Joca chegou à Nova Conquista bem “pequerrucho”. Com uns cinco a seis anos de idade já era obrigado a tanger pelas ruas da recém-emancipada cidade os bodes e carneiros que a sua família engordava para serem vendidos nos açougues da avenida Rio Branco. O seu velho pai (e toda a família) veio dar por aqui fugindo da seca que assolava o norte/nordeste nos anos 1960. Chegou, olhou, gostou e edificou residência. Seu Bastião era um velho nordestino daqueles que conduzia a família com mão de ferro, Joca, apesar de miudinho, descobriu desde muito cedo a necessidade de contribuir com as despesas da casa. Era muito comum ver o garoto tangendo o rebanho de bodes e carneiros pelos apertados caminhos de matos com sua varinha de marmelo.
Apesar das dificuldades, quando ainda estudava, este menino se revelou muito inteligente. Com dez anos de idade, já ganhava uns cobres promovendo shows em um pequeno circo improvisado com lençóis emprestados dos varais das casas vizinhas, madeiras e sacos de estopas. Em um terreno baldio reunia a molecada da rua e os travestia de mágicos, malabaristas, bailarinas, contorcionistas e palhaços – todos da sua idade. Os filhos mais abastados pagavam ingressos para assistirem ao espetáculo e assim, Joca e trupe conseguiam levantar uma graninha pra defender o lanche. Largou o circo e ao lado do poeta Billy Roger criou a segunda banda musical da cidade (a primeira foi a Sérgio Som) onde um velho violão faltando algumas cordas e meia dúzia de latas vazias de Leite Ninho (improvisadas como bateria, tocada com zelo pelo garoto) faziam parte dos instrumentos. O tempo passou e o menino Joca virou uma das referências da recém-fundada Nova Conquista. Revelou-se poeta, compositor, baterista, além de bom pai de família.
Apesar de todo este talento, Joca tinha um problemão. Desde muito cedo percebeu que não se dava muito bem com o álcool. Toda vez que tomava suas talagadas, ficava em um grau de enfezação que metia até medo. Era uma valentia lascada, brigava com todo mundo, quebrava os moveis da casa da sua mãe, atirava pratos no meio da rua, garrafas nas paredes e completamente enlouquecido, saía do prumo, inclusive, chamando a atenção da cidade inteira. Ninguém era capaz de controlá-lo. – Hoje eu estou com a gota serena… arruma aí um valente pra gente se acabar aqui mesmo no meio rua, arrume… é pra só um sair vivo da peleja! Tem algum valente aí? Ah, se tiver manda me dizer que hoje eu estou com a febre do rato!!!
Dizia cambaleante pelas ruas. Rapaz, Joca pintou e bordou aqui em “Candin”. Quando “medicado” saía botando gente pra correr, muitas vezes na base do supetão. O que mais ele gostava era de chegar em um buteco, encher o dono de cascudos e depois de jogá-lo no meio da rua abria as portas para os relentos beberem e comerem por conta da casa. Após tomar o buteco, subia no balcão e passava a noite inteirinha discursando e entornando suas canjebrinas. Quando o efeito da cachaça passava, lá ia ele no dia seguinte, cabisbaixo, pedir desculpas e pagar todas as despesas. Isto acontecia sempre.
Uma vez, se juntou com José Carlos Lima e quando o efeito da cachaça passou lá estavam eles, presos, na cidade de Anagé. Tiveram que pagar uma fortuna para serem soltos. Nos aniversários ou casamentos em que não era convidado, ele chegava embriagado e dava um show… como da vez em que houve uma festa de casamento na Boate O Casarão. Joca quebrou a porta, entrou a força e após confiscar todos os espetos (enquanto a carne era assada) convidou uma renca de relentos para se banquetearem diante dos olhos perplexos dos noivos. Apesar de tudo isso, este caboclo ainda era bastante considerado na cidade. Sua família dizia que aquilo era um espírito beberrão que se apossava do seu corpo. Tentaram tirar a cachaça de Joca em um terreiro de macumba, chegando, inclusive, a levar uma surra apoteótica do Velho Sena, com um cordão de São Francisco dobrado. Apesar dos vincos que marcaram o seu corpo por mais de um mês, de nada adiantou. Ele continuou bebendo e aprontando.
Trabalhou um bom tempo na única agência bancária que existia por aqui. Uma vez virou a noite tomando suas talagadas e oito da manhã quando a agência abriu, ele apareceu completamente moqueado com um litro de pinga debaixo do suvaco. Apesar de enxotado pelo gerente, deu um trabalhão lascado para deixar a agência, o gerente teve que usar os serviços do segurança Zé Pereira que o levou quase à força. Neste dia, por muito pouco Joca não perdeu o emprego. Depois de anos trabalhando no banco, este moço conseguiu comprar com o suor do seu rosto, um jipe caindo aos pedaços. O bicho estava tão ruim que precisou ser rebocado por um carro de boi até a porta da sua casa. Depois de consertá-lo por quase um ano, todo santo dia, Joca deixou o jipão todo incrementado atraindo a atenção dos moradores. Uma bela pintada, quatro rodonas que só carro de pleibóis tem, uma capota reluzente e um jogo de luzes de neon – que decorava o teto -, o veículo ficou realmente espetacular… o ronco do motor fazia os amantes de automóveis tremerem na base.
