PRETO DO ACARAJÉ
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PRETO DO ACARAJÉ

O sonho de dez em cada dez moleques de rua do Brasil sempre foi ser jogador de futebol… a várzea sempre esteve aí para confirmar o que digo. Em Nova Conquista, não podia ser diferente. E isso não é uma coisa de agora não, vem desde a década de 1970, lá no México, quando a Seleção de Pelé (Tostão, Jairzinho e Rivelino) encantou o mundo. A transmissão chegava pelas ondas médias das rádios AM e até em alguns televisores à tubo que só privilegiados podiam ter. Após esta conquista, qualquer torrão passou a ter o seu campinho de terra batida com a molecada jogando pelada e gritando: – Gol de Pelé! – Geralmente com bola de meia (ou bola de gude). Por aqui até a “rodagem” BR -116 servia de campo, embora tivéssemos que ficar com um olho na bola, outro nos carros e esfolando os pés na quentura do pinche derretido.

Antes de Velho Barbeiro e (do falecido) Chicão militarem no nosso futebol, o técnico mais famoso destas bandas foi “Preto do Acarajé”. Seu Preto – como era chamado – gostava tanto de apitar “futibó” (como dizia ele) que comprava logo uma renca de apitos profissionais e penduravam todos de uma só vez no pescoço saindo apitando a torto e a direito. O negão dava o treino todo paramentado parecendo até um juiz de verdade. Meiões e calção da cor preta para combinar com o kichute seminovo – amarrados até o meio da canela -, uma camisa de mangas e golas longas da mesma cor, o andar característico e lá ia ele, todo sorridente… quanto mais duro era o treino, mais o ex-morador do sul da Bahia se divertia. Gostava de ver sair faíscas das disputas.

Preto era um negrinho baixinho, “magrilim” que dava até dó, andava todo saltitante, usando sempre a mesma calça de linho branco amarrada com currião de couro cru bem no meio da barriga. Dentuço, pescoçudo, conversadorzinho feito o diabo, diplomado na arte do candomblé, mentiroso igual um curupira, e nas horas vagas botava o seu tabuleiro no centro da cidade e fazia o acarajé mais gostoso que existia neste torrão. Vivia disso. Duas ou três vezes por semana, lá estava ele expondo categoricamente o seu famoso tabuleiro em frente ao hotel de seu Lindolfo. Chegava, estendia as toalhas brancas, fazia algumas mungangas, fritava meia dúzia de pequenos acarajezinhos (que segundo ele próprio era dirigido) para o santo e quando acendia o fogareiro de carvão – feito a partir de uma lata de querosene – e começava a fritar os quitutes, o cheiro tomava conta da Rio-Bahia deixando o povo completamente ensandecido. Formavam até filas para comer os bolinhos de feijão fritos no dendê.

Como em terra de cego quem tem um olho só é rei, bastou o negro chegar aqui todo paramentado para que de uma hora para outra virasse um expert na arte do esporte Beltrão. O caboclo – da grossura de um palito – tinha uma voz grave e negra de meter medo, parecia aqueles cantores de blues que existem no Mississipi. A voz do “magrilim” era tão grossa que dava a impressão dele ter engolido um mangangá. O problema era quando ele cismava de falar difícil, aí, menino, só Deus. O linguajar de Preto era de rachar o rabo do cachorro:

– Meus “atléticos” … – se referia aos jogadores com a sua voz de trovão. – “Amenhã pricisamo fazê um sinhô jogo de futibó! Rá, rá, rá… Vamo mostrá prus branquelo quem é que manda aqui no nosso pulero, vamo descê a ripa, cabiciá inté bola rastera” – Falava a linguagem dos boleiros do Sul da Bahia. Segundo ele, foi treinador de uma dúzia de times por aquelas bandas. Ser do Sul da Bahia o credenciava a treinar qualquer time daqui. O povo era tão fã que ele dava autógrafo e tirava fotografias. Escalava o time usando um megafone de lata pra todo mundo tomar conhecimento:

– Gersôn vai ser o “centrofó”. Zezé o center ralf e Carlim D’isté vai “sê” o “quartibeque” … Zobinha vai jogar de guarda-rede. Vamo jogá cum raça… É pra descê os “cacete” e não dexá passá ninguém. “Beque qui se preza passa a bola mais o atlético fica” … “Iantes” do jogo é pra todo mundo vim de banho “tumado e cabelo pintiado pru mode tirá” a xilografia. Já inté falei cum “Nozim Retratista” e ele vai está aqui bem na hora de nós intrá em campo! Outra coisa, “istô sabeno” que a partida de “amenhã” vai tê “inté sula”, assim, quem num “subé assentá o nome direitim, mió dá uma trenada in casa pro mode num ficá avexado” na hora de “pegá” na caneta!

Este era Preto do Acarajé. “Sula”, na linguagem dele era a súmula, xilografia, era o famoso retrato de monóculo que todos os times tiravam ao adentrar o campo. No mais, técnica, tática, esquema, tudo isso passava longe do treinador. A única coisa que não podia faltar em hipótese alguma era a vontade de vencer. Quando o time se preparava para entrar em campo ele dizia: – Boa Sorte meus atléticos, boa peleja prucêis tudim!

Nesta época nos treinos existia uma rixa declarada entre Pio, Toninho (o irmão falecido de Badim) e o locutor que vos fala… todos tentando marcar Osvaldo Badim que jogava um futebol dos diabos. Éramos zagueiros (Toninho, lateral direito) e como Badim adorava vir driblando pelo lado esquerdo, a ordem de Pio (xerifão da zaga) era descer a ripa. O negão driblava muito e apanhava tanto que parecia até mala de mascate. Saía do treino mais esfolado que filhote de caga-sebo. Levava todo tipo de botinadas e não reclamava de nada, caía, se levantava, limpava a poeira e sorria. O nego Badim adorava rir das porradas que levava. Do alto dos seus 16 anos, ele dominava a bola no peito com uma invejável categoria, botava no chão e fazia fila, driblava até a própria sombra, quando chegava na entrada da área Pompilo autorizava e quem estivesse mais perto descia a ripa, era tanta pancada que o negão subia três metros de altura e se esborrachava no chão. Já se levantava todo ralado, limpando a poeira e rindo da cara da gente.

Alas que um belo dia, lá estava Seu Preto apitando um treino duríssimo, bola aqui, bola ali, bola acolá, Badim agoniado por não estar conseguindo driblar, a zagueirada descendo a pêa, eis que Zé Preto cruza uma bola na área e antes de chegar em Badim Pompilo meteu a bicuda e não foi que acertou um “tirambaço” bem na cara de Preto do Acarajé? O negão corria sempre com o apito na boca, foi Pio chutar e a bola explodir na boca do negão indo pedaço de apito pra tudo que foi lado.  Foi a bola bater e o apito se esfarelar. Ao levar a bolada na cara o negrinho balançou igual aqueles lutadores de boxes quando recebem um direto no queixo e após dar meia dúzia de passos trôpegos e desordenados desabou pesadamente de cara no chão levantando uma nuvem de poeira. Neste dia, Pio o fez engolir literalmente o apito… Lembra daquela antiga história do juiz engolir o apito? A violência foi tanta que pedaços do apito entraram gengivas adentro e até na língua do boleiro. Diante da cena corremos apavorados para socorrer o infeliz, quando olhei pra Pio ele estava rolando de rir. Os primeiros que tentaram socorrê-lo foi eu e Miranda (Pai de Wendell), imaginávamos ter sido grave… Chegamos perto e quando erguemos seu Preto os beiços do nego estavam mais inchados que picadas de marimbondo, inchados e lambuzados de terra. Dobraram de tamanho, pareciam até um “mói de couve preta”. Os beiços do negão que já eram grossos tomaram metade do rosto e um filete de sangue fluía boca afora.

– O senhor está bem, seu Preto? Está doendo? Fala com a gente aqui, fala. – Com muito cuidados conseguimos fazer que ele se sentasse no campo. A voz demorou a sair. Algumas gotas de sangue pingando da boca e ele ali, meio grogue… depois de alguns minutos começou a retirar pedaços do apito do meio dos dentes, da língua, de dentro das gengivas…

– O que houve? Quem foi que me atropelou? Caiu o que na minha cabeça? – Indagava Preto com a voz embargada, os beiços inchados e Pio rachando de rir. – Ele está rindo de que? Que qui ouve? – Perguntava o juiz completamente aéreo. – Está rindo de outra coisa, Seu Preto! –  Respondíamos. O boleiro ficou semanas com o gosto do apito na boca e com um inchaço considerável nos beiços, porém, depois de algumas garrafadas e unguentos tudo ficou bem.

Além do futebol, o negão tinha duas outras paixões. Uma era a pinga! Quando este caboclo tomava as suas canjebrinas ficava mais alegre que mosquito em pereba. Falava alto, jogava capoeira e dançava samba de roda no meio da rua pra todo mundo ver. Sóbrio já era conversador, imagina aí bêbado? Era pior que a “Negra do Leite”. A sua outra paixão era o candomblé. O Negão era um Ogã de lascar, recebia uma renca de caboclos e era um dos principais filhos de santo de Dona Edite, na época, a mais famosa Mãe de Santo daqui (ainda não existia Mãe da Ilha – que ficaria ainda mais famosa). Mãe Edite tinha o caramanchão no início da Rua 7 de Setembro. Todo sábado, religiosamente, acontecia seu candomblé. Seu Preto era uma das atrações, recebendo Exu, Preto Velho e Pomba Gira, além de tocar com maestria seu atabaque. O candomblé de Dona Edite era frequentado pela alta sociedade local (leia-se: Prefeito, Vereadores, Comerciantes, as mais ricas senhoras da comunidade e até Gerson Coletor). A Mãe de Santo conduzia o evento com um invejável profissionalismo, tratava todo mundo com o devido respeito e tinha até uma espécie de área Vip para os “diferenciados sociais”.

A grande atração do seu candomblé (além de Preto, óbvio) era a sua filha Damiana, uma galega bonita de doer as vistas. Na época, mulher galega era muito difícil dar por estas bandas, Damiana era uma exceção. Além de linda, tinham os cabelos encaracolados, os olhos azuis e ancas que pareciam serem molas, quando a menina do alto dos seus 16 anos se irradiava e adentrava o salão mexendo sensualmente o seu derriére, escondido por uma longa e sensual saia, delicadamente conduzido pelos seus lindos pés descalços, ninguém se aguentava quieto. A “homaiada” formava uma roda em torno da galeguinha e a aplaudia de pé. Até as senhoras casadas queriam devorar a moça.

Damiana era o “sonho de consumo” de todos, homens e mulheres. Diariamente ela já acordava recebendo flores, água de cheiro, peças de fazenda coloridas e até cestas básicas dadas com zelo pelos admiradores. Quando recebia a Pomba Gira durante o candomblé, todo mundo corria para receber os passes, trocavam até empurrões. Acontece, que ela não estava nem aí para os pretendentes, entrava, dançava, recebia os guias e saía deixando todo mundo babando. Eis que um belo dia no auge do desespero e cansada de tanto assédio, Damiana deu de receber um Exu e diante de todos, fez a revelação que deixou a comunidade boquiaberta:

– “Simifi, simifi, suncêis istão gastano dinheiro atôa” dando presente pra galega. Damiana é “cumprumetida”. Ela vai se matrimoniar com o nego Preto do Acarajé. “Nascero um pru ôto”. Exu dá a bênção… Exu “falô, tá dizido”! Que ninguém se atreva a “contrariá” Exu.  – Falou, rodopiou e evaporou… O restante da noite foi uma comoção. Quem se atreveria a contrariar a entidade mais forte do candomblé? No dia seguinte, logo cedinho, para desespero da renca de pretendentes, lá estavam na porta da Igreja, Preto do Acarajé e Damiana se matrimoniando com a bênção de Mãe Edite.

O que ninguém conseguiu explicar foi o porquê de o negão já estar com tudo preparado, até o terno novinho em folha feito sob medida. Será que Exu já havia antecipado pra ele? Sabe Deus!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales – BA. Outono, Crescente de maio 2024.