um excelente guitarrista da cidade que era famoso por ter o pavio curto. Todo mundo na cidade sabia que o músico não levava desaforo para casa e quando contrariado, abandonava literalmente o palco durante às apresentações. Depois de uma “lua de mel” de um mês e 15 dias, o músico não gostou de uma bronca que o delegado lhe dera durante um ensaio e assim que a banda se preparava para embarcar para um novo show confirmou o que todo mundo esperava, ou seja, estava definitivamente fora! Sem alternativas, Jones deu logo uma meia dúzia de tiros na direção do músico (que por sorte não acertou nenhum) e o levou preso à força, arrastando-o pelos cabelos pelas principais ruas da cidade. Após o sucedido, um pressionado Bigode foi aconselhado
e achou melhor encontrar um meio de diminuir um pouco o “entusiasmo” do “Detetive”. Assim, convocou imediatamente para subdelegado a figura mais estranha da cidade! Experiente na arte da “guerrilha” e extremamente comunicativo, o novo assessor de Jones era conhecido pela alcunha de Barba Negra!
Ah!… Barba era uma figura! Dizia ser ex-integrante das forças especiais do exército brasileiro (embora, muitos questionassem o fato) e para fazer jus ao nome usava uma barba que lhe batia no umbigo e uma cabeleira bem cuidada e encaracola, cujas pontas (quando molhadas) batiam-lhe na bunda. Andava pelas ruas de “Candin” vestindo uma calça de camuflagem, uma velha jaqueta do exército e um velho coturno furado ao tempo em que enchia o seu velho Ford 58 (literalmente caindo aos pedaços) de milho verde e melancias produzidas no seu meio alqueire de terra localizada às margens do Rio Pardo, e saía comercializando em plena feira livre aos gritos de “chega mais patroa”! Algum tempo depois era comum se ver pelas ruas da cidade uma dupla pra lá de inusitada. De um lado, com um olhar fogoso e um andar todo característico (cuja marca registrada eram os óculos escuros sobre a testa na vã tentativa de proteger a sua calvície do sol), Jones o “Detetive/delegado”. Do outro, com a sua velha jaqueta surrada e seu coturno furado, o velho Barba Negra, sempre trotando atrás do delegado Jones e, para não perder a prática, comercializando em tempo real os produtos produzidos na sua roça.
Quando acontecia um roubo, Barba Negra prendia o suspeito e após lhe aplicar uma pisa violenta, o infeliz abria o bico. Quando pegava um ou outro que mesmo diante do cacete se negava a falar, Barba Negra tinha um método infalível. Deixava o pobre em uma cela solitária, incomunicável por dois dias e quando o relógio da delegacia dava as 12 badaladas noturnas, eis que Barba Negra adentrava o escuro da cela, molhado e completamente nu, com a barba batendo no umbigo e a cabeleira a cobrir-lhe as costas! Ao dar de frente com aquela figura exótica rangendo os dentes e soltando grunhidos ininteligíveis, trazendo nas mãos um porrete enorme, não tinha “valente” que não abrisse o “berreiro”. Confessava até crimes que não tinha cometido! A vizinhança já estava até acostumada. Quando dava meia noite nos arredores da delegacia o que mais se ouviam eram gritos desesperados: – Eu falo, eu confesso! Sai daqui! Sai daqui! Fui eu, fui eu! – Como veem, ninguém, por mais valente ou teimoso que pudesse ser, tinha estômago para ver aquela criatura pelada no escuro da cela com aquele cacete na mão (sem trocadilhos, por favor).
