Autor: Luiz Henrique Borges
As lamentáveis cenas de racismo provenientes da torcida do River Plate, em Buenos Aires, quando a equipe argentina enfrentou o Fluminense nos faz, novamente, gastar mais um pouco de tinta sobre o assunto. Me pergunto como um país decadente, empobrecido e mergulhado há mais de duas décadas em uma crise econômica infindável, repleto de imigrantes que, de uma forma geral, deixaram suas terras de origem em busca de uma vida um pouco mais digna e que faz parte do espoliado continente sul-americano, ao invés de tecer laços de comunidade com seus vizinhos continentais, prefere se achar um europeu ridículo, apegado em teorias biológicas ultrapassadas, ultraconservador e preconceituoso.
Talvez, o rancor da decadência econômica seja um elemento de frustração para os argentinos que foram, há um século, uma das dez maiores economias do mundo. No entanto, as escolhas que atendiam aos interesses de sua elite, particularmente a agropecuária, que manteve a produção do país atrelada à exportação de produtos primários, como a carne e o trigo, acrescido da desindustrialização promovida pela sanguinária ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983, transformaram o promissor país em uma força econômica de importância muito reduzida no cenário mundial, com um PIB, inclusive, inferior ao do Estado de São Paulo.
É preciso, no entanto, evitar as generalizações, que é mãe dos equívocos. Estive diversas vezes em Buenos e Aires e é possível perceber que grande parte dos argentinos nos trata com respeito e, no futebol, com admiração. Além disso, sejamos justos, há diversos brasileiros que também adotam posições e discursos racistas e preconceituosos. A grande diferença entre nós e eles é que por aqui, o racismo passou a ser criminalizado e por lá isso não ocorre. Em nosso vizinho há uma grande confusão entre xenofobia e racismo.
O senso comum, consolidado ao longo de décadas, é de que não há pretos na Argentina. O antropólogo Javier Bundio afirma que, como parte do mito fundador de seu país, há uma rejeição ao latino-americano e ao afro, como se a população argentina tivesse sido formada apenas pelos europeus, especialmente pelos imigrantes que ali desembarcaram na segunda metade do século XIX. A discussão sobre o racismo na Argentina emperra exatamente na ideia de que não há pretos no país ou que os existentes não são argentinos. No entanto, 5% da população, ou seja 2 milhões de pessoas, são pretas e argentinas.
A fala do professor e antropólogo José Garriga Zucal é esclarecedora: “O ponto mais interessante e necessário é que os argentinos não se consideram racistas. Não tem uma reflexão profunda sobre o racismo. Só um punhado de intelectuais, de políticos progressistas e cientistas sociais colocam essa questão na mesa. Isso é central para entender a Argentina”. Tal percepção explica porque a visão de boa parte dos argentinos em relação aos atos racistas praticados por torcedores de seu país, que se multiplicam ao longo dos anos, é entendida como uma brincadeira comum no futebol e utilizada para provocar o adversário.
O posicionamento da polícia argentina, no intervalo do jogo, de ir ao vestiário do Fluminense e solicitar que o controverso e, para mim, antipático Felipe Melo não imitasse uma galinha para evitar uma confusão com os torcedores locais é sintomático do descaso com que o racismo é tratado em nosso vizinho. Cabe aqui um esclarecimento, o River Plate passou a ser chamado de “galinha” pelos seus rivais após a final da Libertadores da América de 1966 quando, apesar de ter um timaço e ser o grande favorito, foi derrotado pelo Peñarol. No jogo seguinte, fora de casa, um torcedor do Banfield, reproduzindo o emblemático uniforme do rival, soltou no gramado uma galinha branca com uma faixa vermelha. Para desespero dos torcedores do River, o apelido ganhou fama nacional e o idealizador da ideia, com medo de ser morto pelos torcedores “Gallinas”, jamais apareceu publicamente.
Adentramos, neste momento, no aspecto que realmente pode alterar as manifestações racistas em todo o mundo: as punições. A posição aparentemente mais cidadã que vivenciamos no Brasil não é resultado apenas das ações de conscientização social, que obviamente geram mudanças, em um ritmo lento, mas principalmente das punições. No Brasil, o racismo é crime. Quem sabe, no futuro, o processo educativo não seja capaz de extinguir as falsas e arraigadas ideias de superioridade racial e transformem as punições, hoje necessárias, em histórias dos livros do curso de Direito?
Atualmente, as penalidades praticadas pela Conmebol aos clubes são apenas financeiras e muito leves. Caso os times envolvidos sejam realmente punidos, o valor da multa representa apenas 1% do que a equipe arrecadará na primeira fase da Libertadores da América. A instituição que conduz o futebol sul-americano, formada nos seus dois primeiros escalões pela elite branca sul-americana, afirma ter uma postura antirracista e que realiza campanhas institucionais com os clubes contra o racismo ou qualquer outro tipo de discriminação. Atitudes modestas contra um crime hediondo.
Faixas, cartazes e discursos contra o racismo são bem-vindos e devem fazer parte do processo educacional e de conscientização dos torcedores. Mas, dada a recorrência e até o aumento de tais manifestações no futebol sul-americano e mundial, é preciso adotar posições mais duras, caso contrário as sociedades envolvidas continuarão tratando o assunto com descaso e até como algo folclórico. A Conmebol precisa ser pressionada pelos seus patrocinadores, pelos clubes brasileiros e pela CBF para que adote um regulamento em que o torcedor entenda que as suas atitudes podem prejudicar profundamente o seu time do coração.
Como as nossas leis não podem ser aplicadas no exterior, é preciso que as entidades que dirigem o futebol passem a punir com muito rigor os clubes em que os seus torcedores se manifestem de forma racista. A violência nos estádios é combatida com dureza e o racismo é mais uma espécie de violência. Defendo que os clubes que tenham seus torcedores flagrados em atitudes racistas ou contra outras minorias, que eles percam os 3 pontos da partida em que os atos se verifiquem e o mando de campo até o fim daquela competição. Será que, com punições muito duras, os torcedores continuarão achando que tais tipos de manifestações são apenas uma espécie de brincadeira?
Eu, sinceramente, não acredito que a Conmebol tome alguma atitude para coibir e punir o racismo no futebol sul-americano. Dessa forma, lanço a proposta de que as torcidas brasileiras que enfrentarem o River Plate cacarejem como galinhas os 90 minutos do jogo. É muito pouco, eu sei, contra a barbaridade do racismo, mas eu lembro que a galinha é, dentre outras representações, símbolo da covardia e os covardes precisam ser tratados como tais.