Apesar de ter o veículo mais cobiçado da cidade, Joca queria mesmo era ter um cavalo alazão, tipo manga larga marchador, onde pudesse mandar fazer um arreio sob medida e desfilar imponente pelas ruas da cidade, montado elegantemente como um cangaceiro, ou algum vaqueiro nordestino. Enquanto o seu sonho não se concretizava, ele ia quebrando o galho com o jipão envenenado. Saía às ruas dando cavalos de pau com aquela renca de meninos correndo atrás. – Boa, Joca, faz de novo! – Um belo dia não apareceu um destes ciganos que andam de porta em porta, todo paramentado, inclusive, trazendo um chapéu de gaúcho na cabeça (e um lenço preto amarrado ao pescoço) conduzindo a tiracolo um velho pangaré?
– Me falaste que queres adquirir um alazão, é verdade? – Antes que Joca respondesse ele já foi lhe empurrando um cavalo branco todo desbotado. – Taí, ó. Vendo quase de graça. Agora você pode realizar o seu sonho. – Nem era preciso ser expert em cavalos para ver que o bicho estava em péssimo estado de conservação, todo mochilado. A boca torta, os dentes cariados e tronchos, uma pereba nas ventas, dois imensos ossos estufados na parte traseira dos quartos, os cascos todos lambuzados de óleo queimado, usado para mascarar as rachaduras e se ainda não bastasse, trazia o pelo todo retocado com uma tinta branca encardida…
Claro que era um cavalo maquiado, mas a paixão de Joca pelo animal falou mais alto, após dar umas duas ou três acariciadas no bicho, umas duas cheiradas no cangote e ver o sorrisão que o cavalo (visivelmente maltratado) lhe devolveu, um embevecido Joca aceitou fazer negócio na hora. Como o único bem que possuía era o jipão, topou trocá-lo imediatamente pelo pangaré, inclusive, só não voltou uma graninha (que ele nem tinha, mas quis emprestar do irmão) porque o cavalo não tinha procedência, assim, aceitaram trocar um pelo outro no pau. O cigano ficou tão empolgado com o negócio que comemorou dando com o jipão, meia dúzia de cavalos de pau na porta da casa de Joca.
Com o sonho realizado, Joca ficou horas abraçado e só alisando o velho pangaré. Dava dois banhos por dia, passava xampu perfumado, água de cheiro importada e após meia hora de escovação, dava uma boa ariada nos dentes tronchos do animal. Diariamente saía mato adentro cortando capim braquiara para alimentar o equino que se tornou um morador cativo da sua casa, inclusive, assistindo televisão na sala e dormindo na garagem novinha em folha que outrora, abrigara o jipão! Os moradores o via diariamente passeando feliz, sempre puxando delicadamente o animal pela rédea. À medida que o tempo passava o bicho ia ficando cada vez mais gordo. Logo começaram as reclamações, o fedor de bosta e mijos emanados da garagem iam dar diretamente nas cozinhas dos vizinhos. Para não entrar em desavença com a sua vizinhança, Joca passou a acordar bem cedinho e diariamente dava uma bela de uma faxina na garagem, inclusive, maquiando o mau cheiro com creolina, cânfora, desinfetantes, água sanitária, detergente e até perfume.
Um belo dia – depois de adquirir em suaves prestações um arreio de prata – ele achou que chegara a hora de dar a primeira montada da sua vida. Após se paramentar todinho como um vaqueiro nordestino, usando, inclusive, alpercatas de sola, esporas, chapéu e gibão de couro… Subiu no bicho, pediu ao filho mais velho para tirar uma chapa e quando tentou cavalgar, percebeu que o pobre do cavalo caxingava mais que andava. Foi aí que descobriu ter caído no “conto do vigário” do cigano malandrão. Com o coração partido, testemunhou que o pobre do pangaré, além de ter os quatros cascos rachados, ainda tinha uma das patas em carne viva e entupida de morotós. Desesperado saiu pelas ruas em busca de ajuda. Depois de encher uma caderneta inteira de sugestões, optou pelo método que ele achou mais simples, lavar a pata bichada com óleo diesel e esquentar um pouquinho com um palito de fósforo – garantiram que seria tiro e queda. Caiu na bobagem de fazer… pra que?… Em um domingo pela manhã, reuniu os filhos pequenos, comprou dois litros de diesel e após encharcar a pata do bicho com um pedaço de estopa, ali mesmo no quintal, riscou o fósforo… foi surpreendido por um pipoco violento acompanhado por uma rajada de fogo! O que restou do pobre animal foi à memória dos dois relinchos escandalosos de dor e do espetacular salto sobre o muro do seu quintal, culminando com uma carreira desabalada rumo ao rio da ponte com a pata mais incandescente que a cabeça do motoqueiro fantasma. O pobre animal bateu o seu próprio recorde de velocidade.
Depois deste dia, nem Jipe e nem cavalo. Joca perdera os dois. Ainda saiu oferecendo uma gratificação para quem desse alguma informação do cigano malandrão, porém, espera até hoje a tal informação. O tempo passou e Joca ficou no prejuízo.
Hoje a classe que ele mais odeia na face da terra é o tal do cigano, quando enxerga algum – mesmo de longe – a boca fica seca de raiva, olha com ódio para o caboclo e após constatar não ser o caloteiro que lhe passou a perna… segue ruminando o seu caminho.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor
Cândido Sales, Bahia. Quadras de dezembro de 2024.
Lua Nova de Primavera.