O JEGUE DE BASTIANA.
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O JEGUE DE BASTIANA.

– Irmãos… Ontem na calada da noite eu fui despertado, atendendo um chamado do Espírito Santo… – Pregava em um megafone de lata o pastor Geraldo, da Congregação Batista “Sua Salvação”. O pastor era um caboclo ruivo, de sotaque sulista, barba espessa e cara de mau que ninguém sabia ao certo como veio dar por estas bandas. – Eis que ao dobrar a esquina da casa de irmã Tinana, o que eu vejo? Sim. O que eu vejo com estes olhos que a terra haverá de comer? O Capeta, meus irmãos… o Demônio, o Coisa Ruim, o Pé Virado, o Tinhoso, o Cão, o Satanás… preto feito um tição! Pelado e em forma de um recém-nascido, com dois chifres retorcidos na testa, os olhos esbugalhados da cor de duas brasas incandescentes, um rabo grosso e retorcido com um ferrão na ponta, rindo feito um endiabrado, cavalgando alucinado na noite de lua cheia no lombo em pelo daquele bicho satânico que a irmã Sebastiana chama de jumento… Este tarado precisa ser executado imediatamente. Ele é um jumento a serviço de Satanás! O inferno, irmãos desceu e está aqui neste torrão. – A pregação era tão efusiva que os pobres moradores faltavam botar ovos.

Estamos no povoado de Nova Conquista, em meados dos anos 1950, a água que abastecia as casas do vilarejo era conduzida em lombo de jumentos. À noite os bichos eram liberados para descansarem, no dia seguinte, logo cedo, caíam na lida novamente. Este trabalho sustentava muitas famílias. Uma carga de água era composta por quatro latas (daquelas usadas pelo querosene jacaré – quem passou dos 50 sabe do que estou falando) de 20 litros, estrategicamente colocadas no lombo do animal através de uma cangalha. Duas em cada um dos lados. Era um negócio tão lucrativo que muitos  “empresários” tinham verdadeiras frotas de jumentos. Neste tempo a principal diversão para os jovens do pequeno vilarejo eram as cascatas e corredeiras do Rio Pardo. Marculino era um destes rapazes que matava aula para ir para a beira do rio, esperando encontrar uma ou outra lavadeira seminua ou até mesmo com a roupa molhada e transparente. O jovem tinha a mania de ali pelo cair da tarde, se esconder em meio à vegetação ribeirinha tentando enxergar alguma moça mal vestida, se banhando. Geralmente a espera era compensada com uma ou outra donzela mais descontraída que propositalmente, nadava nua como viera ao mundo. Quando isso acontecia, os rapazes, ensandecidos, se “aliviavam” inapelavelmente na palma da mão. Do alto dos seus 17 anos, Marculino, acompanhado de Pedro Relento e Zé de Zulmira, disputavam no tapa o melhor lugar para assistirem ao “espetáculo”.  Algumas moças até que gostavam de se exibir. Maria de Sinhá, por exemplo, quando percebia algum movimento afoito nas moitas, tirava logo a roupa e completamente nua pulava dentro do rio, nadando de um lado para o outro, se deitando em seguida em cima de algum lajedo e ficava só esperando o “circo pegar fogo”. Escondido em meio ao mato, Marculino e os amigos eram acometidos de um indescritível ataque de fungueira. Fungava tanto que metia até medo. Após saciarem os seus desejos incontidos, se ouvia gritos, uivos, gemidos e até algo parecido com relincho vindo de dentro do mato. Maria de Sinhá abria um sorrisão de todo tamanho no rosto. Ela era desejada por todos os meninos do pequeno lugarejo e adorava isso. Apesar de toda esta tara, Marcolino era tímido de fazer dó, nunca tinha namorado na vida e beijo ele só sabia que existia por ter ouvido falar. Como o povoado inteiro sabia das suas manias, o nativo era conhecido pela alcunha de “Jumento de Bastiana” alusão à existência de um danado de um jegue que quando se encontrava no cio (e isto era uma constante) deixava as jumentinhas em polvorosa. Sebastiana Almeida de Jesus, dona Bastiana, era uma senhora negra, viúva, baixinha, que tinha uma “frota” de jumentos, utilizados para colocar água nas residências do povoado e em fazendas do entorno. Tarado era preto, reluzente, enorme, mal encarado, furioso e agressivo e trabalhava por dois. Carregava meia dúzia de corotes, andava mais rápido que os outros e nunca se cansava. Apesar de todos estes predicados, o bicho era calunduzeiro feito o diabo. No dia que este jumento amanhecia com as orelhas viradas, era um estrupício! O bicho empacava, dava coices, urrava, derrubava a carga… um horror! Como dona Bastiana já “entendia” o infeliz, rapidamente mandava buscar o amor da vida dele, a Jeguinha Jurema e resolvia o “problema”.

