O PAGADOR DE PROMESSAS
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O PAGADOR DE PROMESSAS

Joca e Crispim eram amigos, Joca era um caboclo estranho, tímido de fazer dó. Falava pausadamente, andava lentamente, demorava pra entender as piadas, tinha poucos amigos e levou uma eternidade para conseguir a primeira namorada. Crispim também era acanhado, porém, era uma pouco mais vivido, já que – dizia-se – formado na arte da sobrevivência. Joca estudava em Vitória da Conquista e Crispim morava em “Candin”. Periodicamente o amigo Joca vinha visitá-lo, tanto que Dona Chica (mãe de Crispim) o tinha como uma grande influência. Dona Chica gostava tanto de Joca que certa vez ao vê-lo visitar o filho, entrou na sua casa um cachorrinho, ao vê-lo, a mãe de Crispim começou a bajular o cadelo. – Ô cachorrim bunitim, é seu, Joca? – Não senhora, Dona Chica, nunca o vi mais gordo! – Bastou ouvir a resposta para Dona Chica pegar uma vassoura e dar na cabeça do bichinho: – Sai daqui diabo! Fora, está sujando a casa, fora! – Neste tempo, quando rolava alguma discussão sobre conhecimento geral, adivinha quem era consultado? – Joca, o homem pisou na lua ou não pisou? Francisco está teimando que isso nunca aconteceu. Apostamos 10 bolinhas de gude e viemos tirar a dúvida com você. Fala aí, ganhei ou não ganhei? – Sem alterar a expressão, Joca entrava na sua casa, voltava trazendo uma Revista Veja da coleção do seu pai, abria na página correta e dirimia as dúvidas: – Eis aí a manchete da Revista Veja; CHEGARAM! – abria a revista, fazia uma pequena explanação e o ganhador saía pulando feliz. Os caminhos de Joca e Crispim se entrelaçaram quando Dona Chica descobriu que Joca era muito mais alto que o seu filho e fez uma promessa para Crispim ficar do mesmo tamanho do amigo. Não foi que deu certo? Em menos de dois anos Crispim ficou espigadão igual ao Joca.  Pois foi. Lamentavelmente dona Chica morreu sem pagar a promessa.

Apesar de ruim de bola, Joca adorava futebol. Demorou pra decidir se seria centroavante ou goleiro. Como centroavante era grosso de fazer dó, ficava lá na frente chutando de canela. Como goleiro era uma lástima, engolia frangos apoteóticos e fazia defesas milagrosas. Vira e mexe lá estava ele todo ralado e o seu time perdendo por 5 a zero. Crispim que era calmo, sorridente e fala mansa, quando entrava em campo se transformava completamente, virava o capeta, xingando os jogadores do próprio time:

– Vai desgraça ruim, deixa de ser grosso, miserável! – Não foi que ao ficar sabendo do time de Crispim, Joca não cismou de jogar? Sim. Procurou Crispim e se apresentou: – Ô Crispim, eu sou centroavante, posso jogar no seu time? – Pego de surpresa, Crispim que tinha em Joca um ídolo (devido ao seu inenarrável nível intelectual) viu-se obrigado a escalá-lo no famoso Meio-Boca. Na época (1969) os dois únicos times infanto-juvenil que existiam por aqui eram o Meio-Boca e o time do Colégio Orlando Spínola que também era conhecido por “Gináis”. O Meio-Boca ganhava quase sempre. Vez em quando o jogo terminava em tumba com nego trocando sopapos a torto e a direito. Como amigo e admirador de Joca, Crispim barrou “Veão” que era um centroavante rompedor para escalá-lo, mesmo sabendo que o amigo era grosso de fazer dó. E lá vai rolando a pelada, jogo duro, finalzinho do primeiro tempo, zero a zero, Crispim espumando os cantos da boca de tanto xingar e Joca sai lá da frente e vem falar com Crispim: – Ô Crispim fica calmo que eu vou fazer o gol! – O jogo rolando, bola na trave, chute por cima, nego dando bicuda pro mato e Joca ali na zaga, ao lado de Crispim. – Eu vou marcar o gol. Fica calmo, vamos ganhar este jogo. – Falou e voltou, deixando Crispim falando pra si: – Marcar como, grosso desse jeito? – Enquanto a pressão continuava com bola alçada sobre a área, o “Gináis” rebatendo do jeito que dava e a bola não entrava. Faltando um minuto para acabar, o zagueirão Trombone do Gináis dá um bicudaço e acerta a cabeça de Joca, a bola pega um efeito e passa por entre as pernas do goleirão indo pro fundo da rede. Um a zero para o Meio-Boca. O juiz termina o jogo e os “relentos” saem comemorando, levando Joca nos ombros.

