O TEATRO NOSSO DE CADA DIA.
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O TEATRO NOSSO DE CADA DIA.

Um velho cinema lotado até a tampa – gente saindo pelo ladrão. Uma luz negra trazendo para o palco todo um clima de terror e mistério, nuvens de fumaça de pólvora envolvendo o ambiente e, amplificado através de um velho microfone envolto em um pedaço de flanela ensebada, “Time”, o clássico do Pink Floyd, fazendo que parte da plateia roesse as unhas de tensão, se contorcendo nas cadeiras. Assim que as cortinas foram abertas, surge no palco um cenário grotesco, recheado de cruzes e caveiras… no palco, um vampiro canastrão, bem brasileiro, com sotaque nordestino, dá uma risada gaiata e lasca uma dentada no pescoço da linda jovem, jogando longe o agente da lei que lhe cruza o caminho. O policial era tão diminuto que tiveram que enrolar as mangas da camisa e a barra da calça da farda. Após vitimar a dupla, o vampirão saí de cena arrotando, com a boca toda lambuzada de sangue, degustando vorazmente um belo de um acarajé apimentado. Os atores em cena eram Babi (de Zetinha), a falecida Helâine Pontes e Pedrinho (de João dos Bolos), a peça encenada era “DRACULINO O MONSTRO SANGUINÁRIO” no palco improvisado do antigo Cine Cássia, no longínquo ano de 1979 da era cristã.

O Grupo Cultural Arte & Manhas surgiu a partir do CAACS e ficou conhecidíssimo em toda região, inclusive, ganhando alguns prêmios em festivais de teatro. Os primeiros atores foram Jaivan Acioly, Mundinho (Edmundo Pontes, na época, pra lá de cabeludo), Babi (Rubem Meira), Ossiônio Ferraz, Valdívio Francisco (Pio), Pedro Oliveira Lima (Pedrinho), Vilma Farias, e mais uma renca… Este torrão vivia um momento de estagnação, sem nenhum tipo de diversão ou arte – nem cinema existia mais. Nos sentimos na obrigação de criar um grupo teatral. Jaivan Acioly, Mundinho e eu, sabendo que “santo de casa” não faz milagres, montamos a peça em segredo. Na calada da noite grafitamos muros e paredes: “VEM AÍ: O MONSTRO SANGUINÁRIO! AGUARDEM!”. A fase seguinte foi espalhar pelos pontos estratégicos da cidade, cartazes coloridos desenhados por Ossiônio Ferraz, divulgando a apresentação teatral. A curiosidade fez que os habitantes tentassem – de todas as maneiras – descobrir o que viria ser aquilo. A maioria absoluta não tinha nenhuma ideia do que fosse uma peça de teatro. Outros roíam as unhas de curiosidade. Após um mês, veio à propaganda-volante. Mundinho era o locutor (fizera na época, um teste na “Rádio Clube” de Vitória da Conquista), Jaivan era o motorista e eu, o “segurador oficial da radiola ligada”, levando no colo, quando o jipe passava em um buraco, a agulha corria sobre o vinil, deixando o disco completamente arranhado. O texto era escrito em um papel de enrolar pão com letras enormes, Jaivan emprestava à força o velho jipe do pai dele, eu usava a minha amizade para emprestar o disco dos amigos e Mundinho entrava com a sua voz impostada que só ele achava bonita. A vaquinha que fazíamos era suficiente apenas para três litros de gasolina, e logo lá estávamos dentro do velho jipe, rodando pelas ruas esburacadas da cidade, anunciando a peça teatral: – DIA 20, GRUPO CAACS APRESENTA: “DRACULINO, O MONSTRO SANGUINÁRIO”… TEATRO É CULTURA! NÃO PERCAM! “DRACULINO, O MONSTRO SANGUINÁRIO”… TERROR, ROMANCE, HORROR, SUSPENSE, AÇÃO… IMPERDÍVEL! – Como veem, inconscientemente, já éramos herdeiros natos de Geraldo do Cinema. O local não era anunciado porque ainda não o tínhamos. Logo, a influência de Mundinho surtiu efeito e conseguimos alugar o velho e desativado prédio do Cine Cássia. Negociamos uma porcentagem da renda para o dono, embora, tivéssemos que limpar toneladas de lixo e casas de aranhas. Após o mutirão da limpeza, compramos algumas tábuas fiado e nós mesmos (tendo Jaivan como principal “martelador”) construímos artesanalmente um palco resistente. As cortinas foram lençóis, cada um de uma cor diferente que os integrantes traziam de casa, costurados à mão pelas próprias “atrizes”, e a genialidade de Ossiônio desenvolveu através de dois rolos de finas cordas de náilon, um mecanismo que possibilitava abrir e fechar a “Cortina Frankenstein”. Uma lâmpada negra emprestada da boate de Valdeir, um prato e um tambor emprestados do Colégio, dois tubos de pólvora doados com carinho pelo Armazém do seu Zequinha e dois panos negros servindo de capas para os ‘vampiros’ completavam o cenário. Babi e Ossiônio (sabe Deus como) inseriram em suas próteses, caninos vampirescos tão grandes que os impediam de fecharem a boca. Ficaram bem parecidos com vampiros, porém, com a voz embolada, ninguém entendia absolutamente nada do que falavam em cena.