O pastor Geraldo, depois que testemunhou o bicho deflorar impiedosamente a sua Jeguinha de estimação em plena praça e à vista de todo mundo, passou a pregar abertamente nos dias de culto, contra o jumento tarado, afirmando com convicção que o animal tinha parte com o cão. Os fiéis se reuniam formando um círculo em torno do líder religioso que nunca mudava de roupa,  usava sempre o mesmo terno mal lavado e mal cheiroso. Andava sempre acompanhado da sua inseparável bíblia de capa ensebada. As pregações do Pastor Geraldo eram imperdíveis: – Não podemos mais tolerar a presença deste anticristo no meio de nós. Vamos capturá-lo, esfolá-lo e entregá-lo para que a charqueada faça sabão da carne dele!  – Dramatizava, enquanto espumava os cantos da boca. – Ahhhhhhhhh! Glória, Deus, Pastor! Aleluia, irmãos! – Gritavam os fiéis em êxtase! – É por isto que estou aqui para combater este jegue sem pudor que ostenta suas vergonhas à vista de todos em qualquer hora, e a todo momento, diante das nossas mulheres decentes. Este filho de Satanás não tem limites, entra diariamente sem pedir licença em vossas casas, em vossos comércios e até mesmo em nossa igreja… Este bicho desrespeita a nossa comunidade. Sabe porquê? Porque ele é conduzido pelo Capeta!

Os fiéis aplaudiam efusivamente o Pastor Geraldo que parecia em transe. – Este bicho endemoniado é conduzido pelas forças demoníacas de satanás! É o representante legal do diabo aqui em nosso povoado! E nós? Vamos ficar de braços cruzados aceitando passivamente esta pouca vergonha? Vamos ficar contemplando diariamente “as vergonhas” deste bicho balançando pra lá e pra cá em plena luz do dia? Não, amados irmãos. Não! Em nome de Deus não podemos aceitar um animal como este, vivendo no meio de pessoas honestas e de inabalável conduta moral! Pessoas trabalhadoras, honradas, decentes que são obrigadas a conviver com este tarado. Não! Não podemos mais permitir que este jumento conviva no nosso meio! Vamos dar um fim neste filho de satanás! Este bicho está a serviço do Tinhoso, e quer destruir a nossa comunidade, não vamos permitir! – Falava com ira butucando os olhos e deslocando o ar com a Bíblia de capa ensebada.

