O MATADOR DE SUÇUARANAS
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O MATADOR DE SUÇUARANAS

– GRRRRRHHHHHH! – Ecoou o brado retumbante, no escuro da noite, em meio à floresta intransponível. Pra lá de “medicado”, o matador Nicolau Ferreira da Silva arrepiou os cabelos, apurou os ouvidos e percebeu que aquele berro aterrador era o característico esturro da onça suçuarana. Bêbado igual um gambá, o matador engatilhou a sua cartucheira ao tempo em que saltava em sua frente a gigantesca predadora parda, esturrando ferozmente. Qualquer caboclo menos corajoso, ao ver aquela bitela de onça, com a boca aberta, rosnando daquele jeito, cairia durinho. Para tocar ainda mais terror na história, a suçuarana rosnava para a sua presa exalando um fedor medonho de enxofre através do bafo… Era ela, a dizimadora, matadora de bichos e homens, rainha absoluta das matas, temida e respeitada por bichos e gente. Sim… era a gata assassina, famosa por jamais perder a viagem. Quando surgia na frente de alguma alma penada só havia duas opções… correr ou morrer! E ali bem no meio da mata, os dois predadores se olhavam mutuamente. Nicolau, apesar de embriagado, contemplou de soslaio a gigantesca suçuarana fungando pelas ventas, exibindo as presas afiadas, pronta para dar o bote mortal…  à luz da lua cheia, no meio da noite o jagunço percebeu que mais uma vez teria que lutar pela sua vida, apenas um dos dois sairia daquele embate vivo… Não haveria outra alternativa, Nicolau teria que sobreviver àquele ataque!

Para um melhor entendimento, voltaremos um pouco no tempo, exatamente no começo na manhã daquele mesmo dia, quando o jagunço foi convidado por Totonho, amigo e parceiro de caçada, para degustar um delicioso caititu na brasa em homenagem ao seu 50º aniversário. Era sabido por todos que o jagunço Nicolau tinha dois grandes prazeres na vida… matar e comer. Não necessariamente nesta ordem. Oriundo do Sul da Bahia, Nicolau Ferreira da Silva, sabe Deus o porquê, deu uma bistunta e veio dar pelas bandas do Porto de Santa Cruz no início de 1936, ano da era cristã.

Durante a festa, o jagunço se fartou com a variedade de assados e de canjebrinas à disposição dos convidados. O amigo Totonho não economizara nos comes e bebes. Após comer de lamber os beiços, o jagunço passou a tarde inteira se balançando em uma rede armada no alpendre da casa e ao cair da noite, pra lá de enfastiado, resolveu cruzar caminhando a mata selvagem que dava acesso à sua fazenda. Só quem tinha um amplo domínio do território se atreveria a fazer aquela caminhada durante a noite. Era uma distância de mais ou menos duas léguas e ele preferia tirar na base da canela, dispensando assim, o auxílio luxuoso do confortável lombo de Catarina, a sua mula de estimação. Afinal de contas, precisava levar em consideração o que falara os búzios de Joquinha Benzedor. O jovem curador dizia que os búzios pediram para o jagunço deixar o sedentarismo e voltar a fazer as suas caminhadas. Nicolau adorava se “empanzinar” com caititu na brasa e os búzios falaram que aquilo iria vitimá-lo em um breve futuro! O jagunço precisava tomar termo e cuidar da saúde!

Mal entrara na mata e a noite já chegou trazendo uma refrescante brisa. O matador seguia observando a algazarra dos pássaros disputando um lugar nas imensas árvores para se agasalhar, enquanto as corujas, os morcegos e o tenebroso bacurau se fazia ouvir no breu da noite entrelaçando os seus cantos agourentos ao afinado coaxar dos sapos… Arrotando, pra lá de enfastiado, Nicolau seguia trôpego pela pequena trilha, levando ainda na boca o gosto amargo da temperada. O caboclo só pensava em chegar em casa, tomar uma banho quente com a água aquecida no fogão a lenha da sua querida esposa e dormir o sono dos justos. Mal chegou à “Gruta da Coruja” (famosa pela capacidade que a dona da gruta tinha em assombrar viajantes) já foi ouvindo um “turrado” que ele conhecia bem. A brevidade do barulho o fez levantar as orelhas e arrepiar os cabelos. Aquele homem nunca temera nada sobre a face da terra, porém, o rugido era tão medonho que mesmo do alto da sua experiencia, ele acabou se assustando. Após o arrepio inicial, o jagunço se recompôs do susto, corrigiu a cartucheira e alisou a lâmina da sua inseparável peixeira que trazia consigo desde os tempos de caixeiro-viajante.

