Frequentar “butecos” nos dias de hoje aqui em Candin virou uma epopeia. Meu irmão (e especialista em botecos) Jojim, desistiu de vez. Há algum tempo ele e seus parceiros especializados na arte de levantamento de copos trocaram as mesas dos bares da vida por um bom fundo de quintal. Toda semana eles se reúnem na casa de um ou outro, levam sempre as suas guloseimas, racham as despesas, pintam, bordam e fica todo mundo feliz da vida.
Confesso que acho bonita a atitude, porém, pra mim, “buteco” (aqui em Candin) é inegociável. Quem conhece, sabe do que estou falando. O buteco é mágico. Aquele cheiro esquisito de banheiro mal lavado, aquela prosa ruim onde cada bêbado se acha mais inteligente que o outro, todos falando (aos berros) e cuspindo ao mesmo tempo, a reclamação com o pobre garçom da cerveja quente, embora, sem sobrar uma gota, sequer, no fundo da garrafa e até aquele copo americano sujo (que o botequeiro empurra na água imunda dentro de uma bacia mais imunda ainda) onde a cerveja é servida. Moço, esta falta de higiene é que faz a cerveja de “buteco” ser a melhor coisa do mundo. Dentro deste universo “negacionista”, alguns “heróis” ainda resistem bravamente.
Todo mundo conhece Oristão, na minha humilde opinião é o filho mais ilustre deste torrão. O cara adora dizer que ninguém ama esta terra como ele. Depois de ser o mais conhecido (e respeitado) empresário de Nova Conquista, bastou se aposentar para o flamenguista Oriston passar a fazer o que sabe de melhor, ou seja, tomar todas o tempo todo. Pra ele não tem dia ou noite, toma todas, independente da hora ou do lugar. Adora pessoas, tanto que sai pela cidade entrando em todo “buteco” que lhe cruza o caminho, sempre trocando um dedo de prosa com os habitues. Este amor por botecos não é exclusividade dele, ainda há por aqui alguns “Heróis da Resistência”. O locutor que vos fala é um destes, tendo sempre ao lado “degustadores especializados” como Kinho Soares, Fernando, Lolozinho, Professor Vivi, “Uóxiton” (O Rodrigues), Lucinero e o já citado Oriston Mendes dos Santos. O velho Oristão, do alto dos seus quase oitenta anos, sai “butecando” semanalmente, bebendo tudo quando há. E não bebe pouco não, geralmente bebe a noite “inteirinhazinha” e só vai embora acompanhado do sol (que sai para um lado e ele para o outro). Bêbado, bêbado, nunca fica, embora, quando “medicado” sabe-se logo, conversa em uma altura lascada. É muito boa gente, tanto que os donos de botecos o disputam no tapa. Você sai cinco da manhã pra fazer a sua caminhada matinal e quem você encontra pra lá de medicado? Oristão. Isso é fato.
Ultimamente surgiu um assunto meio delicado que fez que grande parte dos “cachaceiros” deste torrão corressem para os fundos das suas casas. Começou quando Zé Preto que era o dono do mais tradicional “buteco” da cidade, deu uma bistunta e encerrou definitivamente as suas atividades. Até hoje ele tenta explicar o porquê, só que ninguém entende absolutamente nada (convenhamos que conversa nunca foi o forte do nosso amigo Zé Preto). Em seguida morreu Cheiro (outro tradicional dono de bar). Aí foi a vez de Deriquim (o do bar onde o vento fazia a curva) esticar as canelas. Derico andava arrotando que nunca sentira, sequer, uma dor de cabeça. De uma hora para outra partiu antes do combinado tendo que efetivamente fechar o “buteco”. Foi uma comoção. Pior que o caboclo partir fora do combinado só a via crúcis dos fregueses órfãos, buscando um novo espaço. Essa expectativa gerou um suspense tão medonho que houve até apostas para se saber qual bar adotaríamos! – E agora, pra onde eles vão? Vão beber aonde? – Indagavam os curiosos preocupados com o lugar onde amarraríamos a mula. Até aí não tínhamos noção do problema. Como morar em Nova Conquista não é coisa para amador, logo saíram falando que éramos os “exterminadores dos donos de buteco”, bastava a gente frequentar o bar para o infeliz do proprietário, de uma hora pra outra bater as botas e esticar as canelas. Veja aí se tem cabimento? E aqui é assim, se é fofoca, se espalha mais rápido que vírus em pandemia. Não demorou para sentirmos na pele o efeito da fake news. A coisa ficou tão feia que chegávamos em um determinado “buteco” o dono ia logo fechado a cara: – Tá quente, tá quente, a minha cerveja tá quente! – Outros mentiam com a cara mais limpa do