Em meados dos anos 1980, quando se construiu por aqui uma quadra sofrível, Joca já morava definitivamente em Vitória da Conquista. Vez em quando saía alguém mutilado desta quadra devido às imensas crateras existentes em toda a sua extensão. Ao saber que o Meio-Boca estava disputando um campeonato de futsal, Joca quis porque quis jogar no time do amigo. – Mas Joca, você está morando em Conquista, o jogo é pela manhã, não vai dar tempo de você chegar. – Dizia Crispim diante da insistência de Joca. – Eu agora sou goleiro. Fecho o gol. Me inscreve aí eu dou um jeito pra vir jogar mesmo que seja pela manhã. – Mas nós já temos goleiro… – Eu fico no banco. – Insistia o amigo. – Diante da consideração que Crispim tinha por Joca, acabou inscrevendo o amigo. O goleiro do Meio-Boca era Bastião, frangueiro de fazer dó. As três primeiras partidas foram decepcionantes. A primeira o Meio-Boca perdeu por 7 a 5, a segunda de 8 a 6 e a terceira por 12 a 10. Nesta altura, como não ganhava de ninguém, os principais jogadores do time começaram a fazer corpo mole, deixando o “departamento médico” lotado. Ao perceber que o problema do time era Bastião, Crispim solicitou através de um velho orelhão os serviços de Joca: – Alô Joca, o jogo vai ser amanhã as oito da manhã? Não dá pra jogar mais com o frangueiro do Bastião. Vem pra ser titular! – Era tudo o que Joca esperava. Respondeu na hora. – Sim, vou estar aí no horário. – No dia seguinte, seis da manhã, Crispim era acordado pelo barulhão desgraçado de uma motocicleta acelerando na porta da sua casa. Meio aluado o boleiro se levanta e dá de frente com uma espécie de “astronauta”. Assim que tirou o capacete Crispim viu o seu amigo Joca descer da imensa moto completamente paramentado para o jogo. Camisa de goleiro, toda colorida, luvas, tornozeleira, joelheira, viseira, munhequeira e mais uma renca de aparatos, só faltou jogar de capacete! – Estou pronto pra fechar o gol. – Crispim já chegou à quadra ao lado de Joca (todo paramentado) com um sorrisão de todo tamanho e já foi intimando Bastião:

– Bastião, hoje você vai ficar no banco, quem vai jogar é o Joca. – Claro que Bastião deu um calundu. – Quer dizer que o culpado sou eu? Nosso time não joga porra nenhuma e o barrado sou eu? Isso é injusto! – De nada adiantou os protestos de Bastião. O jogo contra o Fanfarrice começou equilibrado até que o ala do time adversário meteu uma bicuda lá do meio da quadra, a pelota veio fraca, só que Joca querendo fazer bonito pulou igual um gato se esborrachando no chão deixando a bola passar por baixo do seu corpo. Um a zero Fanfarrice. Frangaço. A partir daí descobriram que para marcar, bastava chutar de qualquer parte da quadra. Virou um estrupício. Até o goleiro adversário marcou. Placar final, 16 a 3. Duro foi Crispim aguentar Bastião zoando.

– Viram aí que eu não era o culpado? Nosso time é uma bosta! Eu nunca levei 16 gols em um jogo. Oí, foi buscar o goleirão, se lascou! – Depois dessa, Joca foi sutilmente afastado, Bastião recuperou a posição e ficou todo feliz.

O tempo passa e Crispim se torna adulto, constitui família e um belo dia deu de visitar Bom Jesus da Lapa. A esposa sabendo da promessa, exigiu que o marido pagasse o prometido à mãe falecida. – Moça, agora sou adulto, vou entrar na igreja da Lapa vestido de Monge Franciscano? Vou virar piada!

