O TUMBA NO CABARÉ
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O TUMBA NO CABARÉ

Depois de uma triste tragédia que marcou profundamente a sociedade “Nova-Conquistense”, o baixo-meretrício que funcionava no centro da cidade com a alcunha de “Pela-Porco” entrou em decadência, sendo transferido para a beira da rodagem, na famosa “Curva da Morte”, onde vários estabelecimentos disfarçados de hotéis vendiam refeições durante o dia e as tenras carnes da mulherada à noite!

Estamos na década de 1960 quando Zeca da Paraíba, famoso matador no Norte, chegou corrido por aqui. Magrelo, alto e tímido de meter medo, porém, quando o diabo do homem tomava suas “talagadas de canjebrina”, virava o capeta! Falava alto, esmurrava mesas, dava bofete em “quenga” e se divertia botando algum infeliz pra beber a força um litro inteirinho de pinga: – É pra tomar o litro todim. Se deixar uma gotinha no copo eu vou lhe “retaiá inguale toicim, cabra rim”. – Segundo as más línguas, o matador pertencera à “Volante do Tenente Bezerra” que caçara o Capitão Virgulino Ferreira no Raso da Catarina.  Quando chegava ao bordel, por medo, o dono o tratava igual a um rei, guardando para que ele “abatesse” em primeira mão as “donzelas” recém-chegadas. Certa noite adentra o recinto com o seu indefectível “chapelão”, Lui Ferreiro, um negão de quase dois metros de altura e dos braços desta grossura, que adorava pilheriar!

– Oia lá “muierada”! O “home d’ocêis acabô de chegá”! – Entrou virando o primeiro copo de pinga que achou pela frente.  – Cachaça pra todo mundo! Hoje é “pru” minha conta! – Gritava Lui aplaudido pela “ralé”. Mais ou menos meia-noite, ouve-se um relincho bastante característico, chegava à mula “Catarina” trazendo no lombo, Zeca da Paraíba. Os mais escolados já sabiam que depois do relincho, melhor sair da frente que lá vinha os punhais atirados por ele, atingindo sempre o mesmo ponto do balcão. – Quem “qué home” aí? – Falava o valente adentrando o recinto. – Chegou Zeca da Paraíba, o homem sem medo e chegou com sede! – Dizia o “matador”. – Bota uma talagada dupla aí pra todo mundo! – O garçom servia e todos bebiam com um inenarrável prazer.

Ao olhar para o lado, quem o matador vê com um sorrisão de todo tamanho no rosto? Lui Ferreiro, mais alegre que pinto no lixo, tomando todas e com uma quenga sentada em cada uma das suas pernas, beijando, lambendo, babando, beliscando, esticando… Enfim, Felicidade era mato!

– Êpa! Que putaria é essa aí?!!! – Indagou Paraíba!  – Ué, “num” é o meu grande amigão e “matadô”, Zeca da Paraíba? – Rosnou satisfeito o gigantesco ferreiro.

– Meu Deus do céu! Lui Ferreiro! “Cuma tá ocê”? – Indagou Zeca, abraçando o ferreiro. – Vamo bebê junto, eu, ocê, e as raparigas aí! – Beijos, abraços, beliscões, tapinhas na bunda, tapões nas costas, mordidas na orelha e dezenas de garrafas de pitu depois, já extremamente medicado, Lui resolveu pedir um tira-gosto:

– Amigo da Onça, manda aí um tira-gosto pra “nóis”!

– Meus amigos… Vou ficar devendo… O tira-gosto acabou… “Num mataro” porco hoje… – Se desculpou “Amigo da Onça”. Ao ouvir a negativa, Lui ficou furioso! – Merda, Amigo da Onça! “Cuma” é que “nóis” vai “ficá bebeno” deste jeito sem “butá” nada no bofe?