mundo: – Ô os meninos, desculpa aí. Parei de vender cerveja, leva a mal não! – Pior, eram os que bastava ver o carro de Nerinho parando para já irem baixando imediatamente as portas. – Aqui não, não entra não! – Já estávamos quase desistindo da empreitada quando resolvemos aventurar no Bar de Nego. Até que fomos bem recebidos. Este é um dos mais tradicionais botecos da cidade. Clientela selecionada, serve – ainda hoje – um fígado com mandioca do caboclo comer rezando, tem um coquinho envelhecido cheio de canjebrina que faziam pessoas de fora virem aqui apenas para prová-lo, sem falar do “jeito Nego de ser” que se chama José Rivaldo, mas não gosta do nome e que em plena “revolução tecnológica” só aceita dinheiro em espécie. A placa que ele colocou na porta “NÃO ACEITAMOS CARTÃO NEM PIX” escrita em letras garrafais chama a atenção de longe. Isso contribui para que esse boteco seja pouco frequentado, embora, tenha como grande atrativo as frondosas árvores que decoram sua fachada. Pode estar um sol de rachar que seus fregueses se sentam na sombra, abre uma brahma e fica só interagindo com a natureza, curtindo a fotossíntese, exalando gás carbônico e respirando oxigênio puro. Estas árvores são a cereja do bolo deste “buteco”. Pois é, este foi o bar que adotamos. Nossa “lua de mel” durou quase dois anos, até que de uma hora para outra Nego não deu de adoecer? Pois foi. Ficou difurçado, debilitado, cambaleante e bastou a saúde do moço degringolar para a velha história dos “Exterminadores de donos de Bar” voltar com força total. Doente ele viu definhar a sua freguesia, perdeu 90% dos fregueses, inclusive, do time dos “Exterminadores”. Nerim arrumou um desculpa urgente para viajar pra Conquista todo sábado, Kinho Soares passou a ficar o tempo inteiro nos Gerais, Fernando passou a frequentar de vez em quando, Ostinho inventou de trabalhar no sétimo dia e quando dei por fé só restava eu, Ismayk e o gato. Sim, Nego tem um gato de estimação que adora música. A coisa ficou tão feia que ultimamente tenho dividido a mesa com este felino que se chama Mel e que pelo jeito, é o único vivente da terra que compartilha musicalmente o meu gosto. Chego, me sento, peço uma brahma e ele já vem se sentando do lado. Estica o corpo preguiçosamente, ofereço um copo ele recusa, porém fica a tarde todinha ao meu lado ouvindo música. Mas, como eu estava dizendo, Nego não deu de piorar? Moço, ficou tão ruim que foi internado às pressas em um hospital de Conquista enquanto ficávamos só esperando o pior. Duro era quando eu ia ao mercado aqui perto de casa, cruzava com alguém de bicicleta e só ouvia o grito: – Matou mais um, hein? – Na maioria das vezes eu nem conhecia o caboclo, porém, a notícia corria solta. Para o azar dos secadores, Nego não voltou novinho em folha? Sim. Está lá pra quem quiser ver, meio debilitado, é verdade, porém, na ativa, trabalhando normalmente e ainda fazendo piadas com a cara dos fregueses. Esta semana – ainda que de forma tímida – os clientes foram voltando gradativamente, e tendo que aguentar o desabafo do nosso barman:
– Quem estava pensando que eu fosse bater as botas se lascou! – Ficou repetindo esta frase o dia “inteirizim”. Para homenagear este retorno voltaram quase todos os fregueses. Em uma das mesas, lá estava eu, Kinho, Fernando e o gato quando chegou Oristão com sua contagiante alegria trazendo a tiracolo Nilson da Imobe e Murilo – cracaço de bola, irmão de Marcelo. Conversa vai, conversa vem e não deu de cair um toró? Parecia que São Pedro queria homenagear o retorno de Nego com uma baita tempestade. Só de pirraça levamos aquela chuva todinha, quando percebemos que não iria passar, mais molhados que pinto no ovo, resolvemos entrar no bar. O “buteco” de Nego tem uma particularidade, chove mais dentro que fora. Ao entrarmos, percebemos que além de nós, tinha uma senhorinha negra, baixinha, aparentando uns 70 e tantos anos e que bebia cerveja como se o mundo estivesse se acabando. Era Nego descendo e ela entornando. Como já disse aqui, Oristão não fica sem assunto, sem nada melhor pra fazer, enquanto a chuva caía ficamos ali só proseando, tentando desviar das goteiras, enquanto Nilson e Murilo disputavam uma partida de sinuca. Jogo duríssimo de se ver. Neste ínterim Oriston resolveu ir ao banheiro e voltou correndo, embrulhando o estômago.
