Quem tem o hábito de ler estas maus traçadas linhas, está careca de saber que geralmente evito narrar as tragédias sucedidas no nosso município. Esta, infelizmente, tenho que narrar, já que foi um fato importante e muita gente ainda se lembra deste sucedido. No início dos anos 1970 o vaqueiro Pedro foi o mais importante guarda do nosso município e durante muito tempo desenvolveu a função de homem de confiança do relojoeiro João Delegado. Nesta época os “doutores delegados” eram indicados apenas por serem amigos do Prefeito, ou amigos dos amigos dos detentores do poder. Várias destas “autoridades” chamavam atenção da população pelo descaso, omissão, barbárie, arrogância, truculência e incompetência. Tá pensando que ser delegado na época era pouca coisa? Estes senhores eram chamados de “Delegados Calças-Curtas” e não estavam nem aí, o importante era saírem ostentando diariamente a prestigiada função. O primeiro delegado da nossa história foi João Francisco, conhecido pela alcunha de João Dengoso. Fundou este torrão ao lado de seu Nena (José Graça Ferraz), avô do poeta Billy Roger da Viola. João Dengoso ficou famoso por se fazer respeitar descendo literalmente a pêa nos “foras da lei”. Logo depois, uma renca de “delegados” ocuparam este cargo, entre os quais o sargento Gutemberg, o sargento Ibiapino, o sargento Joselito Rocha, o cabo Sercundino, o comerciante Sebastião Leite (Pai de Zé e Juarez Leite), o boêmio Carlos Antônio, o radialista Wilson Matos o agente musical Edmilson Nunes e o relojoeiro João Delegado. Este último, por exemplo, chamava à atenção por ser extremamente folclórico. Era um sujeito diferente, meio trôpego, estatura média, meio negro e tinha como principal característica ser mal-humorado o tempo “inteirizim”. O seu jeito de andar lembrava muito o personagem do Coringa (arqui-inimigo do Batman) dos filmes da D.C., principalmente quando munido do seu inseparável guarda-chuva preto e desbotado.
– Pega o homem, Pedro! – Seu Pedro Vaqueiro era um senhor de estatura mediana, forte – quase obeso – e tinha uns 50 e muitos anos. Entrou para as “forças armadas municipal” quando deu por fé já não ter mais a mesma agilidade ou disposição para montar em um lombo de um animal e sair por aí trotando feito doido, atrás de gado caatinga adentro. Forte e expert no manuseio do laço, João Delegado viu alguma serventia em colocá-lo ao seu lado na manutenção da lei e da ordem. Acostumados a lidar com bêbados, meninos e ladrões de galinha, toda vez que se via em apuros, bastava gritar o velho bordão:
– Pega o homem, Pedro! – Tal qual um animal adestrado, seu Pedro fundava dentro, derrubava facilmente o oponente como fizeram toda a sua vida com garrotes e bezerros. Depois de imobilizado, o desafeto era peado com maestria, tinha os pés e as mãos amarrados às costas, e após ser jogado na cacunda era levado para a delegacia. Isto acontecia diante dos olhares incrédulos da população e do sorriso maroto do “comandante-em-chefe”. João Delegado adorava “jogar pra galera”. Andava pelas ruas seguido por uma renca de guardas municipais impecavelmente uniformizados (Derotides, Deó, Dodô, Deusdete, Pelado e Pedro Guarda). Quando pegava um ou outro ladrão de galinha o espetáculo era garantido. Vestia o infeliz com uma saia feita de saco de estopa, raspava a metade da cabeça do individuo e o fazia caminhar pela cidade inteira conduzindo nas costas uma vara com uma renca de galinhas vivas, penduradas de ponta cabeça e cacarejando horrores. Não estavam nem aí se as aves estavam com fome ou sede, queriam mesmo era humilhar o infeliz do ladrão. Após andarem por todos os becos tendo o relojoeiro à frente acompanhado pelo pelotão de guardas fardados, o ladrão voltava para prisão e levava uma pêa danada. Todo mundo era obrigado a bater no infeliz! Os sádicos batiam até ver o indivíduo sangrar. Quando não estava capturando ladrões de galinhas, a diversão do relojoeiro era perseguir a molecada que trabalhava às margens da Rio-Bahia. Como esta raça também não era flor que pudesse ser cheirada, vira e mexe estava declarada a guerra. Na maioria das vezes, os detentores das fardas espalhafatosas e dos armamentos surreais – usavam até bodoques -, eram humilhados diante da esperteza dos “relentos”! Aquele paradeiro lascado, nenhum carro trafegando na rodagem, um sol pra lá de causticante, um marasmo indescritível, um tédio danado e aparecia alguém trazendo a tiracolo uma bola canarinho – quase um ovo de tão pequena. Depois da escolha dos times na base do par ou impar, o ‘baba’ acontecia ali mesmo em cima do asfalto escaldante, queimando os pés descalços da molecada. No auge do baba João Delegado, aparecia berrando, tocando terror na molecada ao lado do seu inseparável escudeiro, Pedro Guarda! – Pega o homem, Pedro! – Parecia até um estouro de boiada. Procurando salvar a própria pele, cada moleque corria em uma direção diferente. Satisfeito, João Delegado botava a bolinha debaixo do braço e dava uma volta completa no meio da rua como se exibisse um troféu. Depois da “volta olímpica” pegava uma faca e cortava a bola em vários pedacinhos diante dos olhos tristonhos dos meninos que observavam à distância. Um belo dia alguém levou uma bola couraça em precário estado de conservação e após vê-la confiscada pelos homens do delegado, testemunharam o relojoeiro dizer para Pedro:
– Estoure esta bola, Pedro! – Diante de várias tentativas, o vaqueiro cismou de pular com ambos os pés sobre a pelota quase murcha e estatelou-se no chão! Enquanto o velho, cheio de escoriações, era socorrido pelos companheiros, os moleques recuperava a bola e caía na capoeira zoando da cara deles! Não é nem necessário falar como ficava puto o delegado, saía chutando o que encontrava pela frente. Lamentavelmente, esta frase infeliz acabou com a vida do pai de família Pedro Guarda! Em um destes dias monótonos, eis que cruza a cidade caminhando lentamente pelo asfalto um destes andarilhos sem rumo. Caminhava tranquilamente por cima do asfalto quente com os seus pés descalços e os seus “penduricalhos” atrelados às costas. Ao ver o andarilho alto, forte, barbudo, maltrapilho e malcheiroso com um saco às costas, João Delegado tentou abordá-lo (cheio de autoridade) e o andarilho o ignorou solenemente.
– Para aí, cabra! Quem você pensa que é? Pensa que é só ir passando assim sem pedir licença? Aqui tem lei, não é terra sem dono, não! Está indo pra onde? – Atravessou à frente do homem que lhe deu um belo de um empurrão e seguiu indiferentemente o seu caminho. Desmoralizado diante da população – que sorrateiramente ria da sua cara -, o relojoeiro emprestou às pressas um velho jipe, amontoou todos os guardas na boleia e desceu atrás do andarilho! Antes de chegar à ponte do Rio Pardo interceptaram o homem que seguia calmamente o seu destino! Nesta época, como não havia muitos militares por aqui, quem mandava e desmandava era o carcereiro que se autointitulava mentor do famoso delegado. Ao desceram do jipe, deram voz de prisão ao andarilho que mais uma vez os ignorou solenemente: – Teje preso, relento descarado! Aqui é João Delegado falando! – Sem dizer uma palavra o andarilho continuou seguindo seu caminho mesmo cercado por Derotides, Pelado, Deusdete, do carcereiro e de Pedro Guarda. Achando-se desacatado, João falou à frase que ressona até os dias de hoje na cabeça dos que testemunharam o sucedido:
– Pega o homem, Pedro! – Mal terminou de falar e Pedro pulou sobre o andarilho. Ao tentar dominá-lo, foi violentamente esfaqueado por uma peixeira enorme que o homem levava escondido na roupa. Foram três facadas violentas! Uma na barriga, outra no peito e uma terceira no pescoço e o destemido Pedro Guarda tombava no asfalto se esvaindo em sangue. O choro e o terror da cúpula que conduziram o ferido até a farmácia (na época não existia hospital em Nova Conquista) só fez agravar a situação, ao constatarem o óbito do valoroso vaqueiro, o carcereiro chamou os dois PM’s que existiam na cidade e juntamente com o velho delegado e todos os guardas, armaram-se com o que podia e saíram no encalço do matador. Atravessaram a ponte do Rio Pardo e enxergaram o homem seguindo tranquilamente o seu destino como se nada tivesse acontecido. Covardemente, desceram todos do carro e detonaram literalmente o andarilho com dezenas de tiros. Mesmo caído sobre o asfalto o homem ainda foi alvejado por vários tiros no rosto. O corpo foi conduzido para a delegacia local e no dia seguinte enterrado como indigente. Nas entrelinhas ficou o sentimento de culpa, quem matou Pedro Guarda? O andarilho ou quem deu a ordem? Diante desta tragédia restou-se apenas a lembrança do grito que ficou famoso em todo o município:
– Pega o homem, Pedro!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadra de Julho de 2023.
Quarto-Minguante de Inverno.