– É “mermo”… “cuma ocê faiz” uma “disfeita” dessa “cum” eu e meu amigo Lui? Se não tem tira-gosto traz cachaça, bote mais duas talagadas daquela que botô o “guáida pra corrê”! – O balconista trouxe a cana e os homens beberam em uma talagada só! – Essa é da boa! – Gritou Lui, dando uma bela de uma cusparada na parede ensebada! – Mió que essa, só aquela diretamente do “ingenhe” de cana! – Falou Paraíba, já cambaleando e embolando a voz. – Oxente, e tu sabes o que é isso? – Indagou Lui. – Pensei que só “intendesse” de “matá” gente, ué!? Quiá, quiá, quiá… – Debochou o ferreiro.

– Tu num sabe da missa um terço! – Falou um enfezado Zeca da Paraíba. – Se eu contá minha história “procê”, é capaz “d’ocê si mijá todim, caiba véi”! “Nóis é cáiba” macho, “cáiba” da peste, e “nóis quano amanhecemo cum a gota serena, derrubamo quaiqué” um… Pode “sê” a gota, o “dismantelo”, a febre do rato, o “carai” – Ôxe, Paraíba “ficô retado, foi”? – Falou Lui se abraçando a Zeca! – “Nóis é tudo irimão”, Paraíba! “Vamo tumá nossas pinga e ficá” alegre, uai! – E assim fizeram. Três litros de “conena” foram postos em cima do balcão e degustados vorazmente pelos homens e pelas quengas. Lá pelas quatro da madrugada, todo mundo pra lá de embriagado, não é que Lui Ferreiro tocou novamente no assunto? – A pinga tá boa, a “muierada” tá boa, o samba tá bom… – falou com a voz trôpega – Mas tá “fartando” o diabo do tira-gosto! “Bebê” sem “cumê” é de lascar o cano! Oia, Paraíba, eu estou “cum” tanta fome, mas tanta fome, que se tivesse um rato morto aqui agora, eu comia… – Zeca da Paraíba olhou dentro dos olhos de Lu e, falou: – Então o amigo está dizendo que é capaz de “cumê” um rato morto? – Não só “cumê”, como “chupá inté as orêa” dele! Quiá, quiá, quiá… Tá “creno n’eu” não, Paraíba? Lui é “home” e garante as “carças” que veste! “Ocê” tá duvidando?

— Eu lá “sô home de duvidá” de ninguém? – Falou enfezado: – Amigo da Onça, “tráiz” aí um “fifó”, deixa eu “percurá” um rato “pra vê” se esse “cáiba é home mermo”! – Lá veio Amigo da Onça correndo, trazendo um velho fifó todo preto de fuligem. – Pode “achá” o rato que eu como de tira-gosto! – Pois eu quero vê se “ocê” é “home, mermo”! – Zeca da Paraíba, bêbado igual um gambá, muniu-se deste fifó, entrou casa adentro e procurou em tudo quanto há. Debaixo de cama, do sofá, atrás do fogão, em cima das paredes, debaixo de esteiras, do monte de lixo, na pilha de lenha, na privada… Não foi que achou um calunga, morto há vários dias em estado de decomposição? – Aqui está seu rato! – Voltou segurando pelo rabo como se exibisse um troféu! – Ahhh! Vamo vê agora se és tão corajoso assim… – Com a encrenca formada foram chegando de todos os lados, raparigas só de calçolas, homens com as calças arriadas, bêbados trôpegos se agarrando ao balcão, motoristas sonolentos, querendo ver o desfecho daquela peleja. Dentro da armadilha que ele próprio tinha armado Lui ainda tentou fazer piada: – Ué, “destamanhim”? “Num” vai dá nem pra “butá” no buraco do dente! Quiá, quiá, quiá… – Apôis tá certo… – Falou Zeca da Paraíba já cortando o rato em duas partes, a catinga infestou o ambiente… – Salta mais um litro da “marvada” aí, Amigo da Onça! – Pedido prontamente atendido e antes mesmo que Lui pudesse dizer alguma coisa, Zeca jogou a sua parte do rato na boca, deu umas duas ou três belas mastigadas, engoliu com um apetite voraz, para em seguida beber meio litro de canjebrina diretamente da garrafa, colocando a língua pra fora em seguida. Olhou com desprezo para Lui que nesta altura estava mais branco que capucho de algodão – “Bão”… Taí a parte que lhe cabe, “cáiba”, coma! – falou empurrando com o facão a metade do rato para Lui que só de sentir o cheiro saiu vomitando nas paredes, nas quengas, no balcão, em “Amigo da Onça” e até nas botas de Zeca da Paraíba! Depois de se recompor, o ferreiro ainda tentou resolver na base da conversa:

