Floriano Bicudo era um negão forte e trabalhador que ganhava o seu sustento cortando toras de aroeira e “braúna”, bem no olho da mata do entorno do Porto de Santa Cruz. Era uma das pessoas mais queridas que existiam no povoado. Em uma noite de lua cheia lá estava ele labutando com um tatu peba, defronte a fazenda do Coronel Miguelão. Pega aqui, puxa ali, empurra lá e o bicho com as unhas fincadas na terra. Depois de pelejar por mais de duas horas segurando o peba pelo rabo, percebeu que quanto mais força fazia, mais o bicho entrava no buraco. Diante de uma batalha quase perdida e pensando em jogar a toalha, deu um estalo e astuciou um plano miraculoso. Na base da bistunta enfiou o indicador nas entranhas do tatu que depois de um gritinho safado e de uma tremedeira digna de biba se acasalando, fofou de vez, fazendo uma tremenda cara de prazer e se deixou puxar… Com o tatu fora de combate, o velho lenhador se preparou para voltar pra casa quando ouviu o indefectível barulho de um caminhão, coisa rara por aquelas bandas. Desconfiado, se escondeu em uma moita e ficou só tocaiando o bicho. Carros naquele tempo nunca apareciam por estas bandas, imagine um munido de carroceria para gado?… Realmente tinha alguma coisa estranha no ar. Mas, voltemos um pouco no tempo para que possamos ter um melhor entendimento deste sucedido.
Até a década de 1970 o Rio Pardo era fabuloso. Chamava a atenção pelo volume, era até navegável em alguns trechos além de ser o principal meio de transporte dos ribeirinhos no Porto dos anos 1940. Economicamente viável, nosso rio respaldava quem vivia de plantar e pescar. A variedade de peixes impressionava, inclusive, com fartura de pitus e camarões. Se as águas pardas eram autossuficientes para a sobrevivência dos ribeirinhos, a contrapartida era altíssima. Neste período além de existir uma renca de quadrilhas tocando terror por aqui, roubando gado, ainda se tinha que conviver com a suçuarana subtraindo diariamente os rebanhos, amedrontando os fazendeiros e tocando terror nos outros bichos. Os ribeirinhos ainda eram obrigados, durante a noite, a conviverem com o medo da famosa cobra Sucuiú que – rezava a lenda – morava debaixo de uma loca deste rio e de quando em vez saia no breu da noite para petiscar um ou outro bezerro ou até degustar algum bêbado infeliz que estivesse de bobeira na beira do rio. Pois é, a vida na Santa Cruz do Santo Porto não era pra amadores. Quando se escapavam dos ladrões ou da suçuarana, aparecia a tal da cobra aterrorizando a todos.
Neste tempo morava no povoado, a senhora Maroquinha de Quelemente” , a benzedeira mais famosa da região. Nascida e criada no Porto, desde muito cedo conseguiu conquistar a confiança dos ribeirinhos. Parteira de quase todas as crianças nascidas no povoado em um período de 20 anos. Octogenária, Maroquinha andava toda troncha, sustentando uma indesejável corcunda, tinha a cara toda enrugada, as mãos cheias de calos, andava amparada por um cecetinho de madeira que lhe ajudava na locomoção e mastigava folha de fumo em tempo integral. Apôs de uma hora para outra Maroquinha não saiu alardeando aos quatro ventos que deu de cara com a cobra Sucuiú na porta da sua casa? – Pois é seu Nonô, quando eu abri a porta em plenas águas de” mauço”, num é que me deparei com aquele rolo de cobra todo “inrolado inguale pinêu” de “jirico” descendo “ri” abaixo? Só deu tempo d’eu me apegar com São Cipriano e gritar o seu santo nome. A bicha reganhou a bocona “inxalano um fedô medôim”, pronta para mim “ingulí”… E oia q’ueu eu já tinha inté “incumedado” a minha alma, no desespero fechei os “zói” e gritei cum toda as minhas forças: “Mais forte são os poderes de Deus”! Quando abri os “zóios” vi a cobrona desembestar correnteza abaixo. Na hora desceu um “quilarão” que deixou a cobra “zarôia inguale” Dão Galo-Cego e só num mim “cumeu proquê” num mim enxergou. Foi Deus do céu que me protegeu. Bastou alguns minutos de prosa e lá ia à fofoca de boca em boca se espalhando por todos os cantos do povoado. A notícia corria de porta em porta. Uns diziam que Maroquinha foi engolida pela a cobra e cuspida de volta. Nem a Sucuiú suportou a cantiga miserável da “véa”. Outros diziam que a cobra se recusou a engolir a parteira porque a carne da véa era mais dura que esporão de galo de terreiro. Os fofoqueiros, ainda faziam pior: alardeava aos quatro ventos que a Sucuiú, ao sentir o bafo de fumo mascado da “véa”, deu uma renca de espirros, desmaiou e foi levada desacordada rio abaixo. As fofocas tomaram uma proporção tão grande que as pessoas, por medo, passaram a tomar banho em grupo. Era comum ao cair da tarde aquela renca de gente formando grupos de dez, vinte pessoas, se banharem coletivamente. Pior, era quando algum gaiato gritava:
– Oia a cobra! – Era um fuzuê. Só via gente sair correndo do jeito que estivesse, não ficando ninguém dentro d’água. Era uma correria lascada, um histerismo danado, mulheres desmaiando, velhinhos tremendo, gente tendo ataque de epilepsia (nesse tempo dizia ser a “doença do ar”) e a cobra mesmo, ninguém via. A coisa ficou tão preta que até o peixe – principal alimento do povo -, começou a faltar na mesa dos pescadores. O povo tinha medo até de ir à beira do rio pescar. Bom mesmo só para quem não era lá muito chegado a tomar banho. Estes (existiam alguns) aproveitaram a ocasião para ficarem semanas com a mesma roupa – e consequentemente, com o mesmo “cheiro” -.
