Atendendo à pedidos, mais uma vez contaremos a história de Goiás, o famoso “Agenor”, um dos ídolos deste torrão. Goiás, o doido, passou décadas tocando terror em 9 de cada 10 garotos que viviam aqui entre os anos 1960 à meados de 2000. Sabe Deus como, este moço deu por aqui e acabou virando um “patrimônio histórico”. Em 1964 (em pleno Golpe Militar) Goiás já havia dado as caras. Para os mais novos, explico: Goiás era um caboclo que todos tratavam como doido, metia medo em todo mundo, embora, tirando um problema ou outro, não parecia ser tão maluco assim. Vivia muito bem tratado, graças ao seu carisma.
Neste tempo existia aqui uma renca de abilolados, embora, os mais famosos fossem Goiás e Maria Gasolina, uma garota de mais ou menos 15 anos, magérrima, cujos cabelos “sarará-miolo” eram cortados bem baixinho, a fazendo muitas vezes ser confundida com um homem. Maria tinha o estranho hábito de andar o tempo todo com a sua latinha de benzocreol cheia até os beiços de gasolina, que ela cheirava com um inenarrável prazer. Não comia, nem bebia, cheirava o tempo todo. Tanto que as suas ventas ficavam em carne viva. Sempre que um carro parava para abastecer, Maria se encostava no bombeiro, que, discretamente enchia sua latinha. O dono do veículo – mesmo sem saber – era quem arcava com o prejuízo. Um belo dia, um frentista recém-contratado se negou a participar do conluio e Maria Gasolina se retou, deu um show tão medonho que o funcionário foi demitido: – Quem você pensa que é, seu arrombado? Tá pensando o que? Que eu abasteço de graça? Eu tenho grana, posso pagar o meu abastecimento! – Xingou tanto o infeliz, que Cassiano – dono do posto – botou o infeliz no olho da rua.
Já com Goiás, a coisa era diferente, apesar de assombrar quase todos os meninos da cidade, os moradores até que gostava dele. Como ele veio dar por estas bandas era uma incógnita. O que se sabia era que qualquer história que se contasse, ele assumia como sua. Rezava a lenda que ele foi o primeiro homem a ser castrado pelo coronel “Candin” – o Capador! Se lhe perguntassem, inocentemente ele confirmava: – Foi eu sim. Eu era da “ganga” dele. – Confirmava com a boca murcha. Goiás andava todo sujo, maltrapilho, rasgado, fedendo que não tinha cristão que aguentasse. Disseminava o “terror” no meio da meninada e ainda andava armado do seu velho “badoque”. Se parecia muito com um índio Pataxó, baixo e forte, feições atarracadas, feio de doer e ainda usava uma barbicha que lhe originara o apelido de “bode”. No final da vida, estava Gordo que parecia um major. Ele adorava ficar na beira do rio – porém, não tinha santo que o fizesse entrar na água. Detestava tomar banho – escolhendo criteriosamente as pedras polidas utilizadas no seu estilingue. Tinha uma pontaria de meter medo. Acertava até em unha de “Caga Sebo” há 100 metros de distância. Quem conhece um “Caga Sebo” sabe que o bicho é “pirraxotinho”, deste tamanhinho e nunca fica quieto, é o tempo todo pulando irritantemente de um galho ao outro. Pois Goiás acertava a unhinha do bicho com uma precisão cirúrgica. Quando voltava do rio parecia até um cangaceiro com dois bornais (entupidos de pedras polidas) atravessados no peito. Comia o que lhe davam e dormia onde desse. Ficava meses sem tomar banho e quando chegava perto das pessoas o fedor era insuportável. Tinha gente que zoava Goiás, dizendo que quando ele entrava no rio para pegar as pedras, os peixes pulavam fora da água para cuspir, o doido saía do sério, xingava até a quarta geração de quem inventavam estas histórias.
A paixão de Goiás era uma Dama-da-Noite chamada Leda. Como esta moça gostava de tomar umas canjebrinas, certa feita, pra lá de “medicada” e com uma imensa dor de cotovelo por ter sido trocada por uma concorrente mais nova, bastou encontrar Goiás para enchê-lo de beijos. Para Leda foi uma cachaçada, para Goiás, foi o amor de toda uma vida. Ficou anos assediando a galega que ria da sua cara. – Leda é meu amor, vou casar com ela. Quem mexer com Leda eu dou uma pedrada! – Dizia com a boca murcha. No final da vida, Goiás – morreu há algum tempo – encontrou uma “alma piedosa” que conseguiu aposentá-lo e com o dinheiro da sua aposentadoria o alimentava, o vestia e o higienizava. Goiás morreu melhor do que viveu.