E aí, a fama de Barba Negra foi crescendo e ofuscando o brilho de Jones que passou a ficar enciumado do sucesso meteórico de Barba. Assim, quando a “Reflexo do Sol” ia tocar em uma ou outra cidade e Jones ficava um ou dois dias fora, Barba se transformava em rei! Dava até entrevista para a Voz Independente. Nesta altura, os guardas Deus-Dará e Antônio Liso – finos ladrões de cargas – vendo a fonte dos roubos secar, elaboraram um plano para “minar” a dupla, jogando um contra o outro… – Olha seu Barba – dizia Deus-Dará -, não é fuxico não, mas, como é que um homem competente como o senhor que já foi até do exército pode aceitar ordens deste menino? O Delegado devia ser o senhor, não ele! – Barba Negra estufava o peito, esticava as canelas, dava um arroto mal arrotado e dizia com a cara mais limpa do mundo: – Esquenta a cabeça não, Deus-Dará! O que é do homem o bicho não come! Minha vez vai chegar, você vai ver! – Se Deus-Dará “injetava veneno” em Barba, cabia a Antônio Liso pilhar Jones, o “Detetive”! – Delegado, o senhor toma cuidado com este Barba Negra! – Alertava. – Por quê? – Indagava o Delegado. – Quando o Senhor não está aqui ele desmancha tudo o que o senhor faz! Solta até os presos! – Claro que tudo fazia parte de um plano para espalhar o caos entre os dois. Logo a situação ficou insustentável. Jones prendia, Barba Negra soltava e vice-versa. Assim, logo um não dirigia mais a palavra ao outro. Se um mandava o outro desfazia e os graves problemas vieram à tona. Quando acontecia um roubo, Barba Negra descobria os culpados e ficava quietinho. Quando Jones viajava com o seu “conjunto” ele efetuava a prisão e levava os “louros” sozinho. Nesta altura Barba já estava ficando mais famoso que o Jones.
Em uma destas viradas ficou fácil convencer Barba Negra – na ausência do delegado – a pegar parte da carga e vender em feiras da região. Ah!… Adivinhe quem foram fofocar para Jones? Os próprios. Deus-Dará e Antônio Liso. Como a dupla não estava se falando, Jones escreveu umas mal traçadas linhas em um bilhete para Barba Negra (entregue imediatamente por Deus-Dará) dando-lhe 24 horas para devolver a parte subtraída da carga (que já estava para lá de vendida em várias partes da região) sob pena de ser encarcerado pelo titular da pasta. Mal Deus-Dará entregara o bilhete e Antônio Liso já se encontrava “fazendo a cabeça” do Detetive:
– Ele falou que quer ver se o senhor é homem mesmo! Está lhe esperando lá na beira da pista para resolver esta contenda! – O que?!!! – Bufou o delegado se armando completamente de seus dois revólveres canos longos, seu chapéu de texano e sua inseparável estrela brilhante que lhe decorava o peito!
– Vou meter aquele xibungo na cadeia é agora! – Falou e antes mesmo de sair apressado ainda teve tempo de dar uma boa escovada nas suas botas! Saiu marchando a passos largos tendo Antônio Liso a lhe acompanhar com uma enorme cara de satisfação só esperando ver o circo pegar fogo! Perto da pista, Barba Negra que se encontrava acompanhado de Deus-Dará enxergou ao longe o gingado indefectível do Delegado/Detetive Jones caminhando em sua direção com cara de poucos amigos. – Lá vem ele, lá vem ele, lá vem ele! – gritava excitado Deus-Dará sem sequer disfarçar a satisfação! Nesta altura, sabe Deus como, mais da metade da cidade já sabia do sucedido se aglomerando em cima do corte, disputando um lugar na base da cotovelada. Uns suavam, outros estalavam os dedos e Barba Negra na dele. Nesta altura, Deus-Dará e Antônio Liso procuram sair da linha de fogo e ficaram só esperando a tragédia. Jones veio se aproximando, se aproximando, se aproximando… chegou bem diante de Barba Negra, tirou os seus dois revólveres de canos logos e gritou bem alto para que todos ouvissem: – Teje Preso Barba! – Com a maior calma Barba Negra levantou a sua camisa, tirou uma antiga pistola de dois canos e gritou: – Teje preso também delegado!
Sabe o que aconteceu? Absolutamente nada, ficaram apontando os seus revólveres um para o outro por uns cinco minutos até sair cada um para o seu lado. No dia seguinte, os dois estavam sumariamente exonerados!
Fim
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta.
CSALES, BA. Quadra de Junho de 2022. Outono Lua Cheia.