Chegamos ao dia da apresentação com metade da cidade sabendo que o CAACS era “Carlim de Isté”, Jaivan de seu Manfredo, “Mundim” de Dona Preta e mais uma renca de desocupados, embora, a imensa maioria ainda vivesse a ilusão que o tão comentado espetáculo trouxesse a participação de alguns famosos artistas da televisão brasileira. Meia hora antes do início do espetáculo o velho cinema bateu recorde de público – foram mais de 300 cadeiras emprestadas dos colégios da cidade –, sentados, em pé, deitadas no chão. Metade não sabia o que fazia ali e a outra metade (que sabia quem éramos), foram para vaiar. No horário combinado, anunciamos ainda atrás das cortinas o início do espetáculo. A velha radiola emprestada de Pedrinho, amplificada com um velho microfone, rodou o disco “The Dark Side of the Moon” do Pink Floyd, enquanto o rufar dos tambores nos bastidores, acompanhado da batida seca de um prato metálico, fez a plateia (diante da luz negra emprestada) gritar, se borrando de medo. E assim que o mecanismo artesanal abriu as cortinas e o infravermelho iluminou grotescamente, o inenarrável prazer do vampiro interpretado por Pio (com a cabeça completamente careca), chupando gulosamente o pescoço da jovem Leninha, o cinema veio abaixo. Foi um sucesso absoluto. Saliento que o nosso vampiro brasileiro veio antes de Bento Carneiro, personagem criado por Chico Anísio. Diante do espetáculo, a plateia se rendeu, fomos aplaudidos de pé. Foi uma noite memorável, uma apresentação impecável, batendo todos os recordes de público, bilheteria e… elogios.

Nascia-se oficialmente o teatro da cidade de Cândido Sales. O público demorou a sair… Aplausos, abraços, bajulações e éramos – aos olhos do povo – artistas, dando até autógrafos. E aí se sucederam inúmeras apresentações. No mês seguinte, após a partida de Jaivan Acioly para a Paulicéia, o grupo resolveu montar uma peça religiosa “O Sacrifício de Abraão”. Para isto requisitamos novos atores. Edmilson Nunes fazia uma participação especial. Quinquinha, na época era um garotinho e fazia o papel do filho de Abraão, contracenando com um carneirinho vivo. Muita gente da plateia chorou diante do drama de Isaac, o personagem, filho de Abraão. E assim, produzimos por um longo período, uma infinidade de peças teatrais, algumas até premiadas em outras cidades.

