Era um tempo cavernoso, quem desenvolvia o ofício de delegado por aqui, era o famoso e destemido Zelito. Estamos em 1989, ano da graça do nosso Senhor. Houve uma tomada de poder e o novo intendente mandou buscar o temido delegado lá nas bandas de Encruzilhada, apostava todas as suas fichas que ele seria o nome ideal para comandar a nossa delegacia, e, por tabela, combater o crime que andava entranhado na nossa sociedade, tendo como “cereja do bolo” os roubos quase diários das cargas que eram vendidas diariamente à luz do dia no comércio local. Nesta época era impossível comandar uma delegacia sem a ajuda – nem sempre luxuosa – da guarda municipal. Assim, o vício fazia que as nossas “autoridades” fossem os primeiros a saquear e vender os produtos subtraídos elevando o nível das críticas em toda a região. Recentemente faleceu a figura que foi peça chave – sem trocadilhos – desta história que vou contar. Antes de se transformar no “político” que toda a cidade conheceu, ele era um excelente “chapa”, trabalhador feito o diabo e conhecido pela alcunha de João Corta-Pau. Assim, sem nenhum aviso o moço deu uma bistunta e passou de uma hora pra outra a desfilar pelas ruas de paletó, combinando sapato com meia soquete e bermuda, levando a tiracolo uma velha valise entupida até os beiços de papeis sem importância.
Mas, para melhor compreensão, melhor voltarmos um pouco no tempo. Ali pelos meados de 1987 alguns espertalhões se uniram para criar um novo partido político, visando obter a grana que é disponibilizada para este fim. Viajaram à Salvador, se reuniram com o excelentíssimo, deram entrada nos papeis e após prometer “encher” o deputado de votos, retornaram otimistas para “Candin”. Reuniões, filiações (quase que à força) de quem queria e quem não queriam participar do partido, e, ao montar o diretório, por falta absoluta de quórum, tiveram que engolir João Corta-Pau (único eleitor presente) dando-lhe o título devidamente carimbado e assinado de “Secretário do Partido”. Para João isto era um título que só pessoas importantes podiam ter, assim, ficou duas noites “incarreadas” sem dormir. No dia da eleição o grupo conseguiu dar algumas dezenas de votos ao excelentíssimo senhor deputado. Após algumas comemorações pelo sucesso obtido, Corta-Pau (que até podia ser aluado, mas não era bobo) começou a perceber que estava sendo preterido pela legenda. A gota d’água veio quando o deputado veio de Salvador às vésperas da eleição municipal fazer uma visitinha “surpresa” aos “caciques do partido”. Completamente ignorado e esquecido pela cúpula, eis que um furioso e incontido Corta-Pau se viu obrigado a arrombar na base dos chutes a reforçada porta do recinto que servia de abrigo para os reunidos. Assustados, os “líderes do partido” (com o aval do excelentíssimo) garantiram-lhe uma vaga no governo municipal – como já tinham feito às devidas indicações na calada da noite, tiveram que refazer às pressas a distribuição dos cargos. Assim que a vitória foi confirmada o único cargo que sobrou para Corta foi o de guarda Municipal. Indignado, ameaçou dar um calundu, mas foi gentilmente convencido que exerceria o recém-criado cargo de “SOLDADO MUNICIPAL”. A proposta fez o pobre homem abrir um enorme sorriso com a boca banguela e sentir que ele – quase um “João Ninguém” -, seria a partir daquela data uma “autoridade constituída” e entraria definitivamente para os anais históricos da cidade. Convidado às pressas para uma reunião no gabinete do Prefeito, o delegado Zelito que entrou esperando um aumento salarial pelos serviços prestados foi surpreendido pela notícia da indicação obrigatória de João Corta-Pau.
– Não! Não posso aceitar um maluco destes lá. A gente mexe com detentos e aluado com presos é uma equação que não fecha. Vai dar problemas… – Diante da persistência do Prefeito, Zelito viu-se obrigado a aceitar a transferência. No dia seguinte, antes mesmo de a Delegacia abrir as portas lá estava vestido a caráter o “Soldado Municipal” com os seus apetrechos, todos comprados em suaves prestações para serem quitados posteriormente. Além de um par de coturnos que lhe batia no meio das canelas, Corta-Pau ainda usava luvas – destas que deixam à mostra as pontas dos dedos –, óculos escuros destes usados pelos artistas dos filmes americanos e um monte de medalhas que lhe enfeitavam o peito. Quando Zelito bateu de frente com tanta indumentária, gastou duas horas do seu precioso tempo detalhando como eram as regras ali dentro. No dia seguinte os presos foram acordados às cinco da manhã com Corta sentando o porrete nas grades:
– Acorda cambada de vagabundos! O negócio aqui agora mudou! Quem vai cuidar de vocês agora sou eu, Corta-Pau, o soldado municipal! – Alucinados alguns presos mesmo através das grades tentaram garguelá-lo, mas foram rechaçados na base do cacete.