Rezava a lenda que em nenhuma hipótese ele se separava daquela faca que “dormia” debaixo do seu travesseiro. Mesmo quando tomava banho de rio e era obrigado a se despir das velhas roupas e das botas furadas, o jagunço jamais se separava daquela peixeira, a mesma que um dia cortara em duas partes uma sucuri que se meteu a se enroscar com ele enquanto se banhava nas águas pardas do rio. Quem testemunhou esta peleja – e não foram poucas as testemunhas – contam que uma enorme cobra se enroscou no pescoço de Nicolau tentando lhe sufocar. Após ambos submergirem por várias vezes, lá estava a cobra partida ao meio, cuja parte da cabeça subiu desesperada morro acima em uma corrida desenfreada, deixando atrás de si um rastro enorme de sangue. Os mais velhos confirmam até hoje que Nicolau levou o pedaço da cobra enroscado no pescoço e jogou bem na porta do Boteco de João saracura para quem quisessem ver. Ainda hoje existem relatos desta peleja que através dos tempos foi passando de avô para pai e de pai para filho.

– Oia, esse menino… Meu avô não era homem de mentira não, visse? Testemunhou tudo com aqueles mesmos “zóios” que a terra comeu! – relatava um empolgado neto confirmando a veracidade do sucedido.

Mas, enquanto o matador seguia empunhando os seus “ferros”, um novo esturro voltou a cortar o silencio da mata. Pássaros assustados bateram asas, duas capivaras apavoradas rasgaram o capim e no calor da noite, o suor destilava rapidamente o álcool ingerido pelo matador. Nicolau sabia que a onça suçuarana estava no seu encalço, doidinha para jantá-lo. No primeiro momento chegou a pensar em correr, porém, estava “medicado” demais para bater pernas. depois, comera demasiadamente e isso não contribuiria muito para que ele fugisse. Impossibilitado, imaginou que já passara dos cinquenta e se até aquela data nunca correra de nada, não seria aquela gata malcriada metida a onça, que iria fazer isso. Nesta altura, apesar da lua cheia, a mata escurecera como breu. Acostumado a andar na escuridão, Nicolau engatilhou a cartucheira, segurou firmemente a peixeira e seguiu o seu caminho. O jagunço era daqueles homens que quando acuado, enfrentava até o cão! Ficava mais eriçado que gato angorá diante de cachorro, mais ofegante que idoso subindo ladeira e mais saltitante que macaco comendo bananas. O indivíduo mudava até a própria cor, deixando de ser mulato para assumir um tom acinzentado. Rezava a lenda que era uma entidade que baixava nele o deixando completamente transformado. O certo era que o matador tinha o corpo fechado por um rezador e, periodicamente, prestava contas a um “pai de santo”. Os crimes que – segundo as más línguas – o jagunço cometera em vida não cabia nos dedos das mãos. Era muito comum Nicolau despachar algum desafeto com passagem só de ida para a “cidade dos pés-juntos! Quando saía da sua zona de conforto “butecava” os olhos, retesava os músculos, eriçava todos os pelos do corpo e puxava o ar com tanta força que era comparado a um touro raivoso na arena. E assim, lá ia Nicolau, braços abertos, olhos esbugalhados, emitindo um estranho grunhido por entre os dentes enquanto ouvia os galhos das árvores sendo quebrados por uma força invisível. Que a onça viesse, o jagunço estava pronto para o embate. Virava-se de um lado, olhava para o outro, sempre com gestos lentos, estudados e leves para não despertar o predador. E assim os minutos iam passando bem lentamente enquanto o esturro da onça passava a ser apenas um miado de uma gata faminta! Enquanto ele seguia em frente o felino movia-se quebrando os galhos das árvores. Nicolau não pretendia virar comida de onça (pelo menos) naquela noite. Afinal de contas já enfrentara inimigos mortais, poderosos coronéis, pistoleiros escolados e várias tocaias montadas por matadores cruéis, sobrevivera a