– Sua mãe morreu e você vai honrar a palavra dela, homem tem que ter palavra. – Diante da pressão, Crispim se viu obrigado a pagar a promessa. Logo, partiram em uma velha kombi e apearam em Bom Jesus da Lapa. Cauteloso, Crispim fez um estudo detalhado do território antes de cumprir a devoção. Ao lado da esposa calculou quando tempo ele (vestido de frade) levaria da porta da igreja até a gruta onde se pagaria a devoção. Durante o planejamento imaginou que faria tudo em mais ou menos uma hora, assim, foi dormir tranquilo e logo na manhã do dia seguinte seguiu com toda a família para a porta da igreja. Ali mesmo vestiu a roupa de Frade Capuchinho e escondido atrás do capuz adentrou a igreja completamente lotada. – Licença, por favor. Me deixa passar!… – A igreja entupida de gente rezando, cantando, chorando e Crispim forçando a passagem. Como tinha muita gente o deslocamento era lentíssimo, Crispim gritando, empurrando e os fiéis abrindo lentamente o caminho. Quando estava na metade, bem no centro do templo um coxo de muleta olhou embevecido para o pároco e gritou. – Meu Deus! É ele, o Frei dos meus sonhos, ele veio nos curar! – Gritou, se ajoelhou e para desespero de Crispim, metade da igreja se ajoelhou junto e o caos se instalou: Gente gritando, outros chorando, alguns em transe se agarrando em todas as partes do corpo do infeliz, rasgando as vestes, beijando as mãos e implorando aos prantos: – Bênça, padre! Sua bênção, absorva os nossos pecados frei, nos salve deste mundo pecador, nos absorva, santo-frei, nos absorva… – Logo o infeliz se viu cercado, nego lhe puxando à força para um lado, outros puxando para o outro, uns agarrando as suas vestes e outros tentando abraçá-lo a qualquer custo… Desesperado, Crispim correu atropelando aquela renca de fieis, pisando em quem estava ajoelhado, puxando a esposa pelo braço que por sua vez puxava aquela renca de filhos… só pensava em chegar logo à gruta, fazer as orações, deixar as vestes e capar o gato dali. Como era forte foi levando todo mundo no peito e quando chegou à gruta, se surpreendeu com a imensa grade que fechava a passagem, envolta à grossas correntes, trancada por um cadeado de todo tamanho. Atônito o pobre coitado sacudiu desesperadamente as grades e abriu o berreiro: – Não, não pode estar trancada, não pode! – Ao vê-lo naquele desespero a renca de fiéis se ajoelharam e hipotecaram solidariedade chorando ainda mais alto. O barulho foi tanto que houve até um intervalo na missa que era dita simultaneamente em latim. Ao perguntar sobre a lacração da gruta, a esposa de Crispim ficou sabendo que só seria aberta após as duas missas que aconteceriam naquela manhã. Seriam mais duas horas de batina. Sem alternativas, Crispim sentiu uma dor enorme no estômago, se dobrou e quando levantou a cabeça percebeu que metade da igreja havia se ajoelhado com ele. A esposa ao ver o desespero do marido que soava em bicas, o fez sentar em uma das cadeiras e ficou lhe abanando. Nesta altura a túnica já estava empapuçada de suor. Enquanto o infeliz era abanado por um leque e bebia um copo de água gelada, a multidão esquecia completamente da missa (cujo padre italiano se matava para atrair as atenções) se ajoelhando diante do pobre do Crispim completamente desolado. Mais molhado que pinto saído do ovo, ele rezava para as horas passarem depressa.

Após duas missas encarreadas, a grade foi retirada e Crispim foi o primeiro a entrar na gruta. Nem rezou direito, retirou a batina ensopada de suor, jogou em um canto da gruta e saiu de pinote, correndo para a rua com a família toda atrás. Sem dizer uma palavra, desembestou em direção ao primeiro boteco que achou pelo caminho, se sentou, respirou fundo, pediu uma cerveja e bebeu no gargalo. Enfim, pagara a promessa. Passou o resto do dia sentado, bebendo tudo o que tinha direito.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e escritor.

Cândido Sales, Ba. Quadra de Setembro de 2024. Crescente de inverno.