Conhecidos na região, passamos a correr trecho e montar espetáculos em cidades vizinhas… Medina, Pedra Azul, Águas Vermelhas, Joaíma, Jequitinhonha, Encruzilhada, Poções, Planalto, Vitória da Conquista, Divisa Alegre, Itororó, Itambé, Itabuna, entre outras. Era a arte Cândido-Salense rompendo as fronteiras e mostrando que neste torrão existia um movimento artístico. À medida que o tempo foi passando, o Arte & Manhas se renovava, canalizando atores como Geraldo Sol (que depois seria diretor de algumas peças), José Bonifácio (que em 1994 recebeu rasgados elogios do ator global Jackson Costa em pleno Festival de Teatro de Itabuna), José Carlos Lima, José Ivanaldo Martins, José Lândio, Geraldo Flores (Mal Morrido), Rosemberg Oliveira – criador da trilha sonora da Peça “Cidade do Sossego” e vários outros. Os frutos deste trabalho foram colhidos em 1992, com a premiação do melhor texto do FIB – Festival de Inverno da Bahia com a peça “O Defunto Mal Morrido!”. Em 1981 montamos um espetáculo na antiga Boate O Casarão (o point da época). Fizemos uma peça ambientada no sertão nordestino, chamada TERRA BRUTA, estrelada por Vilma Farias que interpretava a protagonista, Sheila Schneider. Pedrinho e Pio faziam os jagunços. Zobinha, um jovem pacato e extremamente educado, debutava na arte cênica e era um dos melhores dos ensaios. Seu papel era duelar com os jagunços. No dia da estreia, Zôba resolveu tomar umas canjebrinas pra dar coragem e na hora de entrar no palco estava mais bêbado que um gambá. Chegou pra mim e perguntou: – Eu falo o que? – Ao ver o estado do caboclo, botei a mão na cabeça. Espaço lotado, ingressos esgotados, o que fazer? – Eu falo o que? – Insistia ele completamente moqueado. Quase rezando, pedi pra Pedrinho entrar e o “medicado” só entraria na parte final para trocar tiros, imaginei que mesmo bêbado ele pudesse fazer. – Quando eu mandar você entra e atira em Pedrinho. – Falei quase rezando. – E se a arma falhar? – Insistiu ele. – Você improvisa. Grandes atores improvisam. – Segue a encenação, Vilma arrebentando, Pedrinho e Pio dialogando, e eis que chega a hora do duelo final e eu empurro Zôba para fazer a cena. A plateia aplaudiu a entrada, porque imaginou que ele estivesse interpretando um bêbado. – Vou te matar, jagunço “fí” d’uma égua! – Falou com a voz trôpega. – Se prepare, capataz… lá vai chumbo! – Disse Pedrinho. Zôba apontou a espingarda e apertou o gatilho por três vezes e a arma falhou… desesperado, sapecou fora a arma, puxou uma peixeira e partiu pra cima de Pedrinho com uma ferocidade indescritível, meteu o  punhal e Pedrinho se desviou por instinto. A faca raspou-lhe a cabeça arrancando um tudo de cabelos. Ao ver o olhar assassino de Zôba, Pedrinho só conseguiu dizer: – Zôba de Deus… – butucando os olhos e testemunhou o caboclo partir pra cima dele como um verdadeiro matador.  O elenco todinho percebeu que Pedrinho corria risco de vida, a mulherada abriu o berreiro e Pedrinho, morrendo de medo desembestou correndo pelo palco e Zobinha atrás esfaqueando o vento. Só parou quando foi contido pelos contrarregras. Sem entender absolutamente nada o público aplaudiu efusivamente, inclusive, pedindo bis. Enquanto Zobinha era desarmado, nos bastidores, Pedrinho com um furo na cabeça, agradecia a Deus, por pouco não foi assassinado de verdade.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadra de Janeiro

Lua nova de verão, 2024