– Jesus me mostrou e eu vi com estes olhos que a terra haverá de comer, ali mesmo no meio da praça, o “malfasejo” cavalgando no dorso nu do jumento de Bastiana. Foi um sinal! Ou a gente destrói este bicho ou seremos destruídos! – E assim, o Pastor Geraldo ficava horas detonando o pobre do jumento, destilando um ódio de meter medo. A maioria dos moradores do povoado sabia que a raiva do líder evangélico contra o jumento começou no dia em que ele ao lado da esposa teve que testemunhar em plena feira livre a incontrolável tara do jegão, que abateu sem dó nem piedade a eguinha Margarida, que além de donzela, era extremamente delicada e morava no coração do Pastor. As más línguas contam que após fazer a feira e jogar na cacunda de Margarida, o Pastor foi surpreendido pelos urros e patadas do jegue de Bastiana que entre coices, sangue e mordidas partiu impiedosamente a donzelice da pobre jumenta, ali mesmo entre as barracas de carne, bruacas de farinha e dos olhos do Pastor. Dizem que além de transportar a própria feira das costas (já que a pobre jumentinha ficara “escadeirada” por um bom tempo) o líder religioso ficou três noites “incarreadas” sem dormir e jurou vingança ao jegue de Bastiana que era um bicho medonho! Enorme feito um cavalo, brabo como um “marruá” e se divertia diariamente tocando terror nas ruas do vilarejo. Nos finais de tarde quando o diabo deste jegue se via livre da cangalha e dos arreios, enlouquecia de vez e saía pulando feito um maluco pelo povoado, dando logo uma meia dúzia de saltos mortais para em seguida rolar prazerosamente pela terra, espojando na areia por aproximadamente uns dez minutos. Feito isto, partia desembestado pra cima das pobres jumentinhas. Tinha gente que achava era graça de ver as pobrezinhas presas do outro lado da cerca e o bicho voar literalmente por cima da cerca de arames farpados, partindo sem dó nem piedade para cima das pobrezinhas. Às vezes, mal colocava as patas nas costas das fêmeas e lá vinha o jato precoce melando o lombo da pobrezinha. Juntava uma multidão para “apreciar” o sucedido e, quanto mais pessoas, mas o bicho “atacava”. Parecia até que gostava de se apresentar para a improvisada plateia. Nunca se saciava. Quando “cobria” a última (geralmente sete ou oito jumentinhas), começava tudo de novo e com um inenarrável apetite. Diante da ameaça de consumirem definitivamente com o tarado, acabando com o único entretenimento do vilarejo, o show erótico de todas as tardes, Marculino e os amigos astuciaram um plano para acabar de vez com o Pastor. Assim, se reuniram na calada da noite e antes mesmo dos crentes agirem, sequestraram o Jumento Tarado e o levaram para um local secreto dentro da mata. Uma semana se passou, Bastiana acusou o Pastor Geraldo de ter sumido com o seu animal, por sua vez o evangélico alegou inocência, embora, revelasse nas pregações que foi Deus quem tirou o tarado do caminho das famílias Nova-Conquistenses e que a partir daquele momento a vida seria muito melhor sem o “jumento encapetado”! Passaram-se mais alguns dias e eis que chega a famosa noite de natal, o Pastor Geraldo recebendo a “nata da sociedade local” resolveu apresentar o jogral anual com a participação dos fieis e da sua famosa jumentinha Margarida. Igreja lotada, metade da população assistindo e chega Marculino, Pedro Relento e Zé de Zulmira conduzindo uma jovem e donzela jumentinha. Quando o Pastor pediu para que todos ajoelhassem para a oração final, os moleques empurraram à jumentinha igreja adentro e logo após, soltaram o “jegão” estuprador, morto de vontade de saciar sua fome. Se normalmente este jumento já era um inveterado tarado, imagine após ficar mais de uma semana amarrado e em jejum? O que se viu a seguir foi uma cena de guerra, com as principais autoridades do vilarejo sendo obrigadas a presenciar aquele espetáculo grotesco (virou até livreto de cordel). Foram duas horas de uma apoteótica peleja. O jegue de Bastiana protagonizou um espetáculo tão sofrível que até Maria Meretriz tampou o rosto indignada! Não restou um móvel inteiro na igreja. E entre desmaios, gritos e sorrisos sarcásticos a população testemunhou a donzelice da pobre jumentinha ir para “caixa prego”. A coisa foi tão feia que virou até notícia no Jornal Tribuna do Café da Vila da Conquista. Foi gente correndo pelos fundos, pulando janelas, gritando tresloucadamente e o Pastor Geraldo levou um coice tão violento nos peitos que ficou desacordado por e duas horas de relógio. Foram chamar às pressas os famosos vaqueiros do vilarejo, Pedro Vaqueiro e Guilhermino  que só conseguiram acalmar o jumento quando Bastiana chegou puxando a “Jeguinha Jurema”, que era o amor da vida do Jumento. Assim que Jurema entrou, o tarado se acalmou e se deixou dominar.

Deste dia em diante, sempre que a jumentinha novinha que participara do tumba avistava o jumento – por mais longe que fosse ou por mais ocupada que ela pudesse estar… -, lá vinha ela correndo, com o rabinho levantado para o seu lado. Esse jegue aprontou tanto no povoado, que logo foi apelidado pela população de “Tarado de Bastiana”. Não é que o infeliz gostava? Atendia pelo nome, quando chamado, morto de satisfação.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Quadra de Agosto, Crescente de 2023.