– O que foi, Oriston? – Caí na besteira de perguntar. – Rapaz, vomitaram o banheiro todinho. Tá uma imundice, um fedor lascado! – Sutilmente chamamos Nego, relatamos a ocorrência e enquanto ele, todo escabreado providenciava a limpeza, a senhorinha se levantou, coçou o soutien e gritou para todo mundo ouvir: – Cadê meu dinheiro? Roubaram minha carteira. Quem foi o ladrão? Quero meu dinheiro de volta, fui roubada! – Olhei para Oriston que olhou pra Kinho, que olhou pra Nilson e Murilo que jogavam sinuca e sem entender absolutamente nada Oriston sugeriu: – Vai ver que a senhora deixou em casa. – Pra que? A senhorinha ficou ainda mais puta! – Porra nenhuma! Vocês roubaram. Meteram a mão no meu soutien e roubaram a minha carteira. – Falava aos berros. Ao ouvir o barulhão Nego tentou contemporizar alegando que todos que ali estavam era pessoas idôneas. Piorou ainda mais: – Vão se lascar! Sou besta não! Vocês são um lote de ladrões. Quero o meu dinheiro agora, só saio daqui com o meu dinheiro ou então vou chamar a polícia. – Cheguei a imaginar que a senhorinha tivesse esquecido a carteira e ao se embriagar imaginou que tivesse sido roubada. A ficha só caiu quando ela falou: – Acabei de pagar a conta pra Nego e ele é testemunha, me voltou até o troco e viu quando eu guardei no soutien. – Olha aí a minha teoria caindo por terra. – Quero minha carteira agora, rebanho de ladrões! – Se levantou e ficou olhando pra cara de cada um. Olhou pra mim, pra Oriston e Kinho que estavam na mesma mesa, olhou pra Nilson e Murilo jogando o sinuca e falou: – Só vou livrar a cara de Oriston, Carlinhos e Kinho que eu conheço. O resto é tudo ladrão. Devolvam o meu dinheiro. – A coisa estava ficando feia e a gente achando engraçado, enquanto a velhinha puta da vida chamava a atenção de quem passava na rua. Quanto mais ela gritava, mais a gente se divertia. Nesta altura, na base do desespero Nego correu para o banheiro e enquanto limpava o vômito – que não por acaso fora despejado pela senhorinha – ouviu ela gritar. – Não sai ninguém daqui, vou chamar a polícia é agora! Marchou determinada porta afora no exato instante em que Nego achou a carteira dentro do vaso, bem no meio da tonelada de vômito e gritou sofregamente para a senhora que já ia saindo. – Volta. Tá aqui, ô, achei, a senhora deixou cair dentro do vaso! – Ao ouvir, a velhinha deu meia volta e cheia de marra, com um sorrisão de todo tamanho no rosto, olhou pra Nego e bradou:
– Tá vendo aí? Bastou eu falar na polícia pra meu dinheiro aparecer. Bando de filas da putas. – Gritou, botou a carteira no soutien e saiu rua afora, cambaleando.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de novembro de 2024.
Crescente de Primavera.