– Era brincadeira, Zeca… Eu “sô argum” doido de “cumê” rato “pôde”! – Falou Lui, tentando se levantar. – Vamo tumá mais uns litros de “conena” e “deixá” isso pra lá. Falei “brincano”!

– Eu “sô” lá “home” de “brincá, cáiba”?! – Já falou metendo o facão na cara de Lui que urrou de dor! – Já comi a minha parte, “num comi”? Eu lá “tô” de brincadeira? – Deu à segunda “falcãozada”. – Ahhhh!… Deixe de lambança, Paraíba, isto dói… – gritou rolando de dor… – Aqui está o seu pedaço do rato… Seu “fí duma” égua! Foi “ancê” que pediu, e eu “precurei inguale um maluco”! É ou não é? “Achei cum” muito “trabái”, comi a minha parte, cumpri meu trato, agora “ocê” vai “cumê”! Ou come ou lhe deixo mais “retaiado” que o “toicim” de Dão “Açouguero”!

– Oxente, “home”! Que “brabeza” é essa? Sou seu amigo! – “Num sô” amigo de “cáiba” covarde, não! Mastigue logo esse rato “iantes q’eu” lhe enfie guela abaixo! – Deu mais um faconaço nas pernas de Lui que uivou de dor! – E “num” é pra “ingulí” é pra “mastigá inguale” eu, “vamo” logo “cum” isso que não “temo” a noite toda não. – Quem estava presente já temia pela vida do ferreiro, que no fundo, era uma excelente pessoa. Lui pegou a sua metade do rato pelo rabo, levantou até a altura da boca, foi até o balcão, tampou o nariz com os dedos, fez o sinal da cruz, bebeu em um só fôlego o resto da cachaça e quando o matador se distraiu, meteu-lhe o rato na cara e desembestou porta afora! O Paraíba ainda teve tempo de dar com o facão nas costas do ferreiro que diante do impacto, caiu, “catou cavaco” e berrando feito um bode, caiu na lapa do mundo. Existia atrás do cabaré uma intransponível mata de surucucu, diante do sufoco, Lui tentou pegar a rodagem, mas, se viu cercado, e sem opção meteu os peitos na mata levando nos peitos o que encontrou pela frente. Zeca da Paraíba fundou atrás do ferreiro “descendo a pêa”! Antes de desistir da perseguição, ainda lhe deu umas duas ou três “panadas” de facão, fazendo que o gigante de quase dois metros, urrasse de dor e atravessasse correndo meia légua de mata, se enchendo de espinhos e uivando de dor. Chegou todo muchilado em casa e “morto de medo”, reforçou as tramelas das portas e janelas e mesmo ferido, dormiu debaixo da cama! Naquela mesma noite, Zeca voltou para o aconchego das quengas e amanheceu o dia na farra! Lui ficou escondido por duas semanas e meia, só voltou a sair de casa quando Paraíba disse publicamente que a desavença foi coisa passageira e que ele tinha ficado satisfeito com a demonstração de “coragem” do oponente. Dali por diante, Lui, mal saía às ruas. Parou de beber, entrou para a lei dos crentes e quando, por um o outro motivo, ia comprar mantimentos, não faltava quem gritasse em tom de deboche:

– Lui Ferreiro… Valentão! Cadê o rato?

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Cândido Sales, Quadra de Agosto

Super lua de Inverno de 2023