Um “fedor disgramado” passou a fazer parte do cotidiano dos moradores. As pessoas tinham medo até de irem pegar água (mesmo para matar a sede) após o pôr do sol. Outros deixaram de sair à noite com medo da Sucuiú. Nos finais de semana chegavam caravanas de professores de outras paragens, movidas pela curiosidade, trazendo os seus alunos a tiracolo – alguns trêmulos de medo -, com o intuito de mostrar a “loca” e o poço onde hipoteticamente seria a morada da bicha!
E aí, começaram a transferir tudo de ruim que acontecia no povoado para a conta da serpente: Sovinas deixavam de pagar suas contas alegando que a cobra havia engolido o dinheiro, outras, que a cobra vieram em sonho pedir para largar o marido (e acabavam largando mesmo). Algumas usavam a cobra para justificar o fato de ter sido flagrada na cama com um ou outro amante… houve até casos de pessoas deixarem a família e fugirem na calada da noite… tudo era culpa da cobra. Mulheres apareciam barrigudas e diziam que a cobra a engravidara no meio da noite… Maridos praticavam feminicídios alegando atender um desejo da cobra… e, repentinamente a vida do pacato povoado se transformou em um caos. Até Jandirim (filho de Felisberta Buchuda), um rapazote de 18 anos meigo e delicado que fora flagrado algumas vezes usando a calçola da irmã mais velha, apesar dos jeitos e trejeitos, insistia em dizer com voz empostada que era homem e macho, porém, estava assumindo ser homossexual por culpa da cobra. Mudou-se de “mala e cuia” para a casa do professor Clarindo, que o desposou maritalmente. Afinal de contas, não podia negar um pedido da Sucuiú. E, assim o povoado se transformou em uma bagunça indescritível e toda a culpa foi para a conta da serpente.
Mas, como estávamos dizendo, lá estava o lenhador Floriano Bicudo com o dedo todinho enfiado no tatu, olhando abobalhado aquele carrão com carroceira de grades, parado na frente da fazenda do Coronel Miguelão. Entre o imediatismo da surpresa e a sensação da descoberta, o negão esbugalhou os olhos presenciando saltar da carroceria uma meia dúzia de jagunços armados de tudo quanto há, e, em menos de meia hora, laçar com invejável perícia umas dezesseis cabeças de “rês” do Coronel, deixando todas peadas em cima da carroceria. Amedrontado, Floriano sapecou este tatu no mato (seguro pelo rabo o bichinho já se imaginava chiando dentro de uma panela de barro de água fervente cheia de temperos) e se escondeu – ainda mais fundo – dentro da moita que, depois descobriu por motivos óbvios, ser de urtiga. Agoniado e tremendo, o negro Floriano, graças ao clarão da noite enluarada, pode ver os tão “afamados” ladrões de gado (procurados desde o norte dos Gerais até o sertão da Bahia) praticando mais um roubo na região. Assim, que giraram a manivela do caminhão (naquela época, todo veículo pegava na base da manivela, inserida na parte dianteira do motor), saíram com tudo pela estrada real em direção ao estado de Minas.
Morrendo de medo e se certificando que os facínoras já estavam longe dali, Floriano saiu desembestado pela mata e quando tentou atravessar nadando o rio, viu-se fisgado pela cobra Sucuiú que já foi se enrolando no pobre coitado e o arrastando para o fundo. Todo mundo sabia no povoado que Floriano Bicudo não era homem de mentira. Mas, se ele não tivesse levado a cabeça da cobra como prova, certamente ninguém acreditaria nesta prosa.
Diante de uma multidão que se formou ao seu redor ele contou dezenas de vezes que assim que ele e a Sucuiú se enroscaram, ela tentou levá-lo a força para o poço sem fundo que ficava debaixo da loca, em um gesto de desespero ele usou toda a força e experiência adquirida na arte de derrubamento de toras de madeira. Conseguiu libertar um dos braços, e deu um “tranco” tão apertado na cabeça da bicha que os olhos pularam para fora. Muitos não acreditaram, mas Floriano Bicudo mostrou para quem quisesse ver a cabeça que devia pesar uns 10 quilos, completamente mochilada.
Naturalmente (como não era besta), exigiu dos interessados uma pequena “contribuição” em moeda corrente para que ele pudesse contar a história, alegando que o dinheiro seria para a compra de “injeção contra teto”. Olha gente, pode acreditar… Floriano Bicudo juntou tanto dinheiro (tantas foram às pessoas, que se dispuseram a pagar para ver a cabeça da cobra) que deste dia em diante largou o ofício de madeireiro e foi viver como contator de causos. Quanto à Sucuiú, de quando em vez, alguém – ainda nos dias de hoje – afirma com relativa convicção vê-la em noite de lua cheia no pocinho de água que ainda resta na sua loca. Do mesmo “jeitim”. enrolada tal qual um pneu, porém, sem a cabeça arrancada por Floriano! Tem gente que acredita!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, quadra de dezembro de 2023.
Minguante de Verão.