Agora, o calcanhar de Aquiles do nosso “doido de estimação” era o apelido… Não sei quem foi que disse que “menino é coisa do cão”, mas, mesmo com todo o terror que Goiás tocava na época, a meninada se reunia em meio à rodagem para zoar o doido. Quando Goiás ouvia: – Olha o Bode, Méééééééééé!… – Perdia completamente a estribeira, saía da zona de conforto, ficava fulo da vida e, derramava uma “chuva de pedras” em direção aos garotos. Se os relentos saiam ilesos, a cidade ficava em polvorosa… para-brisas quebrados, portas “mochiladas”, vidraças estilhaçadas, cabeças furadas e cacos pra todo lado. No dia seguinte tudo voltava ao normal. Goiás tinha livre trânsito nos restaurantes e lanchonetes da cidade, acordava cedo e ia direto ao Posto de Zé do Óculos:
– Café, Goiás quer café! – Dizia estendendo um velho copo esmaltado. Assim que recebia o café, ele emendava: – Pão, Goiás quer pão! – Adorava uma Coca-Cola. Se aproximava da mesa e pedia baixinho com a sua indefectível boca murcha: – Paga uma coca aí, véi! – Ninguém lhe negava e ele bebia com um inenarrável prazer! Quando tudo parecia estar em ordem, o grito ecoava: – Pega o bode, Béééééé! Pega o “Bodim”, Méééééé! – E a história se repetia. A rua virava uma praça de guerra com Goiás correndo feito um maluco, derramando a “chuva de pedras”, cujo resultado, era sempre o mesmo: carros avariados, vidros quebrados, gente gritando, muita correria… Mesmo no auge da “infezação” se alguém o chamasse de amigo, o ódio era imediatamente dissipado. Os relentos, perceberam a situação e usavam contra Goiás. – Olha o bode, Béééééé! – Quando Goiás partia pra cima os culpados falavam: – Eles estão ali amigo! Vai por ali e pega eles! – E Goiás, abobalhado, seguia o caminho indicado e não achava absolutamente nada. Quando voltava, era abraçado e nem sequer desconfiava que os atentados eram os mesmos.
Nesta época, o mais correto dos “relentos” era “Julim de Dona Mosquita”. Apesar de veterano, era tímido de meter medo. Lavava carros, engraxava tapetes, lubrificava cruzetas sem conseguir chamar a atenção de ninguém. Quando Goiás era “atentado”, Julim era o primeiro a se esconder, embora, fosse incapaz de bulir com o Doido. No seu íntimo imagina que se algum dia ficasse em apuros com o abilolado, bastava chamá-lo de amigo e tudo se resolveria. E assim, vida que segue…
Trabalhar na rua, definitivamente, não era para amadores. A “trinca” que mandava na rodagem era “barra-pesada”. Coutinho, Pingo e Natal, roubavam, intimidavam e se necessário, não mudavam de roupas para mandar algum desafeto para os “zinfernos”. Todo mundo tinha medo destes caras. João Delegado e a Guarda Municipal, fingia que eles, sequer, existissem. Só sobreviveria na rua quem cumprissem rigorosamente as ordens destes malandros. Eles dominavam tudo e todos e Goiás era o saco de pancada favorito de Coutinho. Quando o malandro amanhecia mal-humorado tomava à força o bodoque de Goiás e moía o pobre doido no pau. Goiás chorava igual uma criança. Nem parecia ser o famoso “tocador” de terror da meninada.
Um belo dia, lá estava à relentagem contando piadas e Julim de Dona Mosquita, no meio. Piada vai e piada vem, eis que surge Goiás levando na cacunda seus embornais de pedrinhas polidas. Bastou ver o doido para o grito ecoar: – Pega o bode, Béééééé!
Foi ouvir e Goiás sair completamente do prumo. Jogou os embornais no chão e sacou imediatamente o seu “badoque” e só se viu a molecada dar no pé. Julim chegou até a correr, porém, com a consciência tranquila, resolveu voltar calmamente à “cena do crime”, afinal de contas, era só abraçar Goiás, chamá-lo de amigo e tudo se resolveria… O tempo pareceu congelar… Escondido na esquina Julim esperou, esperou, esperou e nada de Goiás… o script todinho estava na sua cabeça, porém, por ironia do destino, Goiás demorou um pouquinho para aparecer e por curiosidade ele esticou o pescoço pra dar uma olhadinha. Quando olhou no outro lado do muro, viu Goiás vir desembestado com a calça caindo e tropeçando nas próprias pernas, chorando de raiva… Ao ver a cena, o agora não tão controlado Julim, entrou em pânico e tentou correr… Pra quê? Na sua frente tinha uma casa com a porta aberta e diante de todo o medo a que fora acometido, o garoto “passou sebo nas canelas” e atravessou a rua com uma velocidade digna de Usain Bolt. Quando faltavam alguns metros para atingir o seu objetivo, ele encarnou João do Pulo e saltou com todas as suas forças tentando entrar pela única porta aberta que encontrara pela frente… Neste momento, Goiás retesou tranquilamente o seu bodoque e com a mesma precisão que acertava as canelas dos “caga-sebinhos”, acertou uma bodocada bem no talus (aquele ossinho do tornozelo que dói que é uma beleza) de Julim de Dona Mosquita. Gente, só quem já jogou bola sabe a dor de quando alguém acerta uma bicuda naquele ossinho. Agora imagine uma pedrada, dada com precisão por um bodoque de estimação como o de Goiás?!! Rá… Quando Julim pulou achando que estaria salvo caiu dentro na casa de Dona “Vicença”, berrando que nem um bode (perdão pelo trocadilho), segurando seu pé com sangue espirrando para tudo que era lado, a dona da casa que na hora estava remendando uma camisola, ficou completamente apalermada:
– O foi isso menino? – O que foi? Duro foi estancar o sangue e conter os gritos de dor, com Julim se contorcendo todo no piso da casa, e ainda tendo que aguentar Goiás debruçado na janela, sorrindo com a sua boca banguela. Daquele dia em diante, toda vez que Julim enxergava Goiás mesmo que de longe, imediatamente mudava de rua, passava bem longe do abilolado.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Outubro de 2023.
Minguante de Primavera.