todos. Ali estava ele, testemunha ocular de todas as histórias que vivera. Aquela seria apenas mais uma história para ser contada. Não seria ele a virar comida de onça depois de velho. E assim, passo a passo, estudava cada barulho que ouvia em meio à mata… Na mão direita a cartucheira, na esquerda a peixeira matadeira, queria mostrar para a suçuarana que não tinha medo dela. De repente, rasgando a mata feito um trovão, salta-lhe a frente tão veloz quanto um raio e rosnando ferozmente, a maior onça parda existente na região. Pulou em meio à estrada e ficou em posição de ataque esturrando em direção à Nicolau… Sim. Finalmente ali estava ela, a dizimadora de bichos e matadora de homens, rainha absoluta das matas, respeitada e temida por todos… a famosa onça suçuarana! Enorme, de olhos faiscantes e apresentando propositalmente as suas garras afiadas! A fera não miava como fazem a sua espécie, rosnava feito uma leoa querendo intimidar o matador. Estático, o jagunço frio como gelo, engatilhou a arma e olhou no fundo nos olhos da gata. Mostrava que ele também não a temia. Lentamente apontou a cartucheira em direção à onça enquanto a fitava nos olhos. A lua reluzia o pelo pardo da bicha lhe dando uma característica de horror. Matador experiente, o jagunço parou diante do puma, estudou os seus movimentos, calculou a distância entre eles… O turrado grosso e furioso não mais o incomodava… tal qual uma dançarina, a suçuarana bailava lentamente de um lado para outro, sempre na ponta das patas. Com extrema elegância pulou sobre um lajedo que existia ao lado da estrada e lá do alto começou a fitar a sua presa. Muita gente ao ver aquela fera com o bote armado correria apavorado, Nicolau que já vira a morte por várias ângulos, esperava apenas um erro da gata para contra-atacar. Depois de um esturro aterrador em direção à lua, a fera saltou violentamente em direção ao jagunço, que com uma incrível habilidade, esperou ela ficar a menos de meio metro do seu corpo e em pleno ar, com apenas uma das mãos, queimou por duas vezes o gatilho da velha cartucheira. O impacto do salto da onça derrubou violentamente Nicolau que caiu por baixo da fera. Enquanto a cartucheira descarregada voava para dentro da mata, a mão esquerda do matador, munida da sua peixeira de estimação, perfurava por seguidas vezes o couro pardo da suçuarana que miava de dor. O violento impacto fez Nicolau perder os sentidos.

No meio da estrada era possível se ver uma onça parda, inerte, sobre um corpo banhado de sangue. Nicolau perdera completamente a noção do tempo, ficara horas desacordado debaixo da onça. Algum tempo depois, o matador voltou a si, estava vivo. Os rugidos do puma foram substituídos por um miado fraco e angustiante de uma vida se esvaindo. Quando a onça parou de miar, Nicolau ainda assustado, abriu lentamente os olhos, um de cada vez, imaginando que estivesse morto às portas do inferno. Moveu lentamente um braço, logo depois o outro e por fim as duas pernas. Estava realmente vivo e inteiro. Coberto de sangue da cabeça aos pés, rolou o corpo do bicho para um lado, respirou profundamente e enquanto pitava um cigarro de fumo, contemplava embevecido a enorme presa abatida. Ambos os tiros foram certeiros e a peixeira completara o serviço. Após fumar o cigarro, abriu a boca da gata e retirou as suas presas.

Na penumbra, agradeceu pela sua vida. Estava vivo e sem nenhum osso quebrado. Uma raladura aqui, outra ali, um arranhão no pescoço e uma dorzinha nas costas. Nada de mais! Levantou a onça, jogou na cacunda e seguiu estrada afora, banhado pelos raios da lua que tranquilamente riscava o céu. Nicolau o jagunço matador, sobrevivera novamente e levava consigo mais uma história para se contar.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Março de 2023. Quarto-crescente de Outono.