– Eu mando aqui. Escreveu não leu o pau comeu! – Falou o soldado municipal bastante enfezado! – Assim a vida dos presos virou um tormento! Todo santo dia às cinco da manhã os presos eram despertados por baldes de água fria atiradas com gosto pelo aluado! – Acorde lote de safados! Vagabundo tem que acordar cedo! Todo mundo de pé! – Que é isto Corta, endoidou? – Reclamavam os Presos. – Agora aqui tem lei, ouviram? – Gritava enlouquecido! – Todo mundo de pé, lote de cabras safados! Aproveitem e limpem a cela! – E assim, a vida dos presos que já era terrível, ficou insuportável! Querendo aumentar ainda mais a sua autoridade, o “Soldado” teve uma reunião com Zelito: – Delegado, estou sendo ameaçado de morte pelos presos. O senhor tem que me arrumar uma arma. O senhor já ouviu dizer que carcereiro anda desarmado? Ou você me dá um cano agora ou o intendente vai ficar sabendo. – Encheu tanto o saco que Zelito acabou disponibilizando para ele um velho e enferrujado revólver 22. De posse desta arma, ficou mais alegre que pinto ciscando lixo e após dar umas duas sopradas e uma bela limpada no bicho (nada que uns capuchos de algodão embebidos em óleo Singer não resolvessem) lá estava a arma brilhando na mão de Corta-Pau. Claro que não funcionava, mas, os presos precisavam saber disso? Assim, “o policial” passou a entrar nas celas, sacar o revólver sem motivo e botar todo mundo contra a parede… Desconfiado que alguns presos souberam através do antigo carcereiro que a referida arma não funcionava direito, este guarda não gastou mais da metade do seu pequeno salário mandando dar um trato no velho revólver? Sim. Quando Zelito se ausentou por uns dias, eis que na calada da noite, Corta adentrou sorrateiramente a delegacia e deu logo uma meia dúzia de pipocos para o alto. Não restou um preso de pé! Assombrados, amontoaram-se uns em cima dos outros no canto da cela, uns tremendo, outros gritando e houve até quem desmaiasse de medo.
– A lei aqui sou eu! Logo eu serei delegado e quando isto acontecer vocês verão o que é bom para tosse! – Com a Semana Santa chegando, Zelito – que tinha parentes no Sul da Bahia – inventou uma viagem em cima da hora, na qual, ficaria todo o fim de semana comendo caranguejos e bebendo umas “Brahmas” com a família. Sozinho Corta-Pau se sentiu “poderoso”. Logo cedinho já foi abrindo todas as celas e de posse do seu famoso 22 exigiu que todos os detentos – sem exceção – fossem (em fila indiana) para a rua, ali mesmo na porta da delegacia, forçou os presos a fazerem exercícios físicos. Foram mais de três horas de saltos ornamentais, alongamentos prolongados, contorcionismos profundos e variados gritos de dor e quando os pobres presos já não mais se aguentavam de pé eis que um carro bastante conhecido, estaciona bem devagarinho na porta da delegacia e assim que a porta se abre, quem bota calmamente a cabeça para fora do veículo? Sim. Zelito, o delegado.
– Tudo bem aí, pessoal?!!! – Desnecessário dizer o susto que o guarda tomou: – Delegado Zelito? O senhor está fazendo o que aqui?! – perguntou constrangido! – Ué! Pelo que eu sei, trabalho aqui, esqueceu? E o que estão fazendo os presos aqui fora? – Corta-Pau olhou para os presos, tentou falar, gaguejou para lá, gaguejou para cá e quem disse que a voz saiu?
– Estou lhe perguntando, seu Guarda! Quem soltou os meus presos? Você está surdo, Guarda Corta-Pau? – Diante da indefinição, o prisioneiro Cagão que era quem mais sofria na unha de Corta, resolveu dedurar:
– Foi ele, Delegado, que meteu o revólver em “nóis” e forçou “nóis fazê físca”! Tamo sofrendo desde sete da manhã. – Falou detalhando minunciosamente tudo o que acontecia quando Zelito não estava presente!
– Me dê sua arma agora, João Corta-Pau! – Exigiu Zelito berrando de raiva! – Oxente, Zelito! O que tem demais eles fazerem uma “fiscazinha”? – Mal terminou de completar a frase e já foi levando um bofetão do delegado bem “no pé dos ouvidos”, caiu de pernas pra cima derrubando “Cagão” por tabela! Nem precisou repetir. Em uma velocidade estonteante Corta-Pau se levantou entregando tudo o que tinha. Cartucheira, arma, coldre e até os óculos… – Cagão, dê uns cascudos neste moleque e meta ele na cadeia! – Era tudo que o preso sonhava, furioso, pegou o guarda pelo pescoço e o conduziu na base do sopapo delegacia adentro.
– E vocês, todo mundo dentro das celas! – Foi uma correria só. Entraram e se trancaram, jogando em seguida a penca de chaves no pátio. Para sorte de Corta-Pau, ele foi trancafiado em uma cela individual, mas, como era Sexta-Feira da Paixão só foi solto na segunda-feira. Antes de ser solto ainda levou uns bons cascudos dos presos que estavam indignados. Ao sair à rua, correu para falar com o intendente que o ignorou solenemente, tentou falar com o Secretário e foi forçado a desistir diante dos cinco guardas postados a porta, se insistisse levava uma surra. Abandonado e desolado, o “ex-Soldado Municipal” que já era aluado, endoidou de vez. Perdeu a razão, os amigos e até a família, passando assim, a andar pelas vias públicas todo engravatado, combinando paletó com tênis e bermuda. O grande mistério é a penca de chaves que levava sempre a tiracolo para onde ia. Quando perguntado respondia com um sorriso amarelo:
– São as chaves da cadeia! Tenho que cuidar dos presos!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, inverno, quadras de